No mês passado, um júri em Nova York absolveu Thomas Cordero, um “diarista nu”, acusado de matar com faca de cozinha um de seus clientes, que o assediou sexualmente. A polícia tinha prova de DNA e a confissão do crime. Mas, no julgamento, a defesa sustentou que ele foi coagido a confessar. A absolvição de Cordero reavivou a discussão sobre uma técnica que os criminalistas vêm usando com frequência, ultimamente, no tribunal do júri: a nerd defense — ou a defesa baseada na apresentação do réu como um nerd, que usa óculos e se veste sobriamente.
A teoria, apresentada pela primeira vez em um estudo de 2008, é a de que os jurados veem um réu de óculos, com a aparência de nerd, como uma pessoa mais inteligente, que não é dada à violência, portanto, incapaz de cometer um crime.
“Isso explica porque muitos réus são absolvidos, apesar de serem apresentadas provas contundentes contra eles”, disse ao jornal Daily News o advogado Harvey Slovis, que representou Cordero. Slovis carrega a fama de ser “técnico de réus”, ensinando-os como se vestir para o julgamento (o que inclui uso de óculos) e como se comportar na frente dos jurados. A propósito, depois de absolvido, Cordero descartou os óculos.
A advogada Joyce David disse ao jornal que usa a mesma técnica. Ela pede a seus clientes que se vistam como estudante de faculdade, como alguém que vai à igreja no domingo ou como um neto bem comportado que vai visitar a avó — sempre de óculos, é claro. “Quanto mais intelectual o réu parecer, menos criminoso ele parece”, disse.
“Descobrimos que o uso de óculos tende a fazer com que o réu pareça aos jurados mais inteligente e menos ameaçador fisicamente. A ideia é apresentar o réu como uma pessoa intelectualmente forte e fisicamente enfraquecida”, disse ao jornal o professor de Psicologia Michael Brown, que participou do estudo de 2008.
Aviso aos navegantes: a técnica não funciona para crimes do colarinho branco. Ao contrário, a aparência intelectual do réu em um julgamento desse tipo de crime é a indicação que os jurados precisam para assumir que ele é bem capaz de armar um plano para fraudar investidores ou órgãos do governo. Um réu com aparência de pessoa pouco inteligente não merece esse crédito (indesejável).
Comunicação não verbal
Teoricamente, os jurados deveriam considerar os fatos e as provas ao exercer sua função no julgamento. Mas a sala de julgamento não é um laboratório, em que os jurados avaliam as provas cientificamente em um ambiente estéril, escreveu a advogada Janet Hoffman em um artigo intitulado “Os jurados como audiência: o impacto da comunicação não verbal no julgamento”.
No final das contas, um julgamento se desenrola em torno de fatos, testemunhos, provas, argumentos, mas tudo isso é afetado pela comunicação não verbal, também chamada de linguagem corporal. E é a comunicação não verbal que torna o resultado do julgamento imprevisível — algumas vezes, contrariando todas as provas.
Para entender esse fenômeno, é preciso compreender o que se passa com os jurados. A maioria deles nunca participou de um julgamento. E toda informação que dispõem é a que recebem no cinema e na televisão — e que é sempre muito excitante ou dramático, ao contrário da maioria dos julgamentos na vida real.
Mas os jurados “aquecem” o conteúdo dramático do julgamento observando todos os participantes e tudo o que ocorre à sua volta, passando a construir suas próprias narrativas do que estão observando (ou percebendo) no julgamento.
Costuma-se associar um julgamento a uma peça de teatro. Só que, no teatro, a audiência presta atenção apenas nos atores que estão atuando e desconhecem os demais, que podem estar nos bastidores. No julgamento, não há atores nos bastidores. Os jurados observam, o tempo todo, todos que estão na sala: o réu, o advogado que está esperando sua vez de falar, o juiz, o promotor, a testemunha — e até mesmo as testemunhas que já foram interrogadas e as pessoas que estão apenas assistindo o julgamento.
Mais que isso, os jurados estão observando os gestos, a aparência do réu, do advogado, do promotor, as expressões faciais, os tons de voz e os movimentos das mãos do réu. As mãos do réu podem denunciar nervosismo, medo, ansiedade, confiança, segurança, segundo a interpretação do jurado, diz a advogada em seu artigo.
Questão de ética
Um dos motivos que esquentou a discussão sobre o uso de óculos por réus que não precisam deles, só para provocar uma percepção favorável dos jurados, é que isso pode ser uma violação da ética. Em alguns estados, o código de ética proíbe o advogado de se engajar “em conduta que envolve desonestidade, fraude, logro, afirmação falsa” etc.
Fazer um réu usar óculos que não precisa não é tão grave como colocar uma vítima perfeitamente saudável em uma cadeira de rodas, só para impressionar os jurados em um processo de indenização (que tem júri nos EUA). Mas é um artifício que precisa ser discutido sob o ponto de vista da ética, diz a advogada.
O truque também sai pela culatra, às vezes. Em um julgamento em Washington, no Distrito de Colúmbia, todos os cinco réus apareceram de óculos no julgamento. No entanto, testemunhas contaram que, na audiência de instrução do processo, apenas um deles usava óculos. Todos os cinco foram condenados.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2019.
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