terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Artigo: Razões históricas de um sistema penal cruel

Por Cláudio do Prado Amaral

Se 2.200 presos ocupam prisão estruturalmente projetada para 700 é óbvio que faltará água, a rede de esgoto restará subdimensionada para tal superpopulação (o esgoto irá entupir e transbordar), o número de funcionários da unidade prisional será insuficiente, a assistência médica não dará conta da demanda, detentos dormirão em condições deploráveis, o lixo irá se acumular, formando um quadro muito parecido com uma masmorra medieval. E, lembremos, a Constituição Federal proíbe penas cruéis. O mesmo vale para o aprisionamento cautelar. Alguém dúvida que se possa dar outro nome – senão cruel – ao aprisionamento de pessoas em compartimentos usados para transporte de cargas ou, ainda, em que os presos recebem a alimentação em sacos plásticos e comem com as mãos?

Daí, a mim e a todos, surge o justo questionamento: por que nós somos assim? Por que admitimos, sem grandes confrontos, essas obviedades indignas? 

Uma parte importante da resposta está na forma como “pensamos” o sistema penal, produto de longo e deformado processo educativo no campo jurídico, objeto desta limitada investigação.

Não é novidade que boa parte da formação jurídica conferida aos futuros bacharéis é de base eminentemente tecnicista. Chama-se atenção, contudo, para o fato de que, por trás dessa linha de ensino jurídico, existem fatores propositadamente plantados, ao longo de anos, para que continuemos a assistir à tragédia sistêmico-penal passivamente.

Por isso, poucos farão algo realmente eficaz contra o sistema penal que, por exemplo, permite o feijão vir misturado com o resto da refeição do preso. Aos que há algum tempo não visitam cadeias, lembro que o feijão azeda o resto da comida em pouco tempo, aliás, já enquanto é transportado até a prisão, no caso de “terceirização da cozinha”.

A baixa evolução crítica nos bancos acadêmicos impede que sejam consideradas as preocupações de ordem não jurídica. Tal faz parte de um contexto maior, qual seja, o papel que a Universidade vem desempenhando no Brasil e a penetração de interesses políticos e de mercado no campo do saber. 

 O ingresso de disciplinas não jurídicas nas faculdades de direito deu-se como matérias interdisciplinares. Há algumas poucas décadas, a importância de tais disciplinas foi descoberta, pondo em relevo suas capacidades para a obtenção de decisões práticas que estivessem em sintonia com o que se passa na sociedade. No campo do direito, isso teve como resultado a produção de uma série de discursos free-riders. Do ponto de vista epistemológico, esses discursos free-riders provocaram a desconfiança de todos os tradicionais ramos do direito, que lhes recusaram o status científico.

O fracasso do ingresso dessas matérias não jurídicas no campo do direito se manifesta com a percepção de que não conseguiram redefinir o direito como objeto de análise das ciências sociais. Disso não escaparam o direito penal e o direito processual penal. Por exemplo, a sociologia jurídica tornou-se uma disciplina situada numa zona fronteiriça, ora rejeitada pela sociologia, ora rejeitada pelo direito, negativamente avaliada pela maioria dos docentes dentro das universidades brasileiras.(1)

Há que se atentar, também, para a origem dos cursos jurídicos no Brasil. No período colonial, o saber jurídico no Brasil era totalmente subordinado a Portugal, tanto em termos de estrutura legal vigente quanto da formação dos quadros burocráticos e da produção e difusão das ideias jurídicas. A formação dos estudantes brasileiros era feita na Universidade de Coimbra. Isso representou severa dependência para a formação dos quadros intelectuais no Brasil, sendo, assim, um importante instrumento de subordinação diante da metrópole, conforme as próprias elites portuguesas.(2)

Após a independência, foi necessária a criação de cursos de direito no Brasil, para dar autonomia à formação das elites, afirmando-se a soberania nacional. Em torno da criação dos cursos de direito havia, portanto, uma estratégia política. Todavia, mesmo após a criação dos cursos de direito, permaneceu a influência da cultura jurídica portuguesa ao longo da primeira metade do século XIX. Já antes da criação dos cursos de direito no Brasil, o Imperador havia encomendado que uma das cadeiras fosse atribuída a um Português, numa evidente antecipação de que as proposições teóricas reinantes em Portugal seriam aplicadas ao ensino jurídico porvir no Brasil.(3) A influência de Portugal nos estudos jurídicos brasileiros aconteceu no instante em que foram criados os cursos jurídicos, pois o modelo institucional adotado foi aquele colhido a partir de Coimbra.(4) 

Assim, inicialmente, as faculdades de direito no Brasil não surgiram como um espaço de produção científica reservado à criação e obtenção de conhecimentos novos. Ao contrário, constituíram-se desde o início em locais de mera reprodução do saber já existente na Europa da primeira metade do século XIX. 

