quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Artigo: Tráfico de drogas ilícitas sempre é crime "hediondo"?

Com o advento da Lei 11.343/06, ficaram revogadas as Leis 6.368/76 e 10.409/02.

Antes, punia-se o comércio de drogas ilícitas com reclusão de 3 a 15 anos; agora, a pena varia entre 5 e 15 anos. Entretanto, por força do § 4° do art. 33 do novel diploma legal, deverá a reprimenda ser reduzida em até dois terços, desde que seja o condenado por tráfico primário, de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

O presente artigo tem como meta questionar sobre se a introdução desse dispositivo não afastou o cariz de equiparado aos crimes hediondos dos delitos de tráfico de drogas praticados nos moldes em questão (tráfico de entorpecentes privilegiado[1]), numa interpretação de acordo com os princípios constitucionais da Isonomia e da Proporcionalidade, bem como a partir de uma visão sistemática do ordenamento jurídico, tendo-se em vista o entendimento segundo o qual não se deve considerar hediondo o crime de homicídio qualificado-privilegiado.[2]

Com efeito, a igualdade de tratamento de todos perante a lei encontra assento na Constituição Federal, em cujo Preâmbulo vem expressa menção ao princípio da Isonomia, além de dispor a Carta Política, em seu art. 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”.

A justificar o porquê da preocupação do legislador constituinte com a matéria, oportuno é o pensamento de Silva: "porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais (...)"[3].

Refere a Doutrina existirem duas dimensões do postulado em apreço. Fala-se em igualdade material e igualdade formal. A primeira, no dizer de Marcelo Amaral da Silva, deve constituir-se de um “tratamento equânime e uniformizado de todos os seres humanos, bem como a sua equiparação no que diz respeito à possibilidades de concessão de oportunidades” [4]; a segunda, “seria a pura identidade de direitos e deveres concedidos aos membros da coletividade através dos textos legais”. [5]

Isto é, numa democracia não basta haver entre todos os seres humanos igualdade na lei, imperioso haja também igualdade frente à lei, como se vê: “Leis penais que tipifiquem condutas iguais como ensejadoras do mesmo delito, mas que impõem penas quantitativamente e qualitativamente desiguais ofendem, a um só tempo, os princípio da proporcionalidade e da humanização da pena e, portanto, desatendem, ainda, ao princípio da igualdade.”[6]

Nesse passo, segundo pensamos, imperioso tenha o Poder Público por baliza a máxima aristotélica de que isonomia é tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualem.[7]

Importante ainda lembrar estar do mesmo modo o princípio da Igualdade contemplado em vários dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos[8] -, razão também pela qual, segundo Flávia Piovesan, possui statusconstitucional em nosso ordenamento jurídico, por força dos §§ 2º e 3º do artigo 5º da CF[9].

De outra banda, o princípio da Proporcionalidade tem sua origem, segundo Suzana de Toledo Barros[10], com o surgimento do Estado de Direito burguês, na Europa, quando teve por escopo preservar os direitos e garantias individuais do homem contra os excessos dos soberanos.

Assim, tem-se que tal postulado, embora tenha sido criado em nível do direito administrativo, a partir do Iluminismo migrou para o direito constitucional, na visão de Pereira e Sampaio: “A inserção deste princípio no campo constitucional, por sua vez, deveu-se às revoluções burguesas do século XVIII, norteadas pela doutrina iluminista principalmente no que concernia à crença na intangibilidade do homem e na necessidade incondicionada de respeito à sua dignidade”[11].

Como mostra J.J. Gomes Canotilho,[12]foi na transposição entre o Estado absolutista, em que o governante tudo podia, para o Estado de Direito, quando o governo pode o que a lei lhe faculta, é que se viu nascer o princípio da Proporcionalidade, com o fito de limitar o poder do rei em relação aos seus súditos. Segundo Guerra Filho[13], a gênese do Estado de Direito estaria na Magna Carta inglesa, de 1215, na qual se vê claramente o reclame de proporcionalidade oposto ao exercício do poder estatal: “O homem livre não deve ser punido por um delito menor, senão na medida desse delito, e por um grave delito ele deve ser punido de acordo com a gravidade do delito”.

Diante de tais postulados, entendemos haver maltrato à CF pela exegese segunda qual deva incidir a Lei 8.072/90 sobre as condenações com fundamento no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06.

Com efeito, ao prescrever o dispositivo em comento a possibilidade de uma redução de pena, nos delitos definidos no caput e no § 1º do artigo 33, de um sexto a dois terços, desde que o agente seja “primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”[14], tem-se que a nova pena prevista para o condenado, cuja conduta se subsuma na moldura legal, terá um mínimo de 1 (um) ano e 8 (oito) meses, ou seja, menos 2/3 (dois terços) sobre 5 (cinco) anos.

Como se vê, a reprimenda, em casos que tais, guarda similitude com o quantum reservado aos crimes de menor potencial ofensivo[15], que são, como se sabe, aqueles cuja pena máxima não exceda a dois anos[16].

Na mesma senda, a maior parte dos crimes de médio potencial ofensivo[17] - aqueles cuja pena mínima não seja superior a 1 (um) ano[18] - possuem previsão de um patamar máximo bem mais alto do que aquela em discussão, v.g. os crimes de furto e apropriação indébita (quatro anos); ou o de estelionato (cinco anos)[19].

Quer dizer: a se considerar passível da incidência da Lei dos Crimes Hediondos toda e qualquer condenação pela Lei de Tóxicos, poder-se-á dar ensejo à desarrazoada situação de se tratar alguém que seja condenado a uma pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses (por ser primário, ter bons antecedentes, não integrar organização criminosa, etc) de maneira mais severa do que a outro que tenha sofrido uma condenação de 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos de reclusão, pena imposta no patamar máximo, diante das suas péssimas condições judiciais e legais.

