*Este é o sétimo texto da série produzida pela ConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.
O tráfico de drogas é o crime que mais encarcera no Brasil: 28% dos detentos foram condenados por tal delito. E o impacto dele é ainda maior sobre as mulheres: dois terços das presas foram enquadradas no artigo 33 da Lei de Drogas (
Lei 11.343/2006). Ao contrário do que determina a Constituição, as penas extrapolam essas mulheres e punem suas famílias. O efeito disso é nefasto: sem a figura materna, os filhos ficam desamparados, e, muitas vezes, acabam caindo no mundo do crime. Isso é o que afirma a criminalista
Maíra Fernandes, ex-presidente do Conselho Penitenciário do estado do Rio de Janeiro.
Fora que, na maioria dos casos, as mulheres servem de bucha de canhão para maridos, pais, filhos e chefes do tráfico, avalia a advogada. “Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.”
Diferentemente do que ocorre com os homens, as mulheres não recebem suporte da família quando vão para a cadeia, ressalta Maíra, que é sócia do escritório Técio Lins e Silva, Ilídio Moura e Advogados Associados. Os namorados e maridos não as visitam, seja porque têm medo de ser presos, seja porque as abandonam. Como as mães, irmãs e tias delas acabam tendo que assumir os filhos das detentas e conciliar a criação deles com trabalho, ficam sem tempo para visitá-las. Resultado: além do isolamento afetivo, as presas ficam sem ninguém para levar-lhes itens em falta nas penitenciárias, como alimentos, roupas, itens de higiene básica, conta a advogada. Nesse cenário de escassez, ