Um caso de condenação por tráfico de drogas vindo da segunda instância foi apontado no Superior Tribunal de Justiça como exemplo dos problemas da legislação brasileira para lidar com o tema. Um homem foi condenado por tráfico pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul após ser preso com 0,7 gramas de crack.
Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ, o acórdão apenas confirma que o condenado é usuário, mas a lei de drogas atual é ambígua e permite condenação por tráfico mesmo em casos como esse. O acusado foi preso em 2015 portando 0,7 grama de crack. O Ministério Público o acusou de guardar, transportar, oferecer e vender drogas, mas o juiz de primeira instância entendeu que não ficou provada a prática de comércio e que o entorpecente era para consumo próprio.
Ao desclassificar a conduta para porte de drogas para uso próprio, a sentença extinguiu a punibilidade, pois o acusado já estava preso preventivamente por cinco meses — punição superior à prevista pelo artigo 28 da Lei de Drogas. O TJ-RS reformou a decisão, entendendo que o fato de o réu trazer a droga consigo já era suficiente para caracterizar o delito de tráfico (artigo 33).
Questão problemática
Ao analisar o pedido de Habeas Corpus, o ministro Schietti destacou que a apreensão de apenas 0,7 grama de droga e a ausência de diligências para comprovar o tráfico tornaram a condenação “totalmente descabida”. Segundo ele, não há, no acórdão do TJ-RS, nenhum fato que demonstre efetivamente a prática de tráfico. A única coisa provada no processo é que o indivíduo é consumidor de droga.
Para o relator, o caso é representativo de um problema que não foi resolvido pela nova Lei de Drogas. “A Lei 11.343 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e a do pequeno, médio ou grande traficante, questão essa, aliás, que já era problemática na lei anterior (6.368/1976)”, afirmou.
“Não por outro motivo a prática nos tem evidenciado que a concepção expansiva da figura de quem é traficante acaba levando à inclusão, nesse conceito, de cessões altruístas, de consumo compartilhado, de aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio e, por vezes, até de administração de substâncias entorpecentes para fins medicinais”, disse.
Rogerio Schietti ressaltou que, no ano seguinte à vigência da atual Lei das Drogas, houve um aumento de 38% das prisões por tráfico, e tais estatísticas permaneceram expressivas em todos os anos seguintes, culminando em um aumento de 480% das prisões por tráfico nos últimos dez anos.
Excepcionalidade do caso
Em seu voto, acompanhado por unanimidade pelos demais ministros da Sexta Turma, Schietti lembrou que a jurisprudência considera inviável discutir a desclassificação de conduta criminosa em habeas corpus porque isso geralmente exige o exame de provas, o que não é admitido nesse contexto processual.
Entretanto, o magistrado destacou que o caso julgado é excepcional, pois o indivíduo (primário e com bons antecedentes) foi preso com apenas 0,7 grama de crack e condenado a sete anos de prisão em regime fechado (um ano para 0,1 grama), quando a sentença reconheceu que não havia prova de venda de droga.
Além disso, Schietti assinalou que, para a desclassificação da conduta e o restabelecimento da sentença, não havia necessidade de exame de provas, mas apenas de revaloração jurídica dos fatos já reconhecidos no acórdão do TJ-RS.
Drogas e penitenciárias
A ConJur tem publicado uma série de reportagens sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. O especial teve como motivação a onda de rebeliões e massacres em presídios no início de 2017. Conforme já demonstrado pela ConJur, a proibição aos entorpecentes sobrecarrega o sistema carcerário, fortalece as organizações criminosas e gera conflitos entre elas.
A primeira reportagem da série mostra como o uso e a venda de drogas como maconha, cocaína e opiáceos não foram proibidos devido a estudos que apontassem seus malefícios à saúde e à sociedade, mas por motivos religiosos, morais, econômicos e sociais. E o saldo de mais de um século desse combate é pífio: mais violência e mais prisões, sem reduzir o uso dessas substâncias.
A segunda relata que mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase impossível a absolvição de um acusado.
Já a terceira demonstra como o tráfico de drogas viola o sistema pena brasileiro. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso dá margem a arbitrariedades e dificulta ainda mais o trabalho da defesa.
A entrevista com o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (Psol), veiculada neste domingo (19/2), é o quarto texto do especial. À ConJur, Freixo disse que se a legislação fosse cumprida, o sistema carcerário já estaria em uma situação bem melhor. Além disso, ele defendeu a regulamentação das drogas e criticou o discurso punitivista. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2017.
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