É emblemático o que ocorreu na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A Faculdade de Direito de São Paulo, nas primeiras décadas após a sua criação, até 1883, produziu intelectuais dominados por um ideário liberal e, por isso, condicionados a ver as relações sociais como relações contratuais entre partes juridicamente iguais, porém individualizadas, com autonomia da vontade e vínculos de coordenação. Produziu mais políticos que juristas. Aliás, inicialmente, não havia preocupação em formar juristas, mas sim ideólogos que produzissem a configuração jurídico-política do Estado emergente. Esse condicionamento liberal foi o resultado da introdução do direito raciocinado conforme regras da natureza nos primórdios do ensino jurídico. Ou seja, a Faculdade de Direito de São Paulo formou bacharéis orientados a privatizar conflitos sociais e nessa condição colocar o indivíduo e sua liberdade como o centro da luta política, deixando para um plano inferior a autonomia da ação coletiva, esquivando-se da ideia de democracia. Restava ao bacharel perpetuar a divisão entre liberalismo e democracia. Os princípios liberais se sobrepuseram aos princípios democráticos na Velha Academia.(5)

A Academia de São Paulo pouco ensinou sobre o direito, e exatamente nisso consistiu o seu segredo.(6) Ao mesmo tempo, monopolizou todas as esferas políticas de dispersão que se apresentavam às elites, evitando que a diversidade de sua composição social promovesse inconvenientes fissuras, acentuando divergências internas e inclinando os segmentos pensantes de encontro às reivindicações populares. E, dessa forma, a Faculdade formou mais políticos liberais que democratas, mas, de qualquer modo, pouquíssimos juristas. 

Nessa linha, de forma geral, as faculdades de direito criadas no recém-nascido Estado Brasileiro deixaram muito a desejar enquanto centros de reflexão jurídica criativa, apesar de catalisarem grande parte da vida cultural e jurídica do País, um quadro que, até hoje, afeta a imagem das disciplinas jurídicas, que dificilmente são vistas como fontes de conhecimento inovadoras.(7)

Após seguidas crises no ensino jurídico na segunda metade do século passado, (inclusive de orientação, nos anos 80), o Brasil assistiu, a partir dos anos 90, a uma vertiginosa proliferação dos cursos de direito. Produto de uma clara política de inclusão social que via na obtenção do diploma universitário uma forma de ascensão, o Poder Público autorizou seguidamente a criação e instalação de novos cursos de direito no Brasil, multiplicando-se em progressão geométrica as vagas oferecidas. Entretanto, a multiplicação da oferta não foi acompanhada por uma correspondente melhoria de qualidade do ensino médio. A baixa qualidade do ensino médio associada à precariedade do critério para admissão nos cursos de direito fez nascer uma massa de bacharéis com formação deficiente e excessivamente tecnicista-formal, que, em grande parte, não consegue aprovação no exame de ordem, ficando impossibilitada de exercer a advocacia. 

Quanto ao corpo docente, ainda com formação puramente jurídica, é historicamente conservador no que diz respeito à inclusão de disciplinas não puramente jurídicas no curso de direito.(8) A questão vai mais longe, pois o próprio corpo discente é em boa parte refratário às considerações não jurídicas profundas no exame da questão de direito. Devido à pluralidade de expectativas existentes numa mesma sala de aula, pode-se esperar que somente parcela dos alunos seja receptiva às incursões dos ramos não jurídicos do conhecimento.(9)

Os ingressantes nos cursos de Direito desejam aprender o que dizem as “leis secas” e a literalidade da Constituição Federal. E nada mais. Há escasso interesse no aprendizado de disciplinas não jurídicas, como economia, filosofia, sociologia etc., simplesmente pela incompreensão do modo pelo qual tais ramos do conhecimento podem somar à sua formação profissional e solucionar problemas. 

