Uma decisão de outubro do Tribunal de Justiça fluminense mostra o que pode acontecer se militares e policiais, durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, invadirem uma casa sem mandado judicial. Se os agentes de segurança não demonstrarem posteriormente que havia fundadas razões para acreditarem que haveria crime em flagrante no imóvel, todas as provas obtidas na ação e medidas decorrentes delas deverão ser anuladas.
Depois de decretar a intervenção na área de segurança do Rio, o governo Michel Temer (MDB) anunciou que pretendia requisitar a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos para operações em favelas. Após a ideia ser bombardeada por profissionais do Direito, o governo passou a defender outra nomenclatura para defender a validade de mandados de busca e apreensão no estado. O Ministério da Justiça prefere usar agora o termo “mandados com múltiplos alvos” — segundo a pasta, sempre com nomes dos suspeitos.
Em 16 de agosto de 2017, uma juíza do plantão judiciário noturno expediu mandado de busca e apreensão coletivo na comunidade do Jacarezinho, na zona norte do Rio. Cinco dias depois, as polícias Civil e Militar fizeram uma megaoperação no local com o apoio do Exército.
Durante a ação, policiais e militares avistaram três pessoas em “atitude suspeita” perto de um barraco. Por isso, os agentes de segurança os detiveram e invadiram o imóvel. Lá, encontraram 100 gramas de crack, 271,7 gramas de cocaína e 7,6 quilos de maconha, além de uma escopeta calibre 12 e munições de pistolas.
Devido a esse material, os três foram presos em flagrante por associação ao tráfico de drogas (artigo 35 da Lei 11.343/2006) e porte ilegal de arma de fogo (artigo 14 da Lei 10.826/2003). A prisão foi depois convertida em preventiva.
Segundo o juiz, “parece óbvio que não eram os custodiados quem detinham o domínio final do fato se aquelas armas seriam empregadas ou se a droga seria comercializada”. No entanto, ele entendeu que policiais e militares apresentaram indícios de que os três tinham sido angariados de última hora para ajudar os “grandes traficantes”. Assim, o julgador manteve os acusados encarcerados para preservar a ordem pública e a aplicação da lei penal, já que eles não apresentaram comprovante de residência ou trabalho lícito.
Sem motivos
Contra essa decisão, a Defensoria Pública impetrou Habeas Corpus. O relator do caso no TJ-RJ, desembargador Siro Darlan, apontou que o mandado de busca e apreensão coletivo foi suspenso pelo Superior Tribunal de Justiça. Com isso, as incursões domiciliares de policiais e militares sem ordem judicial individualizada ou fortes indícios de que ocorria crime em flagrante deveriam ser anuladas.
E não havia fundadas razões para justificar que os agentes de segurança prendessem os três acusados e adentrassem o barraco, ressaltou o magistrado, lembrando que o Supremo Tribunal Federal já fixou essa exigência para afastar a inviolabilidade do domicílio. De acordo com Darlan, não ficou provado haver fortes indícios de que os acusados praticavam crime em flagrante que permitisse aos policiais e militares invadir a casa.
“Ainda que a diligência apresente resultado positivo, não torna válida o ato abusivo e ilegal, pois é inadmissível que as garantias constitucionais da intimidade e da inviolabilidade do domicílio estejam sujeitas a meras suspeitas”, declarou o desembargador.
Embora reconheça a crise na segurança pública do Rio de Janeiro, o relator destacou que o Estado não pode violar a legislação no combate ao crime organizado.
“Assevera-se que, e contra os cidadãos e investigados, o Estado não pode atuar à margem da lei, desrespeitando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Não se pode pretender suprimir direito de quem o detenha a pretexto de garantir outros direitos. A ‘liberdade’ e a ‘segurança pública’ prometidas com a violação do direito constitucional de inviolabilidade de domicílio se traduz em figura retórica, pois se sacrifica um direito concreto em prol de uma abstração”, opinou.
E como essa medida é inconstitucional e ilegal, todo o processo e suas medidas são nulos, destacou o relator. Dessa forma, ele votou por revogar as prisões preventivas dos três suspeitos e trancar a ação penal. O entendimento de Siro Darlan foi seguido por todos os demais integrantes da 7ª Câmara Criminal do TJ-RJ.
Clique aqui para ler a decisão.
Processo 0047947-55.2017.8.19.0000
Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2018.
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