Diante do cenário nacional atual, é essencial nos debruçamos sobre o tema do papel do juiz na delação premiada. É possível afirmar, com base, inclusive, no direito comparado, mais especificamente o italiano — país que, muito se diz, seria exemplo de sucesso no emprego do mecanismo — que o magistrado competente para decidir no âmbito de investigações criminais ou ações penais não pode participar ativamente da colheita de depoimentos de delatores, menos ainda da realização do acordo que a antecede, sob pena de perder a necessária imparcialidade para o posterior julgamento da causa.
No Brasil, aliás, a proibição de participação do magistrado nos acordos de delação premiada ou na posterior colheita de depoimentos ganha ainda mais relevância quando se observa que, ao contrário do que acontece alhures, por exemplo, na Alemanha, na França e na Itália, em regra, o juiz competente para processar e julgar a ação penal é o mesmo que atuou em toda a fase pré-processual.
No entanto, sequer seria necessário atravessar o oceano e recorrer ao direito comparado para se poder afirmar que ao juiz é vedada a participação ativa nos atos de formalização do acordo de delação premiada, bem como na subsequente colheita do depoimento do delator. Tal proibição decorre, por um lado, da compreensão amplamente aceita de que o magistrado, durante a fase inquisitiva, deve manter distância da atividade probatória, intervindo apenas para decidir sobre pedidos da polícia e do MP que interfiram nos direitos fundamentais do investigado e, por outro lado, da simples leitura da lei que rege o instituto da delação premiada, a saber, a lei de organização criminosa (Lei 12.850/2013).
De acordo com o parágrafo 6º do artigo 4º da referida norma, o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
E, de acordo com o parágrafo 7º do mesmo artigo, após realizado o acordo em questão e tomadas as declarações do delator, o respectivo termo será remetido ao juiz tão-somente para homologação, restringindo-se tal decisão apenas à verificação da regularidade, legalidade e voluntariedade da delação. O mesmo dispositivo legal autoriza o magistrado a ouvir o colaborador, na presença de seu defensor, apenas para esse fim, ou seja, para verificar a regularidade, a legalidade e a voluntariedade da delação premiada. Em outras palavras, tendo o juiz motivos para acreditar que o acordo e a colheita do depoimento foram realizados de forma irregular, ilegal ou que o delator não optou voluntariamente por celebrar o pacto e prestar depoimento, poderá ouvir o delator para esclarecer tais questões antes de decidir sobre a homologação.
Neste passo, prevendo a lei que o magistrado deve exercer o controle sobre a regularidade e a legalidade da delação, como se poderia imaginar que pudesse ele participar da celebração do acordo ou da tomada do depoimento? Poder-se-ia imaginar que a autoridade competente para homologar, ou não, o acordo de delação celebrado tivesse dele participado ativamente anteriormente? Não estaria, neste caso, o juiz exercendo controle sobre seus próprios atos?
Parece evidente que sim. E mais evidente ainda que apenas uma leitura leviana, ou no mínimo distraída, da aludida norma, poderia conduzir ao esdrúxulo entendimento de que o juiz estaria autorizado a participar do acordo de delação premiada ou da consequente tomada do depoimento do delator.
Assim, não se pode admitir como lícita a prova produzida a partir de depoimento prestado no âmbito de acordo de delação premiada do qual participou o magistrado competente para o julgamento da ação penal deflagrada a partir de seu conteúdo. Não fosse por franca violação ao sistema acusatório, pela simples afronta à letra da lei.
Fernanda Lara Tórtima é advogada criminalista, sócia do Tórtima Tavares Borges Advogados Associados.
Ademar Borges é advogado criminalista, sócio do Tórtima Tavares Borges Advogados Associados
Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2015.
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