quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Artigo: O pomar e as pragas

Como produto de uma concepção autoritária, a legislação processual penal contém distorções que há muito exigiam uma adequação ao espírito constitucional. Co­mo se sabe, os desequilíbrios em prol da atuação persecutória estatal são próprios da supremacia do discurso da defesa social e, portanto, incompatíveis com um regime de garantias típicos de um processo igualitário e democrático. A reforma, nesse ponto, procurou resgatar uma antiga dívida. No vasto campo da atividade probatória, contudo, alguns desvios verificados no curso do processo legislativo, lamentavelmente, mitigaram o impacto de importantes inovações. De qualquer modo, no balanço entre os avanços e os retrocessos o resultado é, sem dúvida, positivo.

Com efeito, a reafirmação do princípio do livre convencimento fez-se acompanhar de uma limitação à formação do material cognitivo. Resulta daí a distinção entre os elementos informativos e as provas. Os primeiros são obtidos na fase investigatória, sem a participação dialética das partes. Prestam-se para a fundamentação das medidas cautelares e também para a estruturação de uma acusação. As provas, por sua vez, têm o seu regime jurídico ligado ao contraditório judicial(1). São aquelas produzidas com a participação do acusador e do acusado e mediante a direta e a constante supervisão do julgador. Somente em situações excepcionais é que se admite um contraditório postergado. É o caso das provas antecipadas — quando evidenciado o perigo real e concreto de perecimento do objeto probatório — e das não repetíveis — como no caso de alguns exames periciais. Logo, uma vez não preenchidos os requisitos da cautelaridade, a prova deverá ser produzida, necessariamente, em juízo.

Mas, a coesão de um modelo processual de partes foi comprometida. Isso porque a proibição total de inserção dos elementos informativos no campo cognitivo, desenhada pela proposta original da Comissão de Reforma, foi sensivelmente abrandada. Pela versão aprovada, fica o juiz autorizado a buscar naqueles elementos o reforço para certas provas produzidas em contraditório, confirmando assim a veracidade de uma das teses. Mais lógico seria que o conflito resultante de provas divergentes, não superável pela possibilidade de obtenção de novas provas, levasse à absolvição do acusado e não à invocação de elementos colhidos unilateralmente.

De qualquer modo, o reforço das partes na condução da atividade probatória não é incompatível com o princípio publicístico(2) e os efeitos dele decorrentes na delimitação do papel desempenhado pelo julgador. De fato, a composição entre os interesses contrapostos representados pelo poder-dever punitivo e pela liberdade jurídica é que levou à consagração, uma vez mais, de poderes instrutórios a cargo do juiz. A dimensão, contudo, deve assumir contornos próprios de um processo democrático. Daí ser a atuação complementar e jamais inibidora da atuação das partes. Trata-se, inclusive, de importante mecanismo para o resguardo da própria dimensão dinâmica da igualdade processual.

Indesejado, entretanto, é o poder inserto no inciso I do artigo 156 o qual permite a determinação, de ofício, mesmo antes de iniciada a ação penal, da produção de provas antecipadas. A previsão, se mal conduzida, pode levar o juiz ao perigoso terreno da atuação investigatória subvertendo-se, assim, o sentido de um processo penal de matriz acusatória. Ora, como se sabe, investigar e instruir são fenômenos diversos. O primeiro concentra as energias para a construção de uma acusação de modo que o sujeito que a conduz dificilmente deixará de ficar a ela vinculado. Diferente é o fe­nômeno da instrução. Aqui, pelo experimento probatório, examina-se a veracidade ou não de uma imputação que foi apresentada por um sujeito invariavelmente diverso do julgador. Todos participam desse experimento. Uns de forma prevalente — as partes —, outros apenas em caráter suplementar — juiz ou jurados —, desde que informados pela necessidade de melhor aclarar os fatos. Trata-se de condição indispensável para a adequada e justa prestação jurisdicional e para a composição dos interesses públicos contrastantes que permeiam o processo penal.

Mas, o livre convencimento também encontra barreiras no campo das provas ilícitas tendo a reforma, nesse aspecto, regulamentado a vedação constitucional. Com efeito, embrenhou-se o legislador no terreno sempre perigoso das definições, declarando serem ilícitas as provas obtidas em violação às normas constitucionais ou legais. Não se vê aqui alteração do conceito já consagrado pela doutrina e pela jurisprudência e que, na verdade, deita as suas raízes no ensinamento de Nuvolone, figurando Grinover(3) como a sua principal adepta.

A prova ilícita é, portanto, aquela obtida mediante desrespeito aos direitos fundamentais da personalidade — intimidade, privacidade, integridade física e liberdade. A ilicitude liga-se ao momento da obtenção o que nos remete a uma atividade extraprocessual. São os clássicos exemplos da confissão obtida mediante emprego de tortura e da apreensão de provas com a invasão de residência. Reforça-se, assim, a distinção entre provas ilícitas e ilegítimas. Quanto às últimas o vício fica restrito ao momento da introdução da prova no processo. A sua obtenção foi lícita, porém, quando de sua incorporação ao processo, descurou-se da observância dos mandamentos processuais. Dessa forma, enquanto a prova ilícita sequer pode ser admitida, a ilegítima é admissível, porém, torna-se inválida. O ato de produção pode ser repetido, até mesmo porque a prova já foi obtida e a questão liga-se aos meios adequados para a sua introdução no processo. Já quanto à prova inadmissível, não será possível a sua repetição. Afinal, o vício liga-se à obtenção, vale dizer, à descoberta da prova. E, caso tenha sido inadvertidamente admitida, deverá ser extirpada dos autos e inutilizada, uma vez preclusa a respectiva decisão.

A inadmissibilidade não deveria ser puramente formal. Por isso, correta era a previsão constante na versão original que impedia o pronunciamento judicial por parte do magistrado que tivesse tomado conhecimento do conteúdo da prova ilícita. O parágrafo, todavia, foi vetado sob argumento de que comprometeria a eficácia do processo penal. Haveria, reconheça-se, especial dificuldade em estruturar o mandamento, notadamente, naqueles juízos únicos o que poderia, inclusive, prejudicar a celeridade de processos de réus presos. Dessa forma, a problemática da prova ilícita, quando enfrentada pela própria sentença, abre o caminho para a impugnação pela via da apelação não se olvidando, por óbvio, da possibilidade de impetração do habeas corpus para a correção do constrangimento decorrente de uma indevida admissão.

Mas não é só. A inadmissibilidade também se estende às provas derivadas, vale dizer, aquelas que estão ligadas por um nexo causal às provas ilícitas. É a consagração da teoria dos frutos da árvore envenenada cunhada pela Suprema Corte norte-americana ao longo de várias décadas. E aqui repousa o grande perigo da reforma: a sedimentação, no terreno normativo, de uma construção jurisprudencial que, pelas características daquele sistema jurídico, é pautada pela mobilidade própria da riqueza dada pela casuística.

De fato, a primeira aparição do princípio fruit of the poisonous tree remonta ao ano de 1920 no caso Silverthone Co. A questão foi sucessivamente invocada até que em 1963, no caso Wong Sun(4) a Suprema Corte assumiu uma postura rigorosa: não importa o quão remota é a ligação entre as provas. Cabe à parte que produziu a prova declarada ilícita demonstrar que as demais não derivaram dela, sob pena de inadmissibilidade de todas. A partir de então, a jurisprudência norte-americana, preocupada com as distorções provocadas pela teoria e, sobretudo pelos altos custos sociais, atenuou o critério da contaminação das provas derivadas incorporando outras regras tais como a da conexão tênue, a da descoberta inevitável, a da boa-fé policial e a da fonte independente. Neste último caso, aliás, as decisões são consideravelmente polêmicas não sendo possível detectar uma diretriz muito clara o que, aliás, é próprio de um sistema dirigido à solução da casuística. Citam-se os casos: Wong Sun (1963), O´Bremski (1967)(5), Bacall (1971)(6) e Murray (1988)(7).

De qualquer forma e, de acordo com a reforma, a contaminação não ocorrerá em duas hipóteses. A primeira liga-se à inexistência de nexo de causalidade entre as provas derivadas e a originariamente ilícita o que, convenhamos, era afirmação desnecessária(8). Afinal, se não há o nexo não há que se falar em prova derivada. A única utilidade para tal previsão seria a de afastar a possibilidade de invocação do critério da conexão tênue. Ou seja, somente a ausência completa de causalidade é que obsta a contaminação. Configurado um vínculo, ainda que remoto, o vício se propaga e a inadmissibilidade probatória amplia os seus horizontes.

A segunda hipótese envolve a chamada “fonte independente” que, como examinado, é fator de constantes controvérsias no direito norte-americano. Nesse ponto, a redação dada pelo legislador não é clara. Propõe a adoção de um raciocínio hipotético(9). Com efeito, a fonte é reputada independente quando, por si só, pudesse conduzir ao objeto da prova. O legislador sugere, portanto, uma avaliação judicial sobre as fontes geradoras da prova derivada. E caso configurada alguma que pudesse levar à obtenção daquele fato, independentemente da prova originariamente ilícita, a contaminação deixará de existir. A operação proposta é perigosa podendo levar a um alargamento da tolerância judicial das provas derivadas desvirtuando o sentido da teoria.

Na verdade, a questão de fundo que envolve a problemática das provas ilícitas liga-se aos limites éticos do exercício do poder estatal. De fato, em países cuja história foi marcada por períodos de exceção, em que as violências e os abusos às liberdades públicas constituíram triste realidade, a legitimação do Estado é obra de reconstrução diária. Reconquistar a confiança coletiva exige, sobretudo, uma mudança de paradigmas por parte dos agentes públicos. Daí o repúdio às ações arbitrárias. A proibição, todavia, por si só, seria inócua caso não fosse acompanhada de uma rigorosa sanção e que é justamente a imprestabilidade processual das provas obtidas ilicitamente assim como das derivadas. O mecanismo deve ser visto, sobretudo, como forte estímulo ao aprimoramento técnico-científico da atividade investigatória, com a superação definitiva do emprego de métodos espúrios. O custo social é, muitas vezes, alto. Mas, ainda é o melhor remédio que se dispõe para a sedimentação dos valores do Estado de Direito.

Notas

(1) É o que dispõe o art. 155, caput: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

(2) TUCCI, Rogério Lauria. Princípio e Regras Orientadoras do Novo Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

(3) Liberdades Públicas e Processo Penal: As Interceptações Telefônicas. 2ª ed. atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.

(4) Agentes policiais, através de confissões, invadiram várias residências até que um dos moradores indicou Wong Sun como vendedor de heroína. Invadiram a sua residência, porém, não encontraram o entorpecente. Mesmo assim, o Ministério Público procurou utilizar as declarações dos vizinhos, obtidas após as invasões domiciliares, para fundamentar a acusação. http://supcourt.ntis.gov/get_case.html. Acesso em 16.06.2008.

(5) Uma menina de 14 anos foi encontrada em uma busca ilegal realizada no apartamento do réu. As suas declarações não foram consideradas ilegais porque foram reputadas oriundas de uma fonte independente e anterior à busca ilegal. Isso porque os pais já tinham noticiado o sumiço da menor e já havia informações de que ela estaria no interior do apartamento. LAFAVE, Wayne R.; ISRAEL, Jerold H. Criminal Procedure. 2ª ed., West: St. Paul, 1992, p. 473.

(6) Agentes alfandegários apreenderam, sem qualquer ordem judicial, objetos e contataram oficiais franceses para que investigassem outras atividades relacionadas com o agente. Os oficiais conseguiram apreender documentos que o vinculavam a outros crimes. Esta atuação foi considerada independente da conduta ilícita anterior e, portanto, reputada válida. http://cases.justia.com/us-court-of-appeals/F2/443/1050/. Acesso em 16.06.2008.

(7) Policiais estavam investigando atividades relacionadas a drogas e viram Murray e outra pessoa saírem de um depósito. Avisaram outros policiais que conseguiram detê-los em poder de maconha. Os policiais ingressaram no depósito e constataram que havia vários pacotes. Saíram e obtiveram um mandado. Entraram pela segunda vez e apreenderam o material. A Suprema Corte manteve a prova nos autos. Entendeu tratar-se de uma fonte independente. http://supreme.justia.com/us/487/533/case.html. Acesso em 16.06.2008.

(8) É o que dispõe o art. 157, § 1º: “São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outra...”

(9) Art. 157, § 2º: “Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.”

Marcos Zilli
Mestre e doutor em Direito Processual; professor Doutor de Processo Penal na Faculdade de Direito da USP e coordenador do Departamento de Relações Internacionais do IBCCRIM

Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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