*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2019, lançado no dia 29 de maio no Supremo Tribunal Federal
Quando a pauta em matéria penal ganhou fôlego no Supremo Tribunal Federal de uns tempos para cá, as turmas, sem competência para julgar questões constitucionais, foram inundadas com processos dessa categoria. Diante do perfil moldado pela composição de cada turma, é possível antever que o Ministério Público, enquanto órgão acusador, tem chances maiores de vitória nos casos distribuídos à 1ª Turma, enquanto os advogados de defesa preferem que seus processos sejam levados para a 2ª Turma.
Um exemplo: o Supremo tem súmula vinculante que restringe o uso de algemas, mas a 1ª Turma entende que o enunciado é genérico e não pode servir para levar à nulidade processual. Com isso, decidiu pela validade do interrogatório em que um réu de 60 anos permaneceu algemado. A 1ª Vara Criminal de São Caetano do Sul (SP) aplicou a medida em audiência de instrução, sem qualquer justificativa. Primário e com bons antecedentes, o homem estava na sala escoltado por dois policiais armados.
O relator, Alexandre de Moraes, não viu qualquer prejuízo ao acusado. Segundo ele, o réu respondeu às perguntas durante a audiência mesmo podendo ficar em silêncio, caso quisesse. “Ausência de prejuízo impossibilita a anulação de ato processual”, disse.
Em outro caso, a defesa pedia o trancamento de ação penal contra jovem presa em flagrante, juntamente com outras 17 pessoas, a caminho de uma manifestação contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff ocorrida em São Paulo em setembro de 2016. Na audiência de custódia, o juiz plantonista, ao analisar o auto de prisão em flagrante, considerou que não havia indícios da prática dos crimes de associação criminosa e corrupção de menores, concluiu que os elementos de prova indicavam que a recorrente estava pacificamente reunida com os demais autuados para participarem de manifestação pública e determinou o relaxamento da prisão.
Com o prosseguimento das investigações, o Ministério Público de São Paulo ofereceu denúncia contra os jovens pelos delitos de associação para o crime e corrupção de menores porque, além dos denunciados, havia três adolescentes. Segundo a defesa, como o MP não recorreu da decisão de relaxamento da prisão, não poderia ter oferecido denúncia baseada somente em provas obtidas mediante uma prisão “reconhecidamente ilegal por conta da atipicidade dos fatos que a motivaram”.
Nos dois exemplos, o ministro Marco Aurélio ficou vencido, como já é praxe. O vice-decano do STF criticou duramente o uso abusivo de algemas contra réus e investigados. Na avaliação dele, o enunciado da Súmula Vinculante 11 “não é um penduricalho e deve ser observado sempre”. No outro caso, ele entendeu que houve erro procedimental do juiz substituto ao avançar no mérito e assentar a atipicidade dos fatos. No entanto, uma vez isto feito, não é possível oferecer denúncia a partir dos mesmos fatos, pois o Ministério Público não apresentou recurso contra a decisão.
Também na 1ª Turma, Marco Aurélio continua a deferir liminar em Habeas Corpus para afastar a execução provisória de pena. Ele menciona um caso, tramitado na turma, de um homem preso preventivamente por sete anos e, ainda assim, o colegiado não concedeu a ordem.
O ministro defende que, depois da decisão que restringiu a abrangência do foro por prerrogativa de função, a atribuição para julgar ações penais deveria retornar ao Plenário. Como está estabelecido, ele acredita que há três Supremos hoje: o do Plenário, o da 1ª Turma e o da 2ª Turma, tantas são as divergências entre elas.
Não há sessão do colegiado em que não haja processos de Marco Aurélio. Resistente ao Plenário Virtual, o ministro, como relator, só julga naquele ambiente a apreciação da repercussão geral, sendo o único, também, a detalhar e justificar a posição. Todos os demais casos ele leva ao colegiado físico.
Quando ele não está solitário na formação do placar, é comum que a votação colegiada seja unânime. Por exemplo, quando a 1ª Turma aplicou entendimento de que o MP não tem prazo em dobro quando quer a subida de recurso especial sobre processo criminal, pois esse benefício legal vale apenas quanto à atuação nos processos de natureza civil.
Para além da temática criminal, a 1ª Turma também foi unânime ao reafirmar, em análise de 25 processos, o entendimento firmado pela corte de que o ICMS, por não compor faturamento ou receita bruta das empresas, deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins. A turma analisou agravos interpostos pela Fazenda Nacional contra a decisão de Marco Aurélio. Nos agravos, a PGFN insistiu em pedir a suspensão da tramitação dos processos sobre o tema, além da modulação da decisão.
A União diz que deixará de arrecadar R$ 250 bilhões. Por entender que os agravos foram protelatórios, a Fazenda foi multada. Uma semana mais tarde, em apreciação de outros sete processos no mesmo sentido, o colegiado aplicou nova multa à Fazenda Nacional por entender que a PGFN pretende apenas adiar o cumprimento da decisão.
O colegiado voltou a se dividir e a receber atenção ao decidir sobre denúncia contra o então presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) por racismo. Por 3 a 2, com voto de minerva de Alexandre de Moraes, a denúncia foi rejeitada. Luís Roberto Barroso e Rosa Weber se posicionaram a favor do recebimento da denúncia e da abertura de uma ação penal.
A Procuradoria-Geral da República acusava Bolsonaro de, em uma palestra em 2017, manifestar-se de modo discriminatório sobre quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTs. “Apesar da grosseria, do desconhecimento das expressões, não me parece que a conduta do denunciado tenha extrapolado os limites da sua liberdade de expressão”, concluiu o ministro Alexandre de Moraes.
O presidente da República é réu em mais duas ações penais por apologia ao crime e injúria contra a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS): ele afirmou que a colega não merecia ser estuprada porque ele a considera “muito feia” e porque ela “não faz” seu “tipo”. O processo, aberto em 2016, está em fase final, mas não avançou em 2018. As ações ficam, agora, suspensas até o fim do mandato presidencial.
Ana Pompeu é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2019.
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