O artigo a seguir, sob o título “Audiência de Custódia“, é de autoria de Bruno Luiz Cassiolato, Juiz de Direito da vara Criminal de Caraguatatuba (SP).
Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça e a Secretaria de Justiça, editou provimento que determina aos magistrados do Estado a realização de “audiências de custódia” para que o preso em flagrante seja ouvido em Juízo em até 24h da ocorrência, devendo o magistrado, neste ato, e na presença do MP e de um defensor, decidir pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, pela imposição de medidas cautelares diversas da prisão ou pela concessão da liberdade provisória.
Muita discussão está acontecendo no meio jurídico, e há opiniões favoráveis e contrárias à introdução do instituto em nosso ordenamento jurídico.
Assumindo a introdução do instituto em questão como fato praticamente consumado, entendo que o ponto não é ser contra ou a favor da audiência de custódia, mas avaliar seus objetivos, como se pretende que eles sejam alcançados, se a adoção dela, por si só, pode ser suficiente para tanto e se ela é compatível com nosso sistema processual penal.
Não me manifestarei quanto ao veículo normativo empregado para a introdução da audiência de custódia em nosso Estado – embora existam muitas críticas nesse sentido – e nem mesmo quanto à interpretação que se fez a respeito das previsões contidas no Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário – embora haja tantas outras.
Pela minha experiência, judicando exclusivamente na seara penal na comarca mais violenta de São Paulo, realizando mais de 150 instruções por mês e analisando cerca de 60 autos de prisão em flagrante no mesmo período, receio que o custo benefício seja muito baixo e que os resultados não sejam alcançados, além do que nossa pouca estrutura material será ainda mais onerada, sem ganhos efetivos para a defesa.
Explico.
Os números de nossa população carcerária e, dentro deles, a quantidade de presos provisórios, são realmente alarmantes.
Esses números, sob minha visão, e salvo melhor juízo, decorrem muito mais de questões sociais e civilizatórias que enfrentamos atualmente (desigualdade social, aumento de crimes violentos, dificuldades de se coibir minimamente o tráfico de drogas, baixa escolaridade, falta de oportunidades profissionais, dentre outras) e de uma cultura de punição e vingança que parecem permear a sociedade (especialmente os meios de comunicação) que de certo modo acabam refletidas na atuação da polícia, do Ministério Público e da Magistratura. Não decorrem de falta de instrumentos processuais ou de falhas técnicas na aplicação jurisdicional deles.
Para tanto, quanto ao primeiro ponto, basta lembrar que o Código de Processo Penal foi alterado no ano de 2011, por meio da Lei. 12.403, justamente com os mesmos objetivos hoje perseguidos. Foram inseridas no ordenamento jurídico várias medidas cautelares menos gravosas, diversas da prisão processual, e o número de presos provisórios não diminuiu. Ao contrário.
Quanto ao segundo ponto, observo que as decisões proferidas pelos juízes de primeira instância, convertendo as prisões em flagrante em prisões preventivas, sempre são questionadas pelos defensores por meio de recursos, fazendo com que os tribunais de segunda instância e até mesmo as cortes superiores as analisem novamente. E o número de presos provisórios em nosso país nunca diminuiu. Se o número de presos provisórios em nosso país é elevado, ele é fruto não apenas de decisões que foram proferidas pelos juízes de primeira instância que terão de realizar as audiências de custódia, mas também de todos os demais desembargadores e ministros que as mantiveram após serem desafiadas por recursos.
Assim é que –segundo a experiência pretérita e tendo em conta a cultura que permeia boa parte da atuação da Polícia, do Ministério Público e da Magistratura– receio que a adoção da “audiência de custódia”, por si só, possa não contribuir para a diminuição relevante do número de presos provisórios no país e nem para racionalizar o trabalho da polícia civil.
Passo às considerações.
Pelas informações publicadas a respeito do tema pela imprensa, especialmente a partir de entrevistas concedidas pelo Secretário de Justiça do Estado e pelo que se observa do provimento editado pelo E. TJ/SP, o auto de prisão em flagrante delito e a colheita do respectivo interrogatório extrajudicial continuará a ser lavrado pela autoridade policial e somente então será submetido ao magistrado, o que já é feito atualmente. Somente após é que o auto de prisão será trazido para apreciação do juiz, também como é feito hoje em dia, mas agora com a presença física do autuado.
Nesse ponto o trabalho desenvolvido pela polícia civil continuará praticamente o mesmo, se não o mesmo, e o trabalho da polícia militar aumentará sobremaneira, já que seus homens precisarão escoltar e conduzir os presos em flagrante à presença do juiz, além daqueles conduzidos para as audiências de instrução e julgamento.
Aqui em Caraguatatuba, por exemplo, comarca mais violenta do Estado de São Paulo, há quatro anos seguidos, existem apenas quatro viaturas policiais à disposição da corporação. Além disso, é preciso mencionar que a presença física do preso pouco acrescentará aos elementos que hoje já são apreciados pelos juízes que recebem autos de prisão em flagrante, eis que devem apreciar e julgar fatos, e não pessoas, em sentido técnico.
Embora a previsão da “audiência de custódia” possa coibir violência física cometida por policiais militares no momento da prisão em flagrante delito, as rotineiras alegações de “coação moral” sofridas pelos presos durante os trabalhos realizados nas delegacias de polícia, especialmente durante os interrogatórios, poderão continuar a acontecer.
Nessa situação o juiz receberá o auto de prisão em flagrante já lavrado, e se tiver havido “coação moral” pouco de realmente efetivo poderá ser feito, ainda que com a presença física do preso, eis que a “coação moral” não deixa marcas (visíveis) e, na prática, dificilmente o juiz poderá comprová-la confrontando a autoridade policial.
Ainda nesse tópico, recebendo o auto de prisão em flagrante delito já lavrado, embora agora com a presença física do preso, continuarão a existir as alegações de que “a confissão contida no auto não foi feita pelo preso”, “que assinou o documento sem ler ou sem saber ler”, de “que confessou apenas por desconhecer a lei”, que “os fatos não foram bem aqueles”, ou que “ficou em silêncio não por vontade própria, mas porque a autoridade policial não oportunizou a fala”, dentre tantas outras que os juízes criminais ouvem diariamente quando vão interrogar o réu ao final da instrução processual.
Vale registrar, ainda, que não se pode presumir que os policiais militares e civis desconhecem suas obrigações e atuam à margem da lei, de forma leviana ou truculenta. Para os poucos que assim agem, existem as corregedorias e a justiça para que seja feita a apreciação de seus atos por ventura desviados. A terceirização de funções institucionais alheias ao Poder Judiciário somente traz sobrecarga além daquela já existente. E do ponto de vista da integridade física do preso –-e não se discute que deve ser preservada-– a sugestão que será feita adiante supera –-e com vantagens-– aquilo que se pretende com a mera adoção da audiência de custódia.
Nas “audiências de custódia” o magistrado fará perguntas objetivas a respeito das circunstâncias em que ocorreu a prisão em flagrante, além daquelas de cunho pessoal e social do autuado, mas o preso, que é leigo e que certamente está em situação difícil, prezando legitimamente por sua liberdade, não deixará de falar espontaneamente sobre o mérito da ocorrência e da pretensão penal que será deduzida apenas em momento posterior. É um fato natural. E assim, como não temos os juízos de garantia separados dos juízos de instrução (medida que seria bastante salutar em nosso ordenamento e que traria mais sentido para as “audiências de custódia”), o julgador poderá ter contato com algo que lhe deveria ser trazido pelo réu somente ao cabo da instrução processual e desde que, sob orientação profissional de advogado, fosse interessante a sua exposição. Em determinados casos, fragilizada a prova produzida durante a instrução processual, o melhor caminho para a defesa pode ser o silêncio. Na prática, aquilo que corretamente foi reservado para ser o último ato da instrução processual pode ser tornar o primeiro, com prejuízos à defesa.
No modelo atual, o interrogatório feito pela autoridade é analisado com valor relativo pelo magistrado ao cabo da instrução processual –isso quando é analisado, o que é correto–, mas será difícil o magistrado não se contaminar com uma eventual confissão feita pelo preso durante sua “audiência de custódia”.
Há várias outras questões de ordem prática, e a limitação de espaço impede a exposição de todas elas.
Feitas essas ponderações iniciais, passo a fazer sugestões que, considerando o contexto acima, podem, a meu ver, contribuir para que as “audiências de custódia” alcancem seus objetivos da melhor forma possível e para que, com foco naquilo que realmente importa, tenhamos um processo penal constitucionalizado, democrático e orientado, a um só tempo, para o efetivo cumprimento dos direitos e das garantias dos presos e dos acusados em geral e para o incremento de nossa segurança pública de modo compatível com os recursos materiais finitos que temos a disposição.
1) Essa primeira sugestão demanda discussões e estudos aprofundados, mas eles devem ser feitos e o momento parece oportuno, dado o envolvimento do CNJ, dos Tribunais, do Executivo, da OAB, da Defensoria Pública e outros órgãos em torno de todos os assuntos que envolvem não apenas o número de presos provisórios, que é apenas o sintoma de algo maior que precisa ser identificado e ajustado, mas o próprio sistema penal e processual penal.
As “audiências de custódia”, por si sós, inseridas sem ajustes em nosso sistema processual, enfrentarão todas as questões abordadas acima e mais outras que não foram expostas pela limitação do espaço.
As “audiências de custódia” têm lugar e fazem total sentido em sistemas processuais que (i) adotam os “juízos de garantias” separados dos “juízos de instrução”, com funções bem definidas e sem que haja “contaminações” de qualquer ordem de atos que se praticam durante a fase inquisitiva e durante a fase judicial ou que (ii) adotam instrumentos que podem ser aplicados já durante a apresentação do preso em flagrante ao magistrado, como no direito norte-americano, os quais muitas vezes abreviam o resultado processual ou até suprimem a necessidade da instauração formal do processo, o que proporciona celeridade processual, efetividade na resposta penal ao fato criminoso, diminui a sensação de impunidade, e contribui para a punição justa e razoável do acusado ou para a retirada imediata da verdadeira “espada de Dâmocles” que pende sobre aquele acusado que precisa aguardar por muito tempo para ver reconhecida a sua inocência.
Há outras sugestões que talvez possam ser inseridas ainda no projeto-piloto instituído em nosso Estado, por ora na capital, e que a meu ver contribuem para o incremento dos resultados buscados por meio das “audiências de custódias” e, com vantagens, se não as substituem, proporcionam o desenvolvimento de um processo penal com mais respeito às garantias da defesa.
A primeira delas seria a gravação –em áudio e vídeo– do interrogatório do preso feito pela autoridade policial, cuja mídia seria encaminhada ao magistrado quando da remessa do auto de prisão em flagrante. Com um custo reduzido, talvez menor do que os que serão envolvidos na realização das escoltas e transportes de presos em flagrante pelas viaturas militares, que não raro deixam de ser feitos para as audiências decisivas de instrução e julgamento, causando excesso de prazo, certamente coibiria/afastaria qualquer tipo de “coação moral” que esteja ocorrendo nas delegacias de polícia.
A segunda, concomitante à primeira, mas mais importante do que ela, seria a presença obrigatório de um defensor (constituído ou plantonista, nomeado só para o ato) no ato da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, especialmente antes e durante o interrogatório conduzido pela autoridade policial.
Com a adoção desse procedimento, novamente haveria (i) eliminação de qualquer tipo de “coação moral” nas delegacias de polícia, (ii) os defensores –tanto quanto os juízes, e na medida do que a experiência comum permite a ambos, eis que não possuem formação médica ou pericial– poderiam constatar violência física sofrida pelo preso no ato de sua prisão e, mais importante e mais decisivo, se a ideia for construir um processo penal materialmente digno e civilizado, (iii) o preso contaria com instrução profissional e orientação a respeito de sua defesa desde o início, antes mesmo de o auto de prisão chegar ao magistrado, o que afastaria também as alegações expostas anteriormente (“não li”, “não sei ler”, “não disse isso”, “confessei porque fui obrigado”, “falei aquilo por desconhecer a lei”). Essa providência, de fato, é que seria fundamental para que todos os objetivos pretendidos sejam atingidos.
Há outras sugestões importantes para o tema e que poderão ser desenvolvidas oportunamente.
Ressalto, por fim, que não mais se trata de ser a favor ou contra a audiência de custódia, a intenção destas ponderações e sugestões é contribuir para a compreensão dos fenômenos que estamos enfrentando na seara criminal atualmente e para a construção de um processo penal mais moderno e mais efetivo, respeitador dos direitos e garantias individuais dos presos e dos acusados em geral e voltado para a melhora de nossa segurança pública, sempre com olhos para as possibilidades materiais que temos. Diminuir números, simplesmente diminui-los, nem sempre parece ser a solução definitiva, porque eles são frios e variam ao longo do tempo.
É preciso fazer modificações substantivas, duradouras, compatíveis com a nossa realidade material e jurídica e que resolvam a matriz dos problemas que temos, e não apenas os seus sintomas.
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