terça-feira, 12 de agosto de 2008

Artigo: Três reflexões sobre o novo processo do tribunal do júri

Veio a lume o novo procedimento do júri, inspirado na racionalização e simplificação. Das inúmeras inovações, três têm alcance na estrutura e vida do processo penal.

A nova lei afastou-se em boa hora do projeto original que extinguia o sumário de culpa, e manteve a sua ordenação básica tal qual no Código vigente, estruturando-a entre o recebimento da denúncia e a pronúncia, sob a denominação de instrução preliminar. Porém, como no projeto, a nova lei suprimiu a oferta do libelo-crime acusatório. Em seu lugar previu um relatório do juiz que será distribuído junto com a decisão de pronúncia ao jurado, após o compromisso do conselho de sentença (arts. 423, II, e 472, parágrafo único). Seguem a instrução e os debates.

Evidencia-se que foi rompida a autonomia do juízo da causa em relação ao juízo de culpa, própria do processo bifásico, pois se vinculou a pronúncia imediatamente à oferta do relatório do punho do juiz, na outra fase, quando a lei anterior exigia um ato postulatório da parte acusatória. Este fato tem relevância porque a ruptura se faz com a liberalidade da dispensa da formalização da acusação pela parte, tal qual admitida pela pronúncia, e não como denunciada.

Daí resulta que, na nova lei, quem afinal acusa é o juiz pronunciante, e não a parte. E tanto é assim que a instrução em plenário se inicia sem que o jurado e a defesa técnica tenham acesso a uma única palavra sobre os termos da acusação, por quem deve fazê-la. Inacreditavelmente, o acusador só irá se pronunciar sobre o que quer no já adiantado do julgamento, quando dos debates. O absurdo é tão patente que a lei, contraditoriamente, proíbe o uso da pronúncia como argumento de autoridade nos debates (art. 478, I). Corretamente veda a lei o uso retórico da pronúncia, mas abusa dela para substituir ato da própria parte e formalizar a acusação.

Caberá refletir sobre a conformação disso ao Devido Processo Penal, particularmente à luz do princípio acusatório. Curvada ao argumento falacioso e repetido ad nauseam de que o libelo é fonte inesgotável de nulidades, a nova lei incumbiu o juiz de suprir inércia da parte acusatória, e reservou a ele a oportunidade de gerar a nulidade ao redigir relatório, quando lhe incumbiria garantir legalidade. O problema desperta interesse do controle de constitucionalidade.

Foi saudada a simplificação dos quesitos, particularmente a unificação das teses absolutórias em uma pergunta. Temos aqui o estabelecimento do julgamento instantâneo, que muito seduz, mas do qual ainda haverá o que se lamentar.

Sintetizar a oportunidade do acusado de livrar-se da condenação numa única pergunta concede a vantagem de permitir a formação da maioria pela vontade e sem atenção aos motivos.

Porém, sintetizar isso num regime de plena incomunicabilidade dos jurados impede a formação da vontade pela maioria refletida: a dúvida que impedia absolver na primeira tese cede diante da percepção de que outros assim já pensavam, e assim sucessivamente, até que no exame da segunda ou terceira tese surge a maioria.

Mais ainda, sintetizar impede saber a coerência lógica do raciocínio condenatório e impede o controle de verossimilhança da decisão condenatória com a prova dos autos, de modo que veda o julgamento do recurso de apelação do acusado em termos adequados.

Não estamos aqui diante de um vício da magnitude do anterior, pois a desconformidade não é irreconciliável com o Devido Processo Penal. Porém, a depender do comportamento da jurisprudência na tarefa de conformação da aplicação da lei aos valores constitucionais, ainda haverá o dia em que os aplausos se farão lamentos dos que não sabem as razões da condenação.

Por fim, e esta era a resposta que o governo queria dar à sociedade indignada com os problemas fundiários no país, extinguiu-se o protesto por novo júri, o bode expiatório da absolvição no caso do Pará.

Nestes tempos em que doutos e autoridades se queixam da vassalagem à acusação e do pacto de bem viver entre funcionários do sistema de justiça, é de se questionar a conveniência política de privar o cidadão de um mecanismo de controle inercial contra condenações abusivas.

Só o tempo dirá se há razão na desconfiança, mas que os vingadores sociais estão a festejar, isso lá estão. Preparem-se os réus.

Estas três alterações relevantes, e que suscitam problemas em níveis diferenciados de reflexão, têm em comum evidenciar que não houve racionalização ou simplificação do procedimento. O que confunde papéis constitucionais, dificulta o acesso aos elementos do julgamento, e reduz a esfera de proteção dos acusados não corresponde a isso.

Luis Fernando Camargo Vidal
Juiz de Direito em São Paulo

Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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