Por Carlos Vieira Von Adamek, Carlos Gustavo Vianna Direito, Luís Geraldo Lanfredi e Márcio da Silva Alexandre
Juiz deve se sentir confortável e seguro em adotar medidas alternativas à prisão.
As 55 mortes registradas no sistema prisional do Amazonas nesta semana despertam mais que tristeza e indignação — elas nos dão a certeza de que vivemos uma tragédia estrutural cíclica. As narrativas se repetem, os personagens são os mesmos e, inclusive, já sabemos o que vem depois: alarde nos jornais, poder público mobilizado, sensação de normalidade retomada. Até a próxima crise.
Também é de longa data que conhecemos os bastidores que alimentam esse enredo lamentável. Reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como estado de coisas inconstitucional, nosso sistema carcerário nega as mais básicas garantias humanas àqueles que irão voltar ao convívio social. Muitos exemplos ilustram esse cenário, desde a falta completa de alimentação dos presos, como ocorreu em dezembro de 2018 em Roraima, até a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos para que um dia cumprido no presídio Plácido de Sá Carvalho (RJ) seja contado por dois.
Essas inconstitucionalidades endêmicas favorecem o surgimento de “soluções” à margem da lei, como é o caso das facções criminosas, que se aproveitam da desestrutura do sistema para recrutarem e aperfeiçoarem seus integrantes. Esta dinâmica permite que os mais de 250 mil presos sem condenação definitiva, cerca de 36% do total, se transformem em mão de obra qualificada das facções ao firmarem pacto de proteção quando encarcerados, pagando suas dívidas quando soltos.
Nessa linha de raciocínio, a correta estruturação do sistema carcerário nacional é medida de proteção da própria sociedade. Isso deve ficar bem claro para que não se misture o discurso de que dar dignidade de cumprimento da condenação penal ao preso é passar a mão na cabeça de bandido.
Sabemos que o sistema prisional já nasceu — em substituição às penas corpóreas e à execução imediata das penas capitais — com a necessidade de ser reformado. Isso ocorre porque a premissa de que o preso vai usar seu tempo no cárcere para refletir e se arrepender do seu crime mostrou-se parcialmente falsa, principalmente quando é preciso sobreviver em um sistema no qual quem manda são os outros presos devidamente unidos em irmandade criminosa.
Ora, dentro desse quadro, é preciso dar dignidade para que o encarcerado possa cumprir sua pena sem precisar recorrer à proteção dos líderes das facções, o que inclui o posicionamento dos agentes do Estado como aliados, e não mais como inimigos. A adoção, quando cabível, de soluções outras que não o encarceramento é um passo necessário para se depurar o sistema prisional. O juiz deve se sentir confortável e seguro em adotar medidas alternativas à prisão, como é o caso do monitoramento eletrônico, na certeza de que estas serão cumpridas.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desde os seus primórdios, tem se preocupado em incidir nas estruturas que tornam nossas prisões tão disfuncionais, focando nas causas para evitar as desastrosas consequências. Isso ocorre desde os mutirões carcerários — iniciados pelo ministro Gilmar Mendes para garantir a correta observação do cumprimento de penas — até programas voltados à reinserção do egresso na sociedade. Da mesma forma, o controle da porta de entrada por meio das audiências de custódia, implantadas em escala nacional pelo ministro Ricardo Lewandowski, é medida necessária para evitar que presos por delitos menores se tornem violentos quando inseridos nesse universo de inconstitucionalidades que é o sistema carcerário nacional.
Fortalecido por essas experiências anteriores e ciente de seu papel na construção de uma sociedade mais pacífica e segura, o CNJ lançou neste ano, em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública e com agências das Nações Unidas, o programa Justiça Presente. Trata-se de um pacote de medidas desenvolvidas pelo ministro Dias Toffoli que incluem um melhor controle da execução penal por meio de um sistema eletrônico nacional unificado, a identificação biométrica e a emissão de documentos básicos para que os apenados possam retomar suas vidas, a construção de alternativas para evitar a criminalização e ações de inclusão do egresso na sociedade.
A internalização dessas medidas, por meio do trabalho conjunto realizado com os poderes públicos locais, permitirá que nosso sistema prisional seja usado como proteção à sociedade, e não mais como ameaça. Assim, as facções poderão ser naturalmente desidratadas com a perda da sua mão de obra e o Brasil pode, finalmente, caminhar para sair do quadro de tragédia estrutural cíclica que tanto agrava nossa sensação de insegurança cotidiana.
Por Carlos Vieira Von Adamek é secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça, e Carlos Gustavo Vianna Direito, Luís Geraldo Lanfredi e Márcio da Silva Alexandre são juízes do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ.
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