Existe, também, uma bem articulada pressão para que as escolas de Direito sejam organizadas por docentes tradicionalmente alinhados com o sistema dominante. Daí, o positivismo existente no ensino jurídico do Brasil é fruto da necessidade que os centros de poder têm de fundamentar seus mecanismos de dominação através do direito, substituindo, dessa forma, a legitimidade pela legalidade e assim iludir a todos sob o argumento de que o problema do ensino jurídico no Brasil é apenas de ordem pedagógica, quando, na verdade, é, principalmente, e também, matéria de interesse do sistema político.(10)

Difícil ignorar o papel institucional das faculdades de direito, pois é através da educação jurídica que a vida social consegue ordenar-se conforme uma hierarquia de valores. É por meio da educação jurídica que se imprimem, no comportamento social, os hábitos e os elementos coativos que designam as atividades de todos para as aspirações comuns. A partir das faculdades de direito forma-se a cultura jurídica nacional. A base de atuação dos egressos dos cursos de direito fornece a bitola cultural jurídica. Conforme a cultura jurídica adquirida, haverá penalistas com espírito e capacidade críticas ou, ao contrário, penalistas passivos e reprodutores dos esquemas de poder vigentes. Disso resulta que é preciso encarar o ensino jurídico como uma prática dotada de um fundamental sentido político, que pode conduzir a uma atitude libertadora ou, inversamente, domesticada. Assim, a opção pelo método positivista ou pela abordagem humana e social é, enfim, nada mais que uma opção política.(11)

O que se verifica em grande parte das faculdades de direito é a opção por uma postura acadêmica tradicionalmente fechada em si mesma, dedicada à erudição gratuita e menos interessada pela realidade nacional. Onde está o maior compromisso com a nação e seus problemas? E assim, segue-se desfigurada a função social do ensino jurídico, primando por formar burocratas, manipuladores da tecnologia e doutrinadores de novas gerações de mesmo perfil das elites.(12)

Ante tal quadro, não me parece difícil entender porque ainda admitimos, quase passivamente, que um detento, no Brasil, passe a noite dormindo ao lado de uma latrina fétida e imunda, coberto por percevejos, subjugado por um líder de pavilhão que lhe cobra favores, dentro e fora da prisão; prisão essa, de onde, afinal, um dia o preso sairá. Mas não como um cidadão livre, e sim como mais um soldado do crime organizado, que foi sua referência e sua salvação dentro da cadeia.

NOTAS

(1) JUNQUEIRA, Eliane Botelho. A sociologia jurídica no Brasil – Introdução ao debate atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1993, p. 19.
(2) VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino no Brasil. São Paulo: Perspectivas, 1977, p. 7-8.
(3) MACHADO NETO, Antonio Luis. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo: Editorial GRIJALBO – Editora da USP, 1969, p. 23.
(4) SIMÕES NETO, Francisco Teotônio. Bacharéis na política e a política dos bacharéis, Tese de doutoramento defendida em 1983 junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, p. 73.
(5) ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 27 e 238-239.
(6) ADORNO, Sérgio. Op. cit., p. 236-237 e 246.
(7) ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil, monografia IBCCRIM n. 25, jun./03, p. 26.
(8) Para conferir idêntica situação no Peru: BULLARD, Alfredo; MACLEAN, Ana Cecília. La enseñanza del derecho: cofradía o archicofradía?, in El derecho como objeto e instrumento de transformación. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003, p. 169-187.
(9) MORAIS, Régis de. Sociologia jurídica contemporânea. Campinas: Edicamp, 2002, p. 01-02.
(10 FARIA, José Eduardo. O ensino jurídico e a função social da dogmática, in Encontros da UNB, Ensino Jurídico, 1979, Brasília, p. 116-117.
(11) FARIA, José Eduardo. A cultura e as profissões jurídicas numa sociedade em transformação, in Formação jurídica. 2. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 13-20.
(12) FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica (Crise do Direito e Práxis Política). 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 172.


Cláudio do Prado Amaral, Professor doutor da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto. Integrante do Grupo Educação e Direito da Universidade Federal de São Carlos. Juiz de direito do Estado de São Paulo. Ex-juiz corregedor dos presídios de São Paulo e dos presídios de segurança máxima do Estado de São Paulo.

 
Como citar: AMARAL, Cláudio do Prado. Razões históricas de um sistema penal cruelIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 02-03, jan., 2011.
 

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