sábado, 22 de janeiro de 2011

Artigo : Tribunal do júri: a evolução que não se consolidou na reforma

Por Maria Elizabeth Queijo

O procedimento do Tribunal do Júri sofreu significativas reformulações por meio da Lei nº 11.689, de 09.06.2008, que teve origem no Projeto de Lei nº 4.203, de 2001. As inovações foram muitas: a criação de procedimento específico para o Tribunal do Júri, desde a primeira fase; a previsão de audiência una de instrução, debates e julgamento; o interrogatório torna-se ato derradeiro do procedimento; o prazo máximo de 90 dias para conclusão da primeira etapa do procedimento, estabelecendo parâmetro temporal para a duração da prisão cautelar; a eliminação da prisão para recorrer da pronúncia, podendo ser decretada a prisão preventiva, caso haja necessidade; a ampliação dos fundamentos da absolvição sumária; a previsão de intimação por edital da decisão de pronúncia, para o acusado solto, caso não seja encontrado, com prosseguimento do procedimento; a supressão do libelo e da contrariedade; a maior democratização no alistamento de jurados; a redução da idade mínima para ser jurado; a extinção da figura do “jurado profissional”; a composição do Tribunal do Júri por 25 jurados e não mais por 21; a exclusão do jurado que tiver funcionado em julgamento anterior do mesmo processo, daquele que houver integrado o Conselho de Sentença de outro acusado, no caso de concurso de pessoas, e do jurado que tiver manifestado prévia disposição para condenar ou absolver, demonstrando, assim, perda da imparcialidade; a possibilidade de se realizar o julgamento sem a presença do acusado; a leitura de peças que se refiram, exclusivamente, às provas colhidas por carta precatória e às provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis; a vedação do uso de algemas durante o período em que o acusado permanecer no plenário, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes; a vedação, nos debates, da referência à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à decisão que determinou uso de algemas, como argumentos de autoridade, bem como ao silêncio do acusado ou ausência de seu interrogatório; a notável simplificação do questionário, mediante a previsão de três quesitos básicos, que devem ser formulados em proposições afirmativas (a respeito da materialidade do fato, autoria ou participação e se o acusado deve ser absolvido); a apuração dos votos até alcançar-se a maioria, embora o juiz presidente deva verificar todos os votos, sem declarar o número de votos afirmativos e negativos, para preservação do sigilo da votação; entre várias outras modificações.

A reforma ocorrida por meio da Lei nº 11.689/08 objetivou a resolução de antigos problemas do Tribunal do Júri: formalismos injustificados que, não raro, conduziam a nulidades dos julgamentos; excessiva demora do procedimento; entraves ocasionados por imposições como a necessidade da presença do acusado para o julgamento. Tentou-se alcançar, assim, eficiência, maior celeridade, sem sacrifício de direitos e garantias fundamentais, sobretudo no tocante ao exercício da defesa, já que a Constituição exige, no Tribunal do Júri, a observância da plenitude de defesa. 

Entretanto, mesmo com a reforma implementada, persistiu a incômoda e grave condenação por maioria simples. O famoso 4 X 3... É bem verdade que, no procedimento inaugurado pela Lei nº 11.689/08, vedou-se a declaração do número de votos afirmativos e negativos, proclamando-se tão somente o resultado do julgamento. No entanto, embora não divulgada, a condenação por maioria simples continuou a existir e não se pode sequer afirmar que seja ela rara. Ademais não se pode descurar que o Tribunal do Júri, dados os contornos de sua competência constitucional, julga os crimes mais graves do ordenamento, por definição, que são aqueles dolosos contra a vida. Via de consequência, em especial no que tange ao homicídio, as penas resultantes são bastante elevadas.

A condenação por maioria simples assume particular gravidade no tocante aos crimes de competência do Tribunal do Júri porque, de um lado, a decisão proferida pelos jurados não é motivada e, de outro, a apelação fica adstrita a certos fundamentos expressamente determinados pela lei (quando ocorrer nulidade posterior à pronúncia; a sentença do juiz presidente contrariar a lei expressa ou a decisão dos jurados; houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; e quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos). Além disso, houve supressão do protesto por novo júri na reforma realizada pela Lei nº 11.689/08. Ou seja, remanesceu a possibilidade de condenação por maioria simples, com reduzidas perspectivas de novo julgamento pelo Tribunal do Júri. 

Por todas essas razões, no Projeto de Reforma do Código de Processo Penal, de nº 156/09, oriundo do anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas criada pelo Requerimento nº 227, de 2008, do Senado Federal, optou-se por ampliar o número de jurados integrantes do Conselho de Sentença de sete para oito.
Na sistemática do Projeto em comento, o empate favorece a defesa, portanto, as condenações só podem se dar por maioria qualificada (5 votos a 3, pelo menos).(1) A mesma disciplina foi mantida no primeiro substitutivo apresentado a partir do Projeto de Lei nº 156/09 e da análise de 47 outras proposições.
Sem dúvida alguma, a principal inovação – e digna de aplausos – do novo Código de Processo Penal no procedimento do Tribunal do Júri era essa. 

No entanto, no segundo substitutivo apresentado, que já foi aprovado em primeiro turno pelo plenário do Senado*, marcante retrocesso ocorreu com o retorno ao status quo ante. Eliminou-se a formação do Conselho de Sentença por oito jurados, voltando ele a ser integrado por sete jurados, tal qual se verifica na atual sistemática. 

Argumentou-se que a defesa sairia francamente favorecida com a possibilidade de absolvição pelo empate e que as condenações dificilmente ocorreriam. No entanto, quer-nos parecer que questão de tão graves decorrências para o individuo que se vê condenado pelo Tribunal do Júri à elevada pena, sem decisão fundamentada para tanto, com reduzidíssimas possibilidades de novo julgamento, não pode ser discutida a partir desses parâmetros. 

A ótica constitucional aponta para raciocínio totalmente diverso: o Estado brasileiro elegeu a dignidade humana como um de seus fundamentos e a adoção da maioria qualificada como requisito para condenação no Tribunal do Júri com ela condiz inteiramente. É o mínimo de garantia que se pode fornecer ao acusado no Tribunal do Júri que, em contrapartida, poderá ter contra si prolatada condenação sem fundamentação e com possibilidades limitadas de novo julgamento. Em outras palavras: o critério da maioria qualificada para condenações no Tribunal do Júri restabelece um equilíbrio até então inexistente entre os acusados de quaisquer outros delitos e os acusados julgados pelo Tribunal do Júri. Isto porque, no Tribunal do Júri, por seus contornos constitucionais, em especial, sua natureza e formação por juízes leigos e pela soberania de seus veredictos, operam-se relevantes restrições de direitos fundamentais que qualquer acusado tem: o direito ao provimento jurisdicional motivado, a teor do que prescreve o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal e o direito ao duplo grau de jurisdição, em toda sua extensão, extraído da cláusula do devido processo legal, art. 5o, inciso LIV, do Texto Constitucional. 

Por outro lado, para não perpetuar o atual quadro de desigualdade e iniquidade entre os acusados julgados pelo Tribunal do Júri e os demais, ainda que não se mantivesse, no novo Código de Processo Penal, a exigência de condenação por maioria qualificada, para suplantar o problema, poder-se-ia pensar na recriação do protesto por novo júri. Não nos moldes anteriormente vigentes, calcado exclusivamente no quantum de pena resultante da condenação no Tribunal do Júri, mas baseado exatamente no critério da condenação por maioria simples. 

A esse respeito, escreveu, na doutrina, o eminente Professor Gustavo Badaró,(2) recordando que, em legislações estaduais passadas, já adotou-se, como fundamento do protesto por novo júri, a condenação por maioria simples, citando nesse sentido, entre outros, os diplomas paulistas consubstanciados na Lei estadual nº 18, de 21.11.1891, na Lei estadual nº 80, de 25.08.1892, e no Decreto nº 1.575, de 19.02.1908.

Não é de se argumentar, em oposição a tal proposta, que o sigilo da votação seria desprotegido. É que a apuração por quatro votos a três não evidencia quem teria votado pela condenação ou pela absolvição. Ademais, pode-se manter também a inexistência de declaração do resultado, como bem pondera Gustavo Badaró,(3) no mesmo escrito antes citado, limitando-se o juiz presidente, após a conferência das cédulas, a proclamar que, por maioria de um voto, o quesito atinente à absolvição foi respondido negativamente, admitindo-se, assim, o protesto por novo júri.

Seja adotando a exigência de maioria qualificada para condenar – o que nos parece mais adequado – seja recriando o protesto por novo júri, para as hipóteses de condenações por maioria simples, como alternativa, o problema precisa ser superado, prestigiando a dignidade humana e reduzindo as desigualdades entre os acusados submetidos ao Tribunal do Júri e os julgados por outros delitos que não são de sua competência. Só há sentido na reforma processual penal ampla, que origine novo Código, se as grandes questões – como a condenação por maioria simples no Júri – forem enfrentadas e superadas. Caso contrário, não há reforma, mas apego e repetição das velhas fórmulas. Em uma só frase: é preciso ousar!! 

* Observação: o artigo foi remetido ao Conselho Editorial em 3 de dezembro. No dia 8, o Projeto de Lei foi aprovado, em segundo turno, no que pertine ao tema aqui debatido, nos mesmos termos aprovados em primeiro turno.

NOTAS 

(1) “Art. 369. Verificando que se encontram na urna as cédulas relativas aos jurados presentes, o juiz presidente sorteará 08 (oito) dentre eles para a formação do Conselho de Sentença.” “Art. 385. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – se deve ser o acusado ser absolvido; II – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; III – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia. (...) § 2o Respondido positivamente o primeiro quesito por 04 (quatro) jurados, o juiz presidente encerrará a votação, proferindo sentença absolutória”.
(2) BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Tribunal do júri. Lei 11.689, de 09.06.2008. In: As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma, org. por Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: RT, 2008, p. 241.
(3) BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ob.cit.,p. 241.


Maria Elizabeth Queijo, Advogada. Mestre e doutora em Processo Penal pela USP.


QUEIJO, Maria Elizabeth. Tribunal do júri: a evolução que não se consolidou na reforma In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 04-05, jan., 2011.

 

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