sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Artigo: O estatuto da criança e do adolescente hoje: dom de iludir?

Por Luis Fernando Niño
-


Hei de tentar unir, aqui, meu absoluto respeito pelas instituições de um País irmão, tão querido por mim, com a total sinceridade que o leitor merece. Entendo que a situação no Brasil não tem progredido suficientemente – longe disso – nos vinte anos de vigência do Estatuto. E, também, que são múltiplos os elementos que conspiram contra a concretização dos avanços neste setor da administração de justiça, ao extremo de plasmar, embora de modo oblíquo ou indireto, um verdadeiro sistema de responsabilidade penal para muitíssimas crianças acima de 12 anos.
Para começar, pouco ou nada muda quando chamamos “ato infracional” ao injusto penal, ou quando houve de falar-se de “abrigo em entidade” (ECA, art. 101, texto original), ou, até hoje, de “acolhimento institucional”, (ECA (art. 101, modificado pela Lei 12010/09), ou de “internação em estabelecimento” (idem, art. 112), em lugar de “privação de liberdade”. Em primeiro lugar, se levamos a sério o art. 11, inciso b, das Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade (Resolução 45/113 da Assembleia da ONU), a situação não se difere em alto grau da prisão padecida por um sujeito adulto. E essa privação de liberdade é adotada a partir da pretendida capacidade do “adolescente” de 12 a 18 anos, muito além da proclamação legal de sua inimputabilidade, tal como acontece com o art. 104 do Estatuto brasileiro.
Em segundo termo, conforme os testemunhos ouvidos em Porto Alegre no ano passado, por ocasião do Oitavo Congresso dos Defensores Públicos do Brasil, os juízes exercentes dos cargos em varas de infância e da juventude não somente carecem, em regra, de formação especializada, como também agem como se o ECA não existisse, mantendo o velho paradigma do menor sujeito à proteção e ao controle.
Em terceiro lugar, não se deu uma correta implementação de recursos humanos, técnicos e materiais necessários para possibilitar um tratamento verdadeiramente diferenciado a esse peculiar universo.
O que é que sucede na realidade quando se aceita o jogo de ideias “infração/punição”, isto é, que valem aqui as categorias segundo as quais ato infracional mais capacidade equivale à privação de bens jurídicos, inclusive – e muito especialmente – a liberdade ambulatória, e tal equação fica em mãos de magistrados que conservam a velha ideologia paternalista?
A privação de liberdade é, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma medida breve e excepcional, que só deve ser aplicada no caso de grave ameaça ou violência, além de reincidências contínuas. Porém, os indicadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que somente 20% das infrações cometidas por adolescentes referem-se a homicídios ou latrocínios (roubos seguidos de morte), levando em conta as 27 unidades da Federação.
O ECA prevê, no caso de infrações mais leves, que deverão ser aplicadas outras medidas, como advertência, obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade. Mas operadores do sistema, como a defensora pública Daniela Cavalcante Martins, responsável pelo acompanhamento da execução das medidas socioeducativas na Vara da Infância e da Juventude do DF, desvendam a verdade, revelando que existe muito menino internado por fatos muito mais leves, como furtos e ameaças, e destacam a causa: “Não há investimento para acompanhar o meio aberto”.
Ariel de Castro, membro da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil e presidente da Fundação Criança de São Bernardo do Campo (SP), dá outro exemplo, a partir da própria Fundação: “Apesar da internação ser uma medida de brevidade e excepcionalidade, ainda existe falta de vagas na semiliberdade. Um grande percentual de internos poderia estar nesse sistema ou em liberdade assistida”, analisa, mas, devido ao fato de que a maioria dos programas de aplicação das medidas alternativas à privação total de liberdade não recebe acompanhamento, não são tais programas considerados confiáveis pelos juízes e promotores.
