domingo, 17 de agosto de 2008

Morreu Juan Bustos Ramírez: um perseguido pelo Direito penal do inimigo

A ciência do Direito penal perdeu, no dia 7 de agosto de 2008, um dos seus mais brilhantes atores: Juan José Bustos Ramírez que, além de penalista emérito, era presidente da Câmara dos Deputados no Chile. Morreu aos 72 anos, depois de uma carreira acadêmica e política invejável, porém, repleta de obstáculos e superações. A notícia (que muito nos entristeceu) foi publicada no El País de 8/8/08, p. 7, em obituário assinado por Hermán Hormazábal Malarée (com quem Bustos publicou várias obras de Direito penal, de Criminologia e de Política criminal). Morreu como catedrático de Direito penal da Universidade do Chile, mas antes, como se sabe, passou (desde 1976) por várias outras Universidades na Espanha (Lérida, La Laguna-Tenerife e Autônoma de Barcelona).

No ano de 1973, em razão da perseguição política de que foi vítima, perseguição essa desencadeada pelo governo ditatorial de Pinochet, foi obrigado a exilar-se em Honduras e, depois, na Argentina, onde acabou sendo preso pela polícia política do general Videla, a pedido (claro) do general Pinochet.

Saiu do cárcere em virtude da intervenção de Armin Kaufmann, que era catedrático de Direito penal em Bonn e lhe ofereceu uma bolsa de estudos (na Alemanha) em nome da Fundação Alexander von Humboldt. Tornou-se doutor em Direito penal pela Complutense de Madrid (tendo sido dirigido por Juan del Rosal). Em seguida se doutorou novamente na Alemanha, sob a orientação de Hans Welzel (Bustos, aliás, foi um dos tradutores da sua obra, tendo facilitado a todos nós latinoamericanos o acesso à doutrina finalista). Em 1990 retornou para o Chile, onde se reincorporou à vida política e acadêmica, tendo se transformado, como advogado, num tenaz acusador das violações dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, defensor das vítimas desses abusos.

Em razão da sua grande preparação jurídica e científico-social acabou se destacando com numerosas publicações na comunidade universitária espanhola e sulamericana. Nelas sempre enfatizou, desde a filosofia política do Estado social e democrático de Direito, “um pensamento crítico do sistema penal vigente”.

Por mais paradoxal que possa parecer, o Direito penal do inimigo, como se vê, também elege como seus inimigos alguns amantes (cientistas) do próprio Direito penal. Juan Bustos Ramírez integra uma longa lista de penalistas ou filósofos (históricos) que foram perseguidos e até mesmo mortos por defenderem seus ideais, seus direitos assim como as garantias fundamentais de todas as pessoas (ainda que em tempos de autoritarismo).

Os tempos de autoritarismo, aliás, como enfatiza Zaffaroni (El enemigo en el Derecho penal, Bogotá: Ibãnez, 2006, p. 232), não podem ser enfocados como tempos de resignação nem de pessimismo, senão de prova para o Direito penal. Não podemos esquecer que nossos próceres (praticamente) nunca tiveram vidas tranqüilas: Spee correu sério risco de acabar numa fogueira, Beccaria publicou livro no anonimato, Pagano foi fuzilado, Marat morreu apunhado numa banheira, Rossi foi esfaqueado, Feuerbach teria sido morto por envenenamento, Romagnosi foi processado, Carmignani foi condenado ao esquecimento, Mello Freire foi denunciado à Inquisição, Lardizábal foi defestrado e ignorado etc. Nessa longa e (desgraçadamente) interminável lista devemos incluir, dentre tantos outros, Manuel Rivacoba, que foi perseguido pelo governo ditatorial de Franco, na Espanha. Lá permaneceu preso por vários anos, tendo se exilado depois precisamente no Chile.

Interessante a coincidência dos caminhos invertidos: Bustos foi perseguido e preso no Chile e depois acabou sendo catedrático na Espanha. Com Rivacoba deu-se o inverso.

E o que há de comum entre todos os penalistas perseguidos e, às vezes, mortos? Nenhum deles dobrou-se ao Zeitgeist, ou seja, ao espírito (autoritário, arbitrário) do seu tempo. Seria um absurdo negar (nos diz Zaffaroni) “que neste momento estamos assistindo a um avanço autoritário mundial em matéria penal, que está pondo em crise os Estados de Direito, mas isso não pode nos conduzir ao pessimismo ou mesmo nos deixar levar pelo espírito do tempo (Zeitgeist)”.

Aceitar (numa postura conformista deplorável) esse autoritarismo mundial significa “permitir que o Direito penal se deteriore e se degrade a um discurso legitimante dessa desarrazoada situação”.

Bustos (como bem sublinhou Hermán) se destacou como jurista em razão da sua coerência e, sobretudo, da sua qualidade humana. Acreditava na democracia e no valor do Direito como instrumento político para o seu desenvolvimento e aprofundamento. Com sua morte perdemos um grande jurista, um grande mestre, um grande político, em síntese, um denodado ser humano que jamais foi cúmplice da ideologia do Direito penal do inimigo. Agora somente nos restam suas obras e seu glorioso exemplo.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da rede de ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça.

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