terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Artigo: Breves considerações sobre a política de drogas brasileira atual e as possibilidades de descriminalização

Por Luciana Boiteux

A Nova Lei de Drogas (n. 11.343/06) avançou ao despenalizar o usuário, ou seja, ao impedir que àquele se apliquem penas de prisão, na forma do seu art. 28, que somente prevê medidas alternativas. Tal legislação inovou também na positivação de princípios importantes, tais como o “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas” (art. 19, III) e a reafirmação dos princípios da liberdade e da diversidade (art. 4º), além do reconhecimento oficial das políticas de redução de danos.
Por outro lado, como pontos negativos, destacam-se o aumento da pena mínima do crime de tráfico para cinco anos e a ausência de critérios precisos capazes de promover a necessária distinção entre usuário e traficante, além das diversas categorias de tráfico (pequeno ou varejista, médio e grande). Tal deficiência legislativa não só causa insegurança jurídica, mas também reforça o preconceito social com que atuam as instâncias repressivas de controle social, levando à criminalização da pobreza. Isto porque, conforme verificado, dependendo da classe social, ou da renda do suspeito, ele será identificado como traficante (se não tiver renda para sustentar o seu vício) ou usuário (se tiver renda e não precisar traficar para ter acesso à droga).
Outra crítica corrente à lei brasileira é a opção irrestrita pela aplicação da pena privativa de liberdade para qualquer tipo de tráfico. Nesse sentido, mesmo que haja alguma diminuição da pena para tal delito, na forma do § 4º do art. 33, que permite a redução de um sexto a dois terços, esta mesma legislação veda a substituição da prisão por penas alternativas, conforme o art. 44.
Mas qual é o impacto dessa legislação na sociedade e no sistema penitenciário? Em pesquisa realizada recentemente, com o financiamento do Ministério da Justiça,(1) sobre a aplicação da lei brasileira pelo Judiciário, foi identificado que a maioria dos condenados por tráfico ilícito de drogas (art. 33) na Justiça Criminal do Rio de Janeiro e de Brasília é de réus primários, presos sozinhos, com quantidade de drogas relativamente pequena, sem o uso de arma, que comercializavam maconha e cocaína (drogas prevalentes) em locais já conhecidos pela polícia, pois não há investigação prévia, mas flagrantes em comunidades carentes. Dessa forma, constatou-se que o tráfico de drogas não é contido pela polícia, ao mesmo tempo em que as penitenciárias estão cheias de pequenos traficantes. Além disso, atualmente, no Brasil, o tráfico de drogas é a segunda maior incidência de condenação entre os presos brasileiros (cerca de 20%), só ficando atrás dos condenados por roubo (Fonte: InfoPen).
Recentemente, tal dispositivo acima referido, que impedia a aplicação de penas alternativas para traficantes, acabou tendo sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal, no habeas corpus n. 97.256, ao julgar o caso de um traficante que, apesar de sua pena haver sido reduzida, por ser considerada de menor importância sua participação em tal delito, teve vetada, pelo juiz de primeira instância, a substituição da pena de prisão por alternativas. A decisão foi no sentido de considerar violado o princípio da individualização da pena previsto na Constituição, sendo declarada a inconstitucionalidade do referido art. 44 e recomendado aos juízes que analisassem a situação dos acusados de forma individual, para fins de substituição da pena. Destaca-se que os resultados da pesquisa acima mencionada foram citados por um dos ministros como base para sua decisão.
Diante de tantas críticas, a Lei de Drogas passa por um momento de avaliação, ao mesmo tempo em que há avanços na política internacional, como é o caso da Proposição 19, na Califórnia-EUA, que pretendia legalizar o consumo da cannabis, e a constatação do fim do Consenso de Viena com relação à política internacional de drogas, verificada na reunião do Conselho de Drogas Narcóticas da ONU em 2009.(2)
Diante do que foi investigado, não há dúvidas de que a questão das drogas deve ser tratada essencialmente como um tema de saúde pública, por meio da prevenção e do tratamento voluntário, bem como se deve reconhecer a liberdade individual daqueles que fazem uso não problemático de drogas ilícitas (por exemplo, maiores de idade, uso pessoal em locais privados), sem prejudicar os outros, mediante limitação de quantidade autorizada para posse visando ao uso pessoal. A Justiça Criminal não tem condições nem é legitimada para impor uma determinada moral ou um comportamento que não coloquem em risco outras pessoas. Além disso, se em cem anos de proibição não se conseguiu reduzir ou conter nem o mercado consumidor, nem a produção de drogas ilícitas, é essencial que se pense em alternativas.
Nesse sentido, considera-se que Portugal tem muito a ensinar ao Brasil e ao mundo, pois a descriminalização da posse de todas as drogas ilícitas para uso pessoal lá realizada, com limites objetivos de quantidade que o usuário possa portar, além de haver produzido resultados importantes com relação à prevenção, não levou ao aumento do consumo (o que era o seu maior temor), conforme pesquisas realizadas.(3) Assim, Portugal é, hoje, um excelente exemplo de melhor utilização de recursos públicos: ao invés de se gastar com o sistema criminal, se investe em saúde e assistência aos usuários que desejarem.
É mais do que urgente a mudança desse paradigma proibicionista da guerra às drogas, que se mostrou caro e ineficaz, como o trágico exemplo do México. Há alternativas descriminalizadoras que podem ser aplicadas e que trarão, como consequências, menos gastos públicos com repressão e melhor qualidade de vida aos usuários, além de maior acesso ao sistema de saúde.
Considera-se que a descriminalização da cannabis, droga ilícita mais consumida em todo o mundo, já seria importante como primeiro passo. Não há prova de que a maconha seja “a porta de entrada para outras drogas”, até porque há milhões de usuários de maconha no mundo que nunca passaram a usar substâncias mais pesadas, o que se percebe das próprias estatísticas oficiais da ONU, e a experiência da autorização do uso de maconha medicinal na Califórnia(4) pode ser considerada positiva.
Além disso, é necessário repensar também a redação do tipo de tráfico de drogas (art. 33), que não faz a necessária distinção entre as condutas, de forma a reduzir o encarceramento de pequenos traficantes, mais vulneráveis à seletividade do sistema penal.
Em suma, é preciso mudar a mentalidade e trabalhar com evidências científicas, deixando de lado o discurso do medo e da guerra, que proliferou nos últimos anos e que tenta legitimar a política proibicionista, a qual não mais se sustenta racionalmente.