Já em 2006, um estudo feito pelo Ministério da Justiça mostrou que, em todo o País, havia 2.876 técnicos para acompanhar o cumprimento das medidas, número que corresponde a 0,19% dos adolescentes atendidos. Desse jeito, sem a retaguarda profissional exigível e sem nenhuma mudança em suas condições de vida, o adolescente vai continuar a infringir a lei, o que vai determinar a sua contínua privação de liberdade em razão das também sucessivas reincidências. Assim, o limite dos três anos de internação, previsto no art. 121, § 3º, do Estatuto, para a internação desses adolescentes transforma-se numa ficção.
Opiniões, como a de Marlúcia Novaes, presidente da Associação “Amar” (“Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco”), no DF, parecem refletir sem distorção uma dura realidade: “O ECA é apenas um pedaço de papel para os meninos e meninas privados de liberdade”. “A realidade é muito doída. Eles são maltratados, têm péssima alimentação e chegam a ser espancados pelos agentes. Sem falar nas drogas, que circulam facilmente nesses locais”, denuncia Marlúcia.
Falar em termos de responsabilidade, ou capacidade juvenil, ou eufemismos similares, declarando, ao mesmo tempo, a inimputabilidade de crianças e adolescentes, é impróprio, se o passo seguinte será o de dispensar a essas crianças um tratamento institucional tão – ou ainda mais – disfuncional que aquele reservado aos infratores adultos.
Paralelamente, a meu ver, não cabe falar de fracasso do Estatuto brasileiro, senão de entender que ele faz parte de uma situação estrutural e, no fundo, de uma estratégia de dominação.
É a estrutura socioeconômica e tecnoburocrática que produz o fracasso das funções assistenciais do Estado, o fracasso do sistema escolar, o fracasso do sistema de inserção no sistema produtivo e, por fim, condena ao fracasso toda intenção de readaptação de quem nunca teve sequer oportunidade de se adaptar.
Essa estrutura cumpre seu papel de manutenção de um modelo de sociedade. Todos esses fracassos são, no fundo, notas características de um modelo social vigente.
O incorreto, de nossa parte, é isolar os comportamentos infracionais, que são consequência desse estado das coisas, e punir, gravemente, seus autores, desinformados não somente da iniquidade do sistema social geral, senão também da problemática própria dessa fase existencial, agigantada pelas carências e pela marginalização familiar e social; sabendo-se, de acréscimo, que os belos postulados da proteção integral não serão cumpridos, pela falta de orçamento em razão da falta de intenção política de mudar de modelo.
Uma criança carece hoje, mais ainda do que em épocas passadas, de maturidade psíquica e emocional suficiente para transferir a sua situação às categorias de capacidade psíquica de culpabilidade, de autodomínio, conforme a essa capacidade, e, em definitivo, de responsabilidade penal, por maiores que sejam as garantias que queiram adicionar.
As crianças menores de dezoito anos requerem, pela sua diferente situação psíquica e emocional, algo diverso de sua mera equiparação aos adultos em matéria de garantias processuais. Requerem uma abordagem interdisciplinar que interprete cientificamente os traços de seu comportamento, de suas clássicas técnicas de ensaio e erro, de suas bizarras identificações, de suas reações paradoxais, de suas buscas de limites, de suas necessidades de afirmação da crescente personalidade.
Numa ordem de ideias mais geral, se, em verdade, se procura brindar a cada criança o trato que ela merece como sujeito de direitos, é urgente adotar as medidas que lhe permitam uma passagem mais serena e positiva da etapa pré-puberal à da adolescência, e desta à plenitude da juventude. As medidas às quais me refiro são as políticas gerais de inclusão que possibilitam o acesso de toda criança à saúde, à educação, à recreação, à morada digna e aos demais direitos formalmente reconhecidos, mas eternamente carentes do devido cumprimento pelos governos.

Luis Fernando Niño, Advogado com diploma de honra pela Universidade de Buenos Aires. Licenciado em Criminologia pela Universidade de Buenos Aires. Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, ‘Cum Laude”, por unanimidade. Titular da Cátedra de Elementos de Direito Penal e Processual Penal da Universidade de Buenos Aires. Codiretor do Mestrado em Criminologia da Universidade Nacional de Lomas de Zamora (Província de Buenos Aires). Juiz de Câmara na Vara Criminal em Buenos Aires.


Como citar este artigo: NIÑO, Luis Fernando. O estatuto da criança e do adolescente hoje: dom de iludir?In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 09-10, jan., 2011.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog