sábado, 9 de agosto de 2008

Artigo: Reafirmar os direitos humanos

Há 60 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A 2ª Grande Guerra Mundial havia deixado um rastro de destruição, sofrimentos e morte em muitos países envolvidos no conflito; como se não bastassem os horrores da guerra, regimes totalitários promoveram uma série de atrocidades contra pessoas, muitas vezes, por mero preconceito racial, cultural e ideológico.

A solene Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU foi uma decisão política da mais alta relevância; pela primeira vez na História da humanidade houve um consenso tão amplo entre os governantes das nações sobre o respeito devido à pessoa humana. Triunfava a convicção que nenhum Estado ou regime deveria mais esmagar o ser humano, que está na origem dos Estados e constitui a razão de ser de sua existência. Daí por diante, os próprios Estados e governos passariam a ser avaliados e julgados pelos demais em função do respeito, ou não, aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Os signatários da Declaração vetavam, daí por diante, quaisquer pretensões de superioridade de um povo sobre outro por critérios raciais, culturais, econômicos ou outros e estabeleciam as bases para uma verdadeira convivência humana. Na raiz dos artigos da Carta Magna dos direitos humanos está o reconhecimento da inalienável dignidade de cada membro da nossa espécie; dignidade que não é outorgada por benemerência, nem decorre de condições extrínsecas, como a raça, cor, religião, sexo, condição social, econômica ou cultural, mas do simples fato da pertença à família humana. Cada ser humano é um semelhante a nós e, por isso, sua dignidade é igual à nossa; a ofensa ao próximo também fere a nossa dignidade e a dos demais seres humanos, merecendo por isso a firme repulsa de todos.

Não há dúvida que a Declaração dos Direitos Humanos representou um marco ético importantíssimo na civilização e na convivência entre os povos; sua promoção e seu efetivo respeito mostram o grau de civilização a que chegaram; ao contrário, a negação teórica ou prática desses direitos sinaliza o caminho do retrocesso à barbárie. Passados 60 anos, resta saber se os artigos da Declaração já foram plenamente assimilados na vida cotidiana dos povos e dos países signatários. Apesar dos avanços significativos na cultura dos direitos humanos, ainda há muito por fazer. Sobretudo, é preciso vigiar para que esses direitos não sejam relativizados.

Infelizmente, há sinais preocupantes de um retrocesso na questão dos direitos humanos, como se pode perceber na violência constante, difusa e gratuita contra cidadãos indefesos, ou no desrespeito a pessoas motivado por preconceitos de vários tipos. Mas também a afirmação exacerbada de direitos individuais e subjetivos pode passar por cima de direitos primários do próximo. Assim, as propostas de legalização do aborto e da eutanásia atropelam o direito à vida, o primeiro e mais fundamental direito de outros seres humanos e que não pode ser negociado em função da vantagem ou da utilidade de terceiros. A dignidade e o direito à vida de seres humanos frágeis, com alguma deficiência ou ainda não nascidos são ameaçados por discursos enganosos, que tratam da supressão da vida desses seres humanos como se isso pudesse constituir-se num direito de alguém, ou apelando para a vantagem e a utilidade de semelhantes medidas para a sociedade.

Mas os direitos fundamentais também são desprezados na apropriação indevida de bens públicos ou privados, na violência gratuita, nos seqüestros, nas prisões prolongadas sem julgamento e nos assassinatos em quantidade assustadora que acontecem todos os dias. Da mesma forma preocupam os casos de trabalho escravo, a exploração sexual de crianças, adolescentes e adultos, bem como o tráfico de pessoas, drogas e armas. E quem vê, nas periferias urbanas, gente vivendo em condições subumanas sobre valas de esgoto a céu aberto, ou amontoadas em cortiços e favelas, sente que a dignidade ferida dessas pessoas também mexe com a sua própria dignidade.

Em tempos de flagrante violação dos direitos humanos, como aconteceu no Brasil no período da ditadura e da repressão política, a sua defesa e a sua afirmação conseguem recolher adesões com certa facilidade. Nem sempre acontece a mesma coisa em tempos de paz e o risco é o torpor das consciências, sem que haja mais a mesma capacidade de reação diante dos fatos. Faz-se, pois, necessário manter sempre viva a memória dos acontecimentos e a vigilância de toda a sociedade sobre as formas antigas e novas de violação dos direitos fundamentais. Somente a constante promoção da cultura dos direitos humanos, por meio da educação formal e informal, poderá evitar a insensibilidade diante dos fatos de violência e brutalidade incrível que povoam todos os dias, com estarrecedora normalidade, as páginas dos meios de comunicação.

É necessário que também as novas gerações sejam familiarizadas com a Declaração dos Direitos Humanos e com a efetiva acolhida desses princípios na vida pessoal e social. A violação de um desses direitos deveria merecer sempre uma reflexão atenta de pais e educadores, bem como das organizações da sociedade. O papel da imprensa é fundamental para a denúncia de violações dos direitos humanos e para promover a reflexão sobre questão de tamanha relevância. Também a Igreja quer continuar a defender e promover a inalienável dignidade de cada ser humano, pois isso está em perfeita consonância com a sua pregação a respeito do desígnio de Deus sobre a existência humana.

Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo


Estadão.

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