sábado, 22 de janeiro de 2011

Artigo: Senhor legislador, por favor, descriminalize as nossas contravenções penais!

Por Guilherme gouvêa de figueiredo

O tempo presente se singulariza pela ruptura e pelo casuísmo. Ruptura e casuísmo que sugerem, atentos nós a um específico nódulo de preocupações, um esfumaçar dos limites entre o direito penal e o administrativo.

Como refere Silva Sánchez, é uma característica do direito penal contemporâneo ter vindo a se afirmar na tutela de “contextos” cada vez mais amplos, como proteção antecipada de condições para o desfrute dos bens jurídicos mais clássicos (como a vida ou o patrimônio).(1) Assiste-se, desse modo, uma “dissolução” do conceito de bem jurídico quando, deixando de se circunscrever a interesses pessoais claramente referenciáveis, passa a abranger novas necessidades coletivas ou “unidades funcionais de valor”.(2) O que, na visão de Baratta, acaba por redundar numa mudança de rumo e orientação tanto no nível políticocriminal quanto no dogmático.(3) Portanto, do ponto de vista prático, “os legisladores têm promulgado e promulgam numerosas novas leis penais e as respectivas rationes legis (...) são acedidas de modo imediato à condição de bens jurídicos protegíveis (já que estão protegidos)”.(4) À noção de bem jurídico, antes alçada como ponto fulcral do discurso descriminalizante, passa-se a atribuir uma função criminalizante, na medida em que legitima a intervenção penal sempre que haja a efetiva proteção legal.(5) 

Se antes o direito penal se servia do bem jurídico, como referente material a suportar o tipo e como base da ilicitude material, agora, orientado à proteção de “funções” cada vez mais amplas e de desenho cada vez menos apreensível, àquele conceito não se pode pedir muito. Percebe-se que, de um domínio que se concentrava em responder à lesão a bens individuais, transmuda-se (o direito penal) num outro que passa a intervir logo quando se exponha a perigo (abstrato) bens supraindividuais. Desse modo, para além do bem jurídico, que se tem por referência, ser pouco preciso – o que dificulta ou impossibilita seu potencial crítico e fundamentador do tipo –, o legislador opta por técnicas de incriminação em que o elo entre tipo de ilícito e bem jurídico existe apenas como ratio legis não sujeita a constatação no momento de aplicar o tipo. Em outras palavras, não é possível (ou necessário) comprovar um resultado desvalioso – mesmo que seja um resultado de perigo – para o bem jurídico que se tem por meta proteger.

Administrativização do direito penal significa, portanto, a assunção de uma nova postura político-criminal por parte do legislador. À custa do abandono do conteúdo liberal do conceito de bem jurídico, e com todas as implicações dogmáticas que daí advm, diz-se que o direito penal se administrativizou: “essa orientação à proteção de contextos cada vez mais genéricos (no espaço e no tempo) do desfrute dos bens jurídicos clássicos, leva o direito penal a entrar em relação com fenômenos de dimensões estruturais, globais ou sistêmicas, nos quais as aportações individuais, são, pelo contrário, de ‘baixa intensidade’”.(6) Como o que se protege são contextos genéricos e de questionável potencialidade crítica, o direito penal é levado a responder, com seus instrumentos próprios de atuação, tão logo se contravenha os standards estabelecidos pela Administração. Rompendo com a tradição de se orientar à salvaguarda de bens jurídicos concretos e determinados e reagir a formas de lesão ou periculosidade também concretas e determináveis, o direito penal vê-se vocacionado, tal como o direito administrativo sancionador, a perseguir funções de ordenação de setores da atividade administrativa. 

Ora, se é no direito penal secundário em que se percebem, com clareza e atualidade, manifestações desta administrativização do direito penal – atentemos para a recente inflação legislativa, a proliferação de bens jurídicos nebulosos (v.g., o meio ambiente, a ordem econômica etc.), o recurso indiscriminado à figura típica do perigo abstrato, a extrema dependência administrativa dos tipos –, não seria, em contrapartida, desarrazoado afirmar que o sistema jurídico-penal brasileiro guarda ainda um exemplo nada novo e particularmente expressivo de tudo isso: a Lei de Contravenções Penais. 

De fato, no Brasil, ainda vigoram as Contravenções Penais (Dec.-lei 3.688, de 03 de outubro de 1941) que exemplificam, de forma impressiva, a incongruência do nosso sistema punitivo e a falta de linearidade dos seus pressupostos de legitimação. A vigência da Lei de Contravenções Penais é, assim, um exemplo de um sistema penal casuísta, desapegado de preocupações científicas e, mais grave, desatento à exigência político-criminal de um direito penal mínimo e, ao mesmo tempo, eficaz. Na Lei de Contravenções Penais, estão definidas infrações que, na sua quase totalidade, não são ofensivas a bens jurídico-penais. Estão, por outro lado, previstas outras condutas que, mesmo ofensivas a bens jurídicos, poderiam muito bem ser objeto de punição, de forma menos agressiva e mais eficaz, de outro ramo do direito: o direito administrativo sancionador.

Ora, o que devemos esperar do direito penal de hoje? A pergunta, que pode ser extremamente intricada, perderá em complexidade se a resposta se buscar pelo avesso. Não se pode esperar do direito penal que ele assuma compromissos que não lhe cabem, que fogem do seu eixo de preocupações. E este eixo, por mais figurativo ou provisório que possa parecer, não o é: cumpre ao direito penal a tarefa de proteger, de forma subsidiária, bens jurídicos fundamentais. Desta breve proposição de política criminal deriva todo um programa dotado de uma intencionalidade apta a orientar de forma acertada as escolhas do legislador. Uma intencionalidade que, pensamos, se condensa em duas grandes linhas de força: o merecimento e a necessidade de pena. 

Se é assim, e se a opção político-legislativa pelas contravenções penais é, por variados prismas, abominável, devemos empreender uma interpretação das vigentes contravenções penais à luz destes dois princípios legitimadores. Com uma tal interpretação demonstra-se a necessidade de descriminalização das vigentes contravenções penais e, quando oportuna, a sua conversão em ilícitos administrativos. 

Fruto do movimento de descriminalização, que ganhou força na Europa do pós-guerra, foi a discussão em torno das contravenções e sua conversão em contraordenações. Em outras palavras, um dos sintomas do movimento de descriminalização foi a afirmação definitiva de uma nova categoria (não penal) de ilícito – o ilícito de mera ordenação social ou ilícito administrativo sancionador –, para o qual deveriam ser remetidas todas as condutas de questionável relevo ético, com exceção das que deveriam ser extirpadas, pura e simplesmente, da ordem jurídica. Era, por outro lado e progressivamente, o fim daquela categoria (penal) à qual pertencia a maioria dessas condutas – as contravenções.

Portanto, a distinção entre o ilícito penal e o ilícito administrativo está longe de ser algo carente de efeito prático-jurídico, nomeadamente na realidade jurídica brasileira. Em tempos nos quais o Direito Penal se expande de forma aleatória, cabe ao direito administrativo sancionador um lugar fundamental, como instrumento legislativo atento ao paradigma da intervenção mínima, nomeadamente na sua vertente descriminalizadora. É, pois, tempo de repensar a função sancionatória do direito administrativo. Visto e revisto, o direito administrativo sancionador aponta, de forma absoluta, para a incoerência político-criminal das vetustas contravenções penais e oferece um instrumento de apoio para o Direito Penal secundário. Assunto extremamente atual e carente de contribuições doutrinárias, tão mais urgentes quanto mais se nota, na realidade legislativa brasileira, a edição de crimes desmesuradamente na parte extra codicem, sem importar-se o legislador com a efetiva ofensividade dos tipos legais (inflação legislativa) ou com sua eficácia preventiva. 

NOTAS

(1) Cf. SILVA SÁNCHEZ. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal de las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999,p. 122.
(2) A expressão é de Rudolphi, apud HASSEMER. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico, Doctrina Penal, año 12, nº 45 a 48, Buenos Aires, 1989,p. 279.
(3) Cf. BARATTA. Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena dentro de la teoría sistémica, Doctrina Penal, nº 29, 1985, p. 11.
(4) Cf. SILVA SÁNCHEZ. Expansión,p. 122.
(5) Cf. HASSEMER. Teoría personal del bien jurídico,p. 278.
(6) Cf. SILVA SÁNCHEZ. Expansión,p. 122.


Guilherme Gouvêa de Figueiredo, Professor de Direito Penal e Criminologia (UNESP). Professor de Processo penal da FAFRAM. Professor pesquisador (UNESP-CNPQ). Mestre e especialista em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Advogado criminal.

 
FIGUEIRODO, gouvêa de figueiredo. Senhor legislador, por favor, descriminalize as nossas contravenções penais! In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 05-06, jan., 2011.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog