quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Artigo: A gramática e a sintaxe interferem no processo

Está em curso processo que pode ser anulado por erros de português. É a ação penal que versa sobre o homicídio do industrial responsável, no Brasil, pela fabricação dos relógios Cosmos, morto, em 1993, durante presumido assalto, em São Paulo.

"O advogado Abdalla Achcar, que defende o réu (…), entrou ontem com um habeas-corpus no Tribunal de Justiça. 'Os jurados serão impedidos, pelos erros, de compreenderem os depoimentos das testemunhas'" - sustentou o impetrante, que finalizou:

"A rigor, é a própria língua portuguesa que bate às portas do pronto-socorro da legalidade, suplicando uma intervenção cirúrgica (a anulação do processo) sem a qual é iminente o óbito da comunicação processual, imprescindível à regular e saudável administração da Justiça."

Esse foi o texto que se leu, na Folha de S. Paulo de 9 de junho último, encimado pelo título "Erro de português pode anular processo judicial".

Que diria o professor Aldrovando Cantagalo, personagem do jocoso conto de Monteiro Lobato, intitulado "O Colocador de Pronomes"?

Quem leu o conto sabe que o professor Aldrovando Cantagalo veio ao mundo, e dele se foi, por causa de um erro pronominal…

Mas, pondo de lado a "ironia acusatória" de Monteiro Lobato (não for a ele Promotor Público após haver-se formado na Faculdade do Largo de São Francisco) os erros de português que se deparam no processo de que trata o título acima, "matam" de enfarte não só professores de ficção , mas também de carne e osso, bem menos "fanáticos" pela "Última Flor do Lácio inculta e Bela" do que o personagem do "Colocador de Pronomes".

O colega que joeirou os autos, como diria o professor Aldrovando Cantagalo, para impetrar o "habeas-corpus" de que dá notícia a Folha de S.Paulo, não encontrou apenas 254 erros em seis depoimentos. Segundo o dr. Abdalla (e no "habeas-corpus" a prova é a rigor, incontroversa) os erros, numa estimativa dos 14 volumes, atingem a casa do 1.000(mil).

Afora a estranheza que causam tantos erros grosseiros, na sua grande maioria de ortografia (ou de datilografia… se preferirem) há que os temos dos autos foram assinados por quem de direito e ninguém deu pela coisa. O Dr. Abdalla foi contratado para impetrar o "habeas-corpus" com o processo em andamento.

Com os mais variados objetivos, e não vem a pelo aqui enumerá-los, a luta para o uso correto e simples de nossa língua, sem os termos arcaizantes e de pouco uso, por quem não domina o idioma é, por assim dizer, histórica. Refiro-me aqui no Brasil. De fato, podemos citar de memória, além do "Colocador de Pronomes:, conto de Artur de Azevedo, intitulado "O Gramático". E que dizer de Mário de Andrade? Mas a luta, como se vê, não surtiu até hoje os efeitos desejados. Como nos versos de Bilac, ela foi e continua a "última flor do Lácio inculta e bela, a um tempo esplendor e sepultara". Evidentemente, mais sepultura…

Com a notícia da Folha de S. Paulo veio público um fato grave, mas que não é o único. Pelo contrário, a incidência de erros nos processos, embora de conseqüências menores do que as apontadas pelo ilustre causídico Abdalla, não é de se desprezar.

E por que é grave esse fato, como acima reputamos? Porque tais erros estão intimamente ligados à liberdade ou à condenação de um ser humano. Ou não são essas as conseqüências?

Esses erros de português são efetivos de causas tão complexas e múltiplas (esta simples notícia não comporta que sejam ela apontadas) que, para combatê-las, mister se faz que sejam eles divulgados, no mínimo como alerta e, por que não dizer, também como crítica construtiva.

José Turcato

Boletim IBCCRIM nº 18 - Julho / 1994

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