O assunto “audiência de custódia”, no Brasil, incrivelmente, é tratado como um tabu. Ao menos é isso o que se nota de corajoso ponto de vista assumido por alguns promotores de Justiça atuantes no Estado de São Paulo subscritores de artigo publicado no blog do jornalista Fausto Macedo, do jornal O Estado de S. Paulo, em 04 de fevereiro. Os autores taxam a iniciativa conjunta do Tribunal de Justiça de São Paulo, do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça de implantação, em caráter cauteloso e evolutivo, do instituto no Estado de São Paulo, de “esquizofrênica”, além de se valerem de outras expressões fortes.
É desalentador perceber, nas palavras daqueles agentes do Estado, postura tão refratária à audiência de custódia, que é instituto consagrado em muitos países, inclusive latinoamericanos (Equador, Uruguai, Peru, Chile, Paraguai, México) — o que faz crer que, malgrado as misérias do sistema processual penal e sociais sejam parecidas com a brasileira, estão em nossa frente no que pertine ao respeito aos mais básicos direitos de qualquer cidadão acusado da prática de crime.
Os argumentos, repletos de expressões apaixonadas (como por exemplo “absurdo jurídico”, “teratologia”, “desastre”), vão desde a mal disfarçada confusão no tratamento da matéria até a retórica falaciosa na utilização do conceito de separação de Poderes.
Há uma clara confusão conceitual entre a audiência de custódia e a “audiência una”, prevista no Código de Processo Penal desde 2008, com a finalidade de se cumprir com o mandamento constitucional de celeridade processual. Ora, enquanto a última tem o propósito claro de abreviar o tempo de duração do processo até a sentença de mérito, o escopo da audiência de custódia é bem outro, inconfundível. O que ela visa é, exatamente em fase procedimental anterior à própria judicialização da demanda, garantir ao cidadão preso o contato com o juiz não para desfiar suas teses defensivas no processo, mas o seu contato com o juiz com a finalidade de se atestar — não “para inglês ver” — a legalidade de sua prisão processual e, inclusive, se é ou não o caso se aplicarem medidas processuais penais alternativas. Os fins são absolutamente distintos, e por isso mesmo o momento de aplicação de uma ou outra “audiência” igualmente o é.
Dizer, por isso, que a audiência de custódia atravanca a marcha processual é um dislate não só porque confunde os institutos, como também porque coloca na mesma balança as situações de prisão e de projeção do julgamento do mérito do caso, em interpretação amesquinhadora dos direitos do próprio investigado — o que é inconcebível. Mas pior ainda é se imaginar que, por questões de tempo e espaço em fóruns, a alteração não deva ser levada a sério. E tempo e espaço nos presídios, onde a pessoa está presa sem a merecida e expedita apreciação jurisdicional, não conta?
Mas, além disso, ao se pretender afirmar que audiência de custódia é preconceituosa e que sua realização faria capitis diminutio da análise dos agentes públicos quanto à prisão de qualquer pessoa é, por outro lado, argumentar o contrário do que se pensa. Ora: justamente por se crer que juízes e promotores, sim, são capacitados para aquilatar da legalidade das prisões é que se cobra deles a atuação mais obsequiosa aos direitos envolvidos, com o contato pessoal, e não meramente protocolar, no papel, com a situação trazida.
O ponto é importante: é por se confiar na capacidade dos agentes públicos, garantes que são da legalidade e constitucionalidade da prisão, que deles se espera a boa-vontade de saírem de seus gabinetes e deixarem de apenas “ler papéis” e dizer que “o flagrante está formalmente em ordem”, para verem o investigado e analisarem pari passu com os defensores e ouvirem o investigado, especificamente, sobre a situação de sua prisão. Qual o problema em se reconhecer que, sim, a justiça tem rosto e corpo?
É óbvio que patrocinar a ideia da audiência de custódia não significa conjecturar com a ideia de “justiça seletiva”. Ao contrário, basta se atentar às estatísticas oficiais — no Estado de São Paulo e no Brasil — para se perceber a dramática situação percentual de presos provisórios e, dentre eles, a crueldade que todos sabem que se impinge aos menos favorecidos. Afinal, a dita “justiça seletiva” é o que existe ainda hoje e a audiência de custódia almeja justamente acabar com essa vergonhosa situação.
E não há preconceito algum quanto à atuação de órgãos policiais na exibição rápida do preso ao juiz, diante da possibilidade real e diuturna de sevícias que tenham sofrido em qualquer momento de sua prisão. O risco de tortura, para se dizer pouco, é sim palpável e real, como se noticiam diariamente em São Paulo e em qualquer Estado da Federação. Dizer que a pretensão de apresentação do preso ao juiz é desconfiar excessivamente de policiais, com todo o respeito, parece tentar fingir que isso não existe. O argumento, pois, não pode ser levado a sério, a não ser que se diga, também, que as disposições penais da própria Lei de Combate à Tortura (Lei 9.455/97) também sejam preconceituosas e que as atuações de órgãos correicionais policiais e judiciais não têm razão de existir.
Por fim, menciona-se a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ratificada no Brasil há mais de 20 anos para se interpretar que sua incorporação ao direito nacional não goza de “status” constitucional e que a matéria em questão seria de competência legislativa privativa da União.
Aqui, o argumento formal é, até, mais perigoso, porque especioso. Não importa tanto o “status” atribuído à dita Convenção — matéria essa que se sabe ser tormentosa entre autores e ministros do STF — quanto o que ela diz. Noutro giro: o que conta é seu conteúdo, e polêmicas do “status” à parte, fato é que a incorporação tem, ao menos, o “status” de lei ordinária. Disso sabem todos.
Assim, mesmo que doa lembrar de situações levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos justamente pelo desrespeito às normas convencionais claras na matéria (artigo 7, item 5), como foi o caso Lopes Álvarez v. Honduras, o fato é que a normativa de São Paulo pode ser vista não como norma geral “processual”, mas como matéria “procedimental em matéria processual” (artigo 24, inciso XI, Constituição Federal).
E nesse campo a competência legislativa, ao contrário de ser privativa da União, é concorrente entre todos os entes da Federação, com a ressalva importante, inclusive, quanto ao advento de Lei Federal posterior que discipline de forma distinta a matéria até então tratada em âmbito estadual (artigo 24, parágrafo 4º, CF).
A bem da verdade, ainda nesse ponto, por ser clara a dicção da norma convencional válida no Brasil, sequer se precisaria, seja de alteração no Código de Processo Penal (pois tramita, há tempos, o PLS 554/2011), seja da legítima iniciativa conjunta criticada pelos tais promotores. Exemplo disso, aliás, é o de recente decisão liminar proferida por integrante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (HC 0064910-46.2014.8.19.0000). Ou será que aquela decisão é fruto de um exacerbado “ativismo judicial” e, até, “esquizofrênica”?
Aliás, além de, no plano doméstico, ser bastante a regra constitucional do artigo 5º, parágrafo 1º, que estipula a aplicabilidade imediata das normas atinentes ao exercício de direitos fundamentais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já asseverou, no Parecer Consultivo 07/86, que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos é autoaplicável.
Ademais o projeto idealizado em São Paulo é um “Projeto Piloto”, a ser implementado apenas na capital paulista e de forma escalonada, visando justamente adequar as instituições preocupadas no cumprimento da dita Convenção de Direitos Humanos, que, frise-se outra vez, é recebida pelo ordenamento brasileiro com, no mínimo, força de lei. O que se tenta fazer, pois, é cumprir a lei, nem mais nem menos que isso.
Em síntese, é realmente corajoso o ponto de vista assumido por aqueles promotores de Justiça, como se a situação calamitosa do sistema processual penal brasileiro — e particularmente as fiscalizações de prisões cautelares — fossem suficientemente eficazes como se argumenta serem, para evitar jogar e manter presos cidadãos que talvez não precisassem sê-lo. Não se imagina que realmente se acredita que nada deva ser — urgentemente — mudado, para que o Brasil possa se dizer um Estado de Direito.
Preconceituosos, teratológicos, absurdos jurídicos, são, com o devido respeito, os argumentos daqueles que fazem de tudo para manter o vergonhoso quadro como está.
Hugo Leonardo é advogado criminalista e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Renato Stanziola Vieira é advogado, sócio do escritório Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, coordenador da comissão de estudos e projetos legislativos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
Andre Pires de Andrade Kehdi é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
André Augusto Salvador Bezerra é juiz de Direito, presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2015.
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