Exclusivo: ex-chefe do tráfico na Rocinha fala com o EL PAÍS no presídio de Porto Velho.
Para ele, a intervenção no Rio é mais do mesmo. “Quer o fim do tráfico? Legalize as drogas”
“Peão E2 para E4”, grita Antônio Bonfim Lopes, 41 anos, de dentro da sua cela de 7 metros quadrados na penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia, enquanto move uma peça de papel sobre um tabuleiro feito à mão. O termômetro bate os 30º C e o dia está extremamente úmido, obrigando-o a enxugar as mãos constantemente. Segundos depois a resposta ecoa do outro lado do corredor: “Cavalo B8 para C6”. Assim, jogando xadrez à distância com outro preso como se fosse batalha naval, o ex-traficante mais conhecido como Nem da Rocinha passa boa parte de seus dias na moderna prisão de segurança máxima construída em meio à selva amazônica. Em um duro regime disciplinar que inclui 22 horas por dia dentro de uma cela individual sem TV e apenas duas horas de banho de sol, ele explica que matar o tempo – “e os mosquitos” – é fundamental. A reportagem do EL PAÍS visitou o ex-traficante no início de março na penitenciária onde ele cumpre penas que somam mais de 96 anos por tráfico de drogas, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Uma das principais lideranças da facção criminosa Amigos dos Amigos, Nem foi coroado dono da Rocinha em 2004 após a morte do dono do morro Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu. Seu reinado durou até a prisão, em 2011, e é tido pelos moradores e até por alguns policiais como um período de relativa tranquilidade no local. Usando a corrupção em detrimento da violência para se manter no controle, aos poucos Nem se tornou um dos traficantes mais populares da comunidade. "Até hoje perguntam pra minha mãe quando eu volto pra lá!", brinca. "Como se no dia em que eu sair da prisão eu voltarei pro tráfico". A hipótese é prontamente descartada. "Não quero mais nada com isso, quero ficar com meus filhos, poder ir pra praia, pro teatro, aproveitar a vida". Apesar de já condenado, Nem vislumbra um futuro próximo ao lado dos sete filhos.
Ele traduz sua filosofia de pacificação da favela com uma frase simples: “Eu sempre perguntei pro meu pessoal: o que tu quer? Trocar tiro com polícia ou curtir o baile na Rocinha? Porque se quiser trocar tiro não tem baile, a polícia vem pra cima e fecha tudo. Claro que eles sempre preferiram o baile”. A estratégia adotada por ele, de manter o nível de crimes violentos o mais baixo possível de forma a deixar a polícia (e a mídia) longe fez da Rocinha uma das favelas mais lucrativas do Rio de Janeiro para o tráfico, movimentando em torno de 15 milhões de reais por mês. Questionado sobre o atual momento da comunidade, com diferentes grupos disputando o poder e trocas de tiro frequentes, Nem mostra irritação. "Isso pra mim é uma grande traição. Saber que agora tem moleque andando com fuzil na Rocinha e que tem traficante extorquindo o morador, nada disso existia quando eu estava lá", diz, em uma referência velada ao ex-guarda-costas e agora rival Rogério Avelino Santos, vulgo Rogério 157, preso em dezembro 2017.
A história de Nem – e da Rocinha – poderia ter sido diferente não fosse a ação de policiais corruptos. Com a morte de Lulu, em 2004, ele vislumbra uma saída do crime. “Eu cheguei a efetivamente sair do tráfico quando o Lulu morreu. Eu disse ‘bom, não tenho mais porque continuar nessa vida, já paguei minha dívida’. E saí. Eu tinha um carro que ia usar para trabalhar como taxista, esse era o meu plano, ia deixar toda essa vida pra trás”, afirma. Mas no Brasil as coisas não são tão simples assim. De acordo com ele, setores da polícia não viram com bons olhos sua saída: Nem era garantia de estabilidade na Rocinha e propinas vultuosas para os agentes corruptos. “Minha mãe foi ameaçada pela polícia. Foram até a casa dela. ‘Ou você volta [para o tráfico] ou vai acabar mal pra ela’, eles me disseram. Não tive opção, precisei reassumir as coisas”, conta. “Minha vida daria um filme”.