NOTAS

(1) BOITEUX, Luciana; WIECKO, Ela; BATISTA; Vanessa; PRADO, Geraldo(Coords.). Tráfico de Drogas e Constituição. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
(2) Sobre o tema, cf. BOITEUX, Luciana et alli(Coords.). Tráfico de Drogas e Constituição. op. Cit., p. 26 e ss. Aqui me refiro ao registro da falta de consenso entre os países signatários das Convenções de Drogas às políticas atuais, com o reconhecimento das políticas de redução de danos.
(3) Sobre a política de drogas portuguesa, vide HUGHES, Caitlin Elizabeth; STEVENS, Alex. What can we learn from the portuguese decriminalization of illicit drugs? British Journal of Criminology. Volume 50, Issue 6, November 2010, p. 999-1022. First published online July 21, 2010. Seus autores concluíram que, contrariamente ao que se esperava, a descriminalização em Portugal não levou a um aumento do consumo de drogas, pois houve redução do uso problemático, de danos ligados à droga e da superlotação da Justiça Criminal.
(4) Na Califórnia, em outubro de 2010, foi editada uma lei reduzindo a pena para posse de maconha de menos de uma onça, o que significa a desclassificação para um tipo de ofensa menos grave, para a qual não está prevista pena de prisão. Nos EUA, quatorze Estados e o Distrito de Columbia possuem programas de maconha medicinal.


Luciana Boiteux Mestre em Direito (UERJ). Doutora em Direito Penal (USP). Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da mesma Instituição. Membro do NEIP – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, do Conselho Consultivo da REDUC – Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos e da Comissão de Política de Drogas do IBCCRIM.


BOITEUX, Luciana. Breves considerações sobre a política de drogas brasileira atual e as possibilidades de descriminalização In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 16, dez., 2010. 

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