Tal alvitre, nos parece, fere de morte os princípios constitucionais antes referidos (Isonomia e Proporcionalidade).

Não bastasse a incompatibilidade de ordem constitucional, também a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, força é convir não se poder rotular de hedionda a conduta de quem seja condenado nas iras do § 4º do art. 33 da Lei de Tóxicos.
Isso porque, como é consabido, o entendimento majoritário na Doutrina[20] e na Jurisprudência[21] é no sentido de não se considerar hediondo o crime de homicídio qualificado-privilegiado, por não estar prevista, na Lei 8.072/90, a combinação dos parágrafos 1º e 2º do art. 121 do CP.

Do mesmo modo, segundo pensamos, seria desproporcional considerar hedionda uma conduta (criminosa) que sofresse significativa minoração de pena por ser considerada “privilegiada”.

Nesse fio, como o delito de homicídio qualificado recebe a denominação de “privilegiado” em face da incidência da minorante prevista no § 1º do art. 121 do CP (de um sexto a um terço), igualmente o crime de tráfico de drogas (na situação em tela) deverá receber esse tratamento, e também pela presença de uma minorante, aquela prevista no § 4º do art. 33 da Lei 10.343/06 (um a dois terços), a qual, ademais, é bem mais importante do que primeira, porque pode reduzir a pena em quantum muito maior (duas vezes mais: dois terços x um terço). Demais disso, também não há previsão legal, na Lei 8.072/90, para o trafico de drogas privilegiado (exatamente como acontece com o homicídio qualificado-privilegiado).

Ora, diante de tais constatações, indaga-se: se o crime de homicídio qualificado-privilegiado não é considerado hediondo, por que deveria sê-lo o delito de tráfico de entorpecentes privilegiado?

Resumindo: em nossa opinião, em homenagem aos princípios constitucionais da Isonomia, este previsto expressamente no caput do art. 5º da CF, e da Proporcionalidade, o qual "(...) ostenta consagração constitucional (ao menos implícita) também no Brasil"[22], não se pode fazer incidir os gravames da Lei 8.072/90 sobre os condenados nas sanções do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 - tráfico de entorpecentes privilegiado -, por absoluta incompatibilidade constitucional.

O mesmo se diga a partir de uma interpretação sistemática das disposições legais em testilha, porque os delitos de homicídio qualificado e tráfico de entorpecentes recebem a condição de “privilegiados” pela mesma razão (incidência de uma minorante). Logo, se o primeiro não é hediondo, o segundo também não pode sê-lo.

Com isso se quer dizer que cabe ao Poder Judiciário, como garantidor das franquias constitucionais do cidadão, impedir a interpretação de um dispositivo legal de forma draconiana, hermenêutica que não encontra - e até por isso mesmo - recepção na nova ordem vigente. Não se trata - sublinhe-se - de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes, mas de mera interpretação das Leis (Lei de Tóxicos e Lei dos Crimes Hediondos) de acordo com a Carta Política[23] e com a integralidade do sistema.

[1] Expressão cunhada pelo eminente LUIZ FLÁVIO GOMES, in GOMES, Luiz Flávio et al. Nova lei de drogas comentada - Lei n. 11.343, de 23/8/06, ed. RT, 2006, p.172.

[2] Por todos, FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 4ª edição. São Paulo: RT, 2007, pg. 268

[3] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: RT, 1993, p.195

[4] SILVA, Marcelo Amaral da. Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4143 abril/2003.

[5] Ob. cit.

[6] FRANCO, Alberto Silva..[et al.]. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, volume 2. 6ª ed. rev. e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pg 2081

[7] ARISTÓTELES. A Política. [Tradução: Torrieri Guinmarães]. São Paulo: Martins Claret, 2002, pg. 272.

[8]Apenas como exemplo, cita-se o art. 8º Garantias Judiciais: 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (sublinhei)

[9] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional, 4.ª ed. rev., atual. e. ampl. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 231-232.

[10] BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília, Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 35,

[11] SOUZA, Carlos Affonso Pereira de e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional. Disponível em http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/cafpatrz.html#ftn22. Acesso em out/2007.

[12] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 1998, p. 260.

[13] FILHO, Willis Santiago Guerra. Teoria processual da constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, pg. 75.

[14] Art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06.

[15] Art. 2º, § único, da Lei 10.259/01.

[16] Ao nosso sentir, é direito público subjetivo do condenado que reúna os pressupostos ter ele a redução prevista na Lei. Portanto, para quem se enquadre na previsão legal, a pena concretamente aplicada deverá ser próxima àquela resultante da redução pelo patamar máximo (dois terços) sobre o quantum mínimo previsto abstratamente (cinco anos).

[17] GOMES, Luiz Flávio. REFORMAS PENAIS – Investigação preliminar. Disponível na internet em http://www.juspodivm.com.br// . Acesso em outubro de 2007.

[18] Art. 89 da lei 9.099/95.

[19] Nestes casos, ainda que a pena seja fixada no máximo, é evidente que os condenados não sofrerão a incidência da Lei dos Crimes Hediondos, por falta de previsão legal.

[20] FRANCO, Alberto Silva, ob. cit., pg. 268

[21] Foi como se posicionou o STJ, no julgamento do habeas corpus n. 18.261/RJ.

[22]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade, pg. 59.

[23] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p.230.


César Peres, Advogado criminalista/RS, Advogado Criminalista em Porto Alegre, Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na ULBRA - Gravataí/RS


PERES, César. Tráfico de drogas ilícitas sempre é crime "hediondo"?. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 07.08.2008.

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