segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Artigo: Discurso midiático e violência

Por Matheus Rodrigues

Ao tratar dos problemas da justiça penal no Brasil, grande parte da mídia falada e escrita se põe de comum acordo e estigmatiza pessoas, censurando-as, condenando-as a integrar uma classe social marginal, criada por tais discursos sensacionalistas. Tal indivíduo seria obtuso, covarde e vingativo. Não faria distinção entre os marginais, os violentos, os molestadores de todos os tipos, reservando-lhes em bloco o desprezo público.(1) Esta pessoa vingativa não existe de verdade, trata-se de uma cômoda abstração para legitimar o sistema existente e reforçar suas práticas. Este texto enfoca sobre os constantes discursos midiáticos agressivos, “sangrentos” e vingativos, que insuflam a ira, a cólera, o desejo de vingança da sociedade após a ocorrência de fatos criminosos no dia a dia da comunidade da qual o veículo de comunicação faz parte.
Além de produzir massivas subjetividades, de estar nas mãos de uns poucos, a mídia funciona organizando diversos e diferentes fluxos de acontecimentos e, pela via do espetáculo, das formas dramáticas e sensacionalistas, produz as “identidades”, as simpatias, os prós e os contras. À medida, portanto, que organiza os múltiplos fluxos de acontecimentos, a mídia hierarquiza os temas, selecionando os que deverão ser de conhecimento público e, daí, os que deverão necessariamente ser discutidos, debatidos, pensados.(2)
Na sociedade contemporânea, a imprensa também se insere em um campo determinado, com uma lógica e um capital específico. Se pode, assim, falar de um campo midiático, um campo relativamente autônomo, organizado por instituições específicas, contendo uma organização própria e um campo de especialistas, com a função básica de produzir a mediação com os demais campos sociais.(3)
O policial, o promotor, o juiz e o legislador, mesmo sendo questionados por suas práticas pessoais e coletivas, normalmente são vistos como os representantes da ordem e do bem. Assim, em razão destes símbolos da justiça, do direito e da consciência reta, os delinquentes são tidos como integrantes de uma classe social à parte, como anormais sociais. Há um preconceito generalizado pela sociedade para com esses indivíduos que, por suas razões pessoais e sociais, erraram em um momento de sua vida e é esse tratamento estereotipado que mantém em pé os discursos e os sistemas opressivos da sociedade.
Segundo Benoni Belli,(4) existem discursos no sentido de que: a) a violência policial é necessária para combater o lado podre da sociedade e o mal que ameaça desagregar a sociedade e generalizar a insegurança; b) os pobres, negros, favelados são os alvos da vigilância porque descambam facilmente para o crime, pois convivem diariamente com a violência e só conhecem essa linguagem; c) a violência policial deve diferenciar entre os realmente criminosos e aqueles que, apesar de viverem à margem da sociedade, são trabalhadores e, portanto, merecedores de respeito; d) a situação da miséria e pobreza reduz oportunidades e leva necessariamente ao crime como forma de vida. A vitimização prévia é um dos fatores que influenciam a reação social. Também a vitimização direta, sofrida pela própria pessoa, origina mais modificações de conduta, mas não necessariamente mais medo. É a vitimização indireta, ligada à que sofrem outras pessoas, que constitui um forte previsor do medo.(5)
Nas prisões encontramos os estereotipados. Na prática, é pela observação das características comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a serem selecionados pelo sistema penal, que sai então a procurá-los. E, como a cada estereótipo deve corresponder um papel, as pessoas assim selecionadas terminam correspondendo e assumindo os papéis que lhes são impostos.(6)
Os políticos europeus, buscando inovações para seus países, cruzam o atlântico para aprender acerca da enorme experiência carcerária dos EUA, mas tentar aprender sobre o controle de delitos do país é quase como voar até a Arábia Saudita para aprender sobre os direitos das mulheres. A lição que temos que aprender é não irmos por este caminho do castigo, dar-se conta de que faz falta um Gulag(7) para manter uma sociedade do tipo “o ganhador leva tudo”. Deve-se, pois, entender que a sociedade deve ser mudada, antes que se aumente sua população carcerária.(8)
O mal-estar social existente precisa concretizar-se através de um processo comunicativo de intercâmbio de opiniões e impressões, processo que, por um lado, reforçará a visibilidade social do desajuste social e do mal-estar que este cria, e, por outro lado, outorgará a essa disfunção social a substantividade e a autonomia necessárias para que seja considerado um autêntico problema social.(9) Observa-se que o discurso político-criminal da mídia se impôs sobre o da universidade. Duas caretas desses oráculos pós-modernos, que são os “âncoras” da televisão, influenciam mais que a obra completa de nossos melhores penalistas e criminólogos, cujas opiniões, de resto, só serão divulgadas se e enquanto puderem ser adaptadas e apropriadas pelo discurso político-criminal único.
O espaço concedido ao “especialista” é apenas para referendar o sentido geral da mensagem, pois alguém já viu um locutor anunciando desrespeitosamente a concessão de uma ordem de “habeas corpus”, invocar a opinião de algum jurista que, contrariamente, achava que naquela situação havia efetivamente ilegalidade ou abuso de poder? Mais grave do que isso é a executivização, ou seja, passarem alguns veículos a operar como agências de criminalização secundária, fazendo do que foi o jornalismo investigativo um jornalismo policialesco, no qual a única informação obtida e divulgada, se jornalisticamente não significa coisa alguma. Uma manchete mobiliza muito mais o sistema penal – particularmente aqueles operadores que sucumbiram às tentações da boa imagem – do que uma portaria de instauração de inquérito policial, uma promoção ministerial ou uma sentença.
O processo de revisão do direito penal deve ser realizado de acordo com critérios científicos e com olhares voltados para os problemas que atingem toda a sociedade.(10) Deve ser analisado a fundo o funcionamento dos subsistemas penais para se constatar sua real efetividade para com a manutenção da ordem social e a defesa dos direitos e garantias de todo cidadão, independente de sua raça, cor, religião e classe social. Pois, por mais que nos revoltem os horrores, nos quais no homem se parece descobrir a fera, a sociedade, em presença do crime, não pode renunciar ao exame da psicologia do criminoso.(11)
A notícia revela e oculta: esta é a conclusão a que podemos chegar. Quando revela, dá ao fato um caráter público. É quando, somado à atitude natural, se pode produzir um sentimento de implicação, por parte dos receptores, capaz de alcançar níveis imaginários e conformar, em relação a uma suposta realidade delitiva, sentimentos de insegurança que nem sempre estão de acordo com o fenômeno como ele é.(12)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANIYAR, Lola Castro de. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Discursos sobre Segurança Pública e Produção de Subjetividade: A violência urbana e alguns de seus efeitos. Trabalho de Pós-doutorado. Núcleo de Estudos da USP. São Paulo, 1997/1998.
COPETTI, André (org.). Criminalidade moderna e reformas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
HULSMAN, Louk e outra. Penas Perdidas. O Sistema Penal em questão. Niterói-RJ: Luam, 1997.
MACHADO, Bruno Amaral. Mass Media y justicia: La interacción entre fiscales y periodistas. Artigo apresentado no Congresso Internacional de Criminologia em Santiago de Cali – Colômbia. Novembro de 2008.
Revista eletrônica Derecho penal on line. http://www.derechopenalonline.com/derecho.php?id=8,561,0,0,1,0. Acesso em 15/05/2009.
RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das Leis Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
YOUNG, Jock. La sociedad “Excluyente”. Madrid: Ediciones Jurídicas e Sociales, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

NOTAS
(1) HULSMAN, Louk et al. Penas Perdidas. O Sistema Penal em questão. Niterói-RJ: Luam, 1997, p. 55.
(2) COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Discursos sobre Segurança Pública e Produção de Subjetividade: A violência urbana e alguns de seus efeitos – Trabalho de Pós-doutorado – Núcleo de Estudos da USP. São Paulo, 1997/1998, p. 22.
(3) MACHADO, Bruno Amaral. Mass Media y justicia: La interacción entre fiscales y periodistas. Artigo apresentado no Congresso Internacional de Criminologia em Santiago de Cali – Colômbia. Novembro de 2008, p. 03.
(4) BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 44.
(5) RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das Leis Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 27.
(6) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 130.
(7) Em português significa, “Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias”, era um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos e presos políticos da União Soviética. Este sistema funcionou de 1918 até 1956. Foram aprisionadas milhões de pessoas, muitas delas vítimas das perseguições de Stalin. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gulag - acesso em 15/05/2009.
(8) YOUNG, Jock. La sociedad “Excluyente”. Madrid: Ediciones Jurídicas e Sociales, 2003, p. 230.
(9) RIPOLLÉS, José Luis Díez. ob. cit., p. 28.
(10) COPETTI, André (org.). Criminalidade moderna e reformas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97.
(11) BARBOSA, Ruy. Criminologia e Direito Criminal (Seleções e Dicionário de pensamentos). Campinas-SP: Romana, 2003, p. 317.
(12) ANIYAR, Lola Castro de. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005, p. 207.


Matheus Rodrigues, Especialista em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL.  Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB – Centro Universitário de Brasília.  Delegado da Polícia Federal em Brasília.  Professor da Academia Nacional de Polícia.  Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Humanos e Política Criminal do UNICEUB – Centro Universitário de Brasília.]


Como citar este artigo: RODRIGUES, Matheus. Discurso midiático e violênciaIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 11-12, dez., 2010.
 

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog