Carlos Alberto Sardenberg*
Todo mundo sabe o que é auxílio-moradia. O empregado trabalha numa cidade e o empregador o transfere para outra. Para fazer a mudança, cobrir gastos com hotel enquanto arruma a casa nova e para transferir a família, o empregador paga o auxílio-moradia. Paga também quando o funcionário vai trabalhar por um tempo determinado na outra praça, circunstância em que fica, digamos, morando em dois lugares.
Com base nessa ideia geral, os deputados federais incorporaram um auxílio-moradia a seus vencimentos. Parece fazer sentido: os deputados não moram em Brasília, apenas passam lá alguns dias da semana. E o mandato é provisório, tem de ser renovado, ou não, a cada quatro anos. Assim, o Congresso, ou seja, o contribuinte, paga um auxílio por esses dias que o parlamentar passa em Brasília no exercício do mandato.
Tudo certo? Mais ou menos. Ninguém é obrigado a ser deputado. A pessoa se candidata porque quer, oferece-se aos eleitores. É diferente do empregado que é transferido pelo patrão. Na verdade, os parlamentares inventaram esse auxílio como uma maneira de aumentar seus vencimentos mensais sem parecer que estão fazendo isso. Um drible na lei e no bom senso, mas, ainda assim, têm o argumento de que gastam mesmo com moradia transitória, apresentam recibos de hotel e tal.
Vai daí que os juízes, representados por suas associações, perceberam no expediente uma maneira de também aumentar os ganhos mensais. Diz a Constituição que parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) devem ter vencimentos equiparados. Ora, os parlamentares não têm o auxílio-moradia?
Resultado: os tribunais, primeiro, deram o auxílio-moradia aos ministros do STF. Faz menos sentido do que no caso dos parlamentares. Os ministros do Supremo devem morar em Brasília, de modo que deveriam ter um auxílio apenas no momento da mudança, quando são nomeados para o cargo. Seria uma verba específica, contra recibos específicos. Mas, de novo, vá lá. Aos 70 anos eles se aposentam, voltam para suas cidades, de modo que se pode considerar a passagem por Brasília provisória, ainda que por muitos anos. É uma interpretação forçada, mas enfim...
Porém a coisa avançou. Como os vencimentos de juízes dos escalões inferiores são uma parcela daqueles recebidos pelos colegas do Supremo, deu a lógica, a lógica deles, claro: toda a magistratura ganhou o direito de receber o auxílio-moradia - esse valor não contando como salário e, portanto, podendo furar o teto.
Não importa se o magistrado é transferido ou não, se está de passagem, se mora ali mesmo - ele recebe o auxílio para sempre, ou seja, não é mais uma verba especial, mas um vencimento mensal. E mais: aplicaram retroativo. Acrescente aí a correção monetária, etc., e juntou-se um bom dinheiro a receber.
Tudo absolutamente normal, diz o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. Normal?
Imagine, caro leitor, que os parlamentares tivessem criado um auxílio-misto-quente, para pagar lanches quando se deslocassem pelos seus Estados para falar com os eleitores. Faria sentido estender essa verba aos magistrados?
Na verdade, toda essa discussão não faz sentido. O ponto é outro. Os magistrados acham que não são remunerados à altura do seu trabalho. O desembargador Sartori disse, em entrevista à revista Veja, edição 2.255, que R$ 24 mil mensais é inferior às necessidades de um juiz do Tribunal Superior do Estado.
Essa é uma boa discussão - quanto deve ganhar um juiz no Brasil? - e a categoria deveria mesmo abrir publicamente o debate. Mas, em vez disso, o que se viu nos últimos anos? Uma atitude corporativa que inventa quebra-galhos, como esse do auxílio-moradia, para aumentar os vencimentos fazendo parecer que não se trata de aumento nem de vencimento. Tanto que, como admite Sartori, os juízes recebiam os atrasados sem que isso constasse nos holerites. Segundo ele, deve ter sido um "equívoco administrativo", mas foi necessário criar o Conselho Nacional de Justiça para que esses "equívocos" começassem a ser apurados. Já para Sartori, o problema apareceu quando a "imprensa começou a bater nos juízes", com essa "história de que o Poder é uma caixa-preta". Ocorre, porém, que foi só a partir daí que o público ficou sabendo dessas e de outras situações.
De todo modo, o desembargador Sartori tem uma boa atitude. Veio a público para o debate. Comecemos, pois.
Diz ele que o "alto executivo de uma empresa" ou o presidente da Petrobrás ganham muito mais que os R$ 24 mil de um magistrado estadual. Verdade. Mas ambos são demissíveis a qualquer momento. Os acionistas controladores nem precisam explicar. Lembram-se do caso Roger Agnelli? Ou de José Gabrielli? Juízes só perdem o cargo se fizerem coisas muito erradas, na frente de muita gente. E são aposentados com vencimentos.
Além disso, não são R$ 24 mil. É preciso acrescentar os auxílios e outras vantagens, como os dois meses de férias. É curioso aqui. Sartori defende os dois meses dizendo que o trabalho do juiz é desgastante e que vários colegas têm problemas psicológicos. Logo, precisam descansar 60 dias, e não 30 como os demais trabalhadores.
Ganha uma vaga de juiz, sem concurso, quem apontar o trabalho de um brasileiro comum que não seja desgastante e estressante. E vamos falar francamente: o trabalho de um juiz não pode ser mais pesado do que, digamos, o médico operando no pronto-socorro, o policial trocando tiros com os bandidos, o operário moldando peças no torno ou o boia-fria colhendo cana.
Além disso, o próprio Sartori comenta, em outro trecho da entrevista, que poucos juízes tiram os dois meses de férias. A maioria "vende" um período, de modo que se trata de um salário extra. A maioria também vende a licença-prêmio (três meses a cada cinco anos), outra providência que engorda os vencimentos. Com isso, os juízes ficam como os demais trabalhadores, um mês de férias, mas ganhando um extra. E ninguém tem mais feriados do que os 35 dias/ano dos juízes.
Voltaremos ao debate, mas deixo desde já um outro ponto. Não se trata apenas de saber quanto um juiz merece ganhar, mas também de quanto o Estado pode pagar.
*É jornalista
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