De dentro de sua cela abafada o ex-traficante ficou sabendo com atraso e sem muita surpresa da intervenção federal no Rio de Janeiro. “Não acho que vá dar em nada. Os problemas do Rio não se resolvem com Exército ou polícia”, diz. De acordo com ele, tropas federais já ocuparam parcialmente a Rocinha por duas vezes durante sua gestão na favela, sem nenhum resultado concreto. “Você acha que não tem corrupção no Exército? Eu me lembro que alguns militares falavam pros nossos soldados: ‘poxa, não fica com fuzil na rua não, esconde isso porque depois a gente leva bronca do sargento”, diverte-se. Para Nem a intervenção é “mais do mesmo”, apenas outra ação com “finalidade eleitoreira”.
Ao falar sobre a violência do Rio, Nem fica em silêncio por um momento. Em seguida, dispara: “Você acha que os políticos não sabem como resolver o problema da violência?”. Em instantes responde à própria pergunta. “O problema é que eles sabem que não serão reeleitos se fizerem isso. Sabem que isso exige um investimento em educação e políticas sociais que não têm retorno na urna, no curto prazo, mas que é algo para o médio prazo, para daqui a dez ou 15 anos. A preocupação maior é o mandato, não é resolver nada”, desabafa. Para Nem, políticos de olho no voto apostam no velho discurso de enfrentamento, “de botar polícia na rua e endurecer penas”. “Mas está mais que provado que nada disso dá resultado. Nada disso funcionou até agora”.
“Você acha que os políticos não sabem como resolver o problema da violência?”
Então qual seria a solução? A posição de Nem da Rocinha é pouco ortodoxa para alguém cujo negócio dependia justamente de um comércio ilegal: “Além de investir em educação, se você quer acabar com o tráfico você precisa legalizar as drogas. Quer tirar todo o poder do traficante? É só legalizar”, afirma, com uma ressalva. “Não adianta só legalizar. É preciso falar sobre isso nas escolas. Ensinar desde cedo o que é a droga. Não adianta falar apenas ‘droga é ruim’, ‘ não usa’. O jovem tem curiosidade com isso”, diz. Nem cita ainda as receitas que o Estado pode obter com a venda ou cobrança de impostos de um comércio legal de drogas como mais uma justificativa para a legalização.
Bode expiatório, helicoca e PCC
Ainda com a lembrança da partida de xadrez fresca na cabeça, Nem filosofa. “Quando eu estava na Rocinha as pessoas me viam como uma espécie de rei”, afirma. “Mas eu nunca me comportei como rei, sempre me considerei mais um peão mesmo, nunca quis saber de ostentar, andava na Rocinha de chinelo e camiseta do Flamengo, minha preocupação era ajudar as pessoas”, diz Nem. Ele pensa um pouco e completa: “Vira e mexe usava uma corrente, um relógio, mas nada caro”.
A metáfora do xadrez, com reis e peões, também permeia sua visão sobre a máquina do tráfico de drogas. Nem da Rocinha se considera, em certa medida, injustiçado. Apesar de admitir que “não é santo”, para ele as autoridades “com o apoio da grande mídia” usam o traficante “da favela, negro e pobre” como bode expiatório, quando na verdade ele seria apenas parte de uma engrenagem mais complexa. “E o helicoca? Quem foi preso? E o filho da desembargadora?”, questiona, referindo-se a dois episódios recentes ocorridos no país envolvendo traficantes brancos e de classe média. O primeiro foi a apreensão, em 2013, do helicóptero da família do senador Zezé Perrella (MDB), que é próximo de Aécio Neves (PSDB), no Espírito Santo com quase meia tonelada de cocaína. O segundo diz respeito à libertação (em tempo recorde) no final de 2017 de Breno Fernando Solon Borges, de 38 anos, filho de uma desembargadora que foi preso com 130 quilos de maconha e várias munições de uso restrito das forças armadas.
Aliás, Nem da Rocinha conhece bem o papel dos políticos no tráfico. Ele admite já ter conversado com alguns no Rio de Janeiro, mas se recusa a dar os nomes. Diz também que já foi procurado várias vezes para firmar um acordo de colaboração com as autoridades em troca de redução de pena. Sobre uma possível delação premiada, ele é enfático: “Pretendo manter o mínimo da dignidade que ainda me resta. Nunca faria uma coisa dessas. Aqui não é como Brasília onde o sujeito delata até a mãe”.
Apesar de preso há mais de seis anos, Nem acompanha a crise política na qual o Brasil mergulhou. “Confesso que em 2013, quando começaram aqueles protestos por transporte mais barato, serviços de qualidade, eu fiquei otimista”, diz Nem. “Eu tinha vontade de estar na rua também, sabe? Marchando com toda aquela gente”. Mas a empolgação do ex-traficante agora deu lugar a um pessimismo com relação ao cenário político. “É triste ver que todos esses caras serão reeleitos. Aquilo tudo foi por nada. Essas elites da política que se perpetuam no poder... Rodrigo Maia, Renan Calheiros, todo esse pessoal vai continuar no poder”, diz.
Sobre o atual presidente Michel Temer, do MDB, ele é taxativo: “Golpista né? Rasgaram a Constituição. ‘Tem que manter isso aí’ [referência à gravação sobre a suposta compra do silêncio de Eduardo Cunha]... É uma piada. O cara deveria estar preso, imagina quanto dinheiro não rolou pra comprar o apoio dos deputados e senadores que apoiaram o impeachment...”. Nem também critica os que apoiavam a Lava Jato e hoje criticam a operação: “Quando iam só atrás do PT todo mundo gostava. Agora que chegou aos outros partidos um monte de gente começa a falar ‘pera lá!”.
Mesmo pessimista, Nem da Rocinha não acredita na vitória do candidato Jair Bolsonaro, deputado federal saudoso dos tempos da ditadura militar que lidera algumas pesquisas de opinião. “Eu não acho que o brasileiro vai fazer igual o pessoal fez nos Estados Unidos, e eleger um cara como o Trump”, diz. O ex-traficante afirma não votar há mais de década, mas se pudesse, seu voto seria do ex-presidente Lula. “Ele fez muito por quem mais precisava, pelos mais pobres. Eu pude acompanhar na Rocinha. Gente que trabalhava pra mim vinha pedir pra sair do tráfico e ir trabalhar nas obras do PAC [Processo de Aceleração do Crescimento]”, relembra Nem.
“Do jeito que as coisas são, quando você publicar a matéria vão dizer que o Nem tá fechado com o ETA [grupo separatista basco que atua na Espanha]!”
A prisão não fez com que seu nome ficasse de fora do noticiário. Em fevereiro as autoridades fluminenses informaram que ele teria se filiado à facção paulista Primeiro Comando da Capital, dando origem a um novo grupo chamado Terceiro Comando Puro 1533, no qual os números indicam a posição das letras PCC no alfabeto. “Dizem que fui batizado pelo PCC. Como? Onde? Fico 22 horas dentro da cela. Até minhas conversas com meu advogado são gravadas em vídeo. Como é que eu posso ter sido batizado?”, indaga. “Do jeito que as coisas são, quando você publicar a matéria vão dizer que o Nem tá fechado com o ETA [grupo terrorista basco que atuava na Espanha]!”, brinca.
Apesar de negar filiação ao PCC, Nem afirma que o modelo de negócios do grupo paulista é mais eficiente “e menos violento” do que o das facções fluminenses. Ele menciona a tese já famosa no meio acadêmico, de que o grupo criminoso foi responsável pela queda dos homicídios no Estado ao tomar para si o papel da Justiça nas periferias com os tribunais do crime. “Sem o PCC São Paulo ia virar um inferno. Quem você acha que acabou com a violência lá? Foi o Estado por acaso?”, questiona. Nem não acredita, no entanto, que a facção consiga ter sucesso em uma possível empreitada no Rio. “Lá é outra coisa. São muitos interesses diferentes, às vezes é tão bagunçada a situação lá que não dá nem pra chamar de crime organizado”.
Outra notícia envolvendo Nem da Rocinha ganhou as manchetes em setembro de 2017, quando a comunidade fluminense foi invadida por criminosos armados após sua namorada, Danúbia Rangel, ter sido supostamente expulsa do morro por Rogério 157. Autoridades disseram que a ordem partiu de Porto Velho. “Tudo que acontece na Rocinha dizem que fui eu. Quando teve esse problema na Rocinha eu estava há mais de dez dias sem receber uma visita. Como eu ia dar ordem pra invasão?”, questiona. Sobre Danúbia, que foi presa em outubro de 2017, Nem lamenta o que considera uma “vaidade” excessiva da companheira, famosa por aparecer nas redes sociais se divertindo em festas e até andando de helicóptero.
“Queria ler a biografia do Stalin, mas não foi autorizada pela direção”
Além do xadrez e do futebol, disputado no pátio do presídio (Nem tem contato com outros 12 presos durante o banho de sol), o ex-traficante também aproveita o tempo no cárcere para se dedicar a leituras: “Os últimos livros que eu li foram O príncipe, do Maquiavel, a biografia da Catarina a Grande, uns do John Grisham [autor de romances de tribunal] e livros jurídicos”. Ele lamenta, no entanto, a censura a alguns títulos. “Queria ler a biografia do Stalin, mas não foi autorizada pela direção”, diz. Na penitenciária de Porto Velho revistas e jornais enviados pelos familiares precisam passar pelo crivo de um departamento de triagem. Antes do início da visita do EL PAÍS, os guardas do presídio entregaram para a reportagem uma edição da revista IstoÉ sobre a intervenção federal no Rio, levada por algum parente para o preso mas que não teve a entrada liberada.
O livro que conta sua história, O Dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio(Companhia das Letras), do jornalista inglês Misha Glenny, também não foi autorizado para Nem. “Eu devo ser o único biografado que não pode ler a própria biografia”, comenta. Uma vez por mês os presos têm direito a assistir filmes. “Mas a censura é 12 anos”, brinca Nem. “A gente queria ver aquela comédia Se beber não case, mas não foi autorizada. É só de Formiguinhas pra baixo”.
“O que você faria no meu lugar?”
Nem da Rocinha foge do estereotipo do criminoso que se arrepende de seus malfeitos após a prisão. “Se eu me arrependo? Claro que não. Que pai não faria o que eu fiz pra salvar a vida da própria filha?”, questiona, referindo-se aos fatos que o levaram a deixar o emprego de supervisor de equipes da empresa de TV a cabo NET e entrar para o mundo do tráfico. O ano era 1999, e um caroço do tamanho de um ovo começou a crescer no pescoço de sua filha Eduarda, de 9 meses de idade. Em alguns meses pai e mãe precisaram deixar os empregos para peregrinar por hospitais, consultórios e centros de diagnóstico.
O problema na saúde da pequena mergulhou a família pobre moradora de um cortiço da Rocinha em uma espiral de dívidas médicas que chegaram a 20.000 reais. Para arcar com os custos Antônio precisou pedir um empréstimo para a única empresa disposta a dar dinheiro para um desempregado morador de favela: o tráfico de drogas. Para quitar a dívida, ele colocou sua expertise gerencial a serviço de Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu, o chefe do tráfico da Rocinha e uma das principais lideranças da facção criminosa Comando Vermelho(CV). "O que você faria no meu lugar?".
Fonte: El País. 14.03.2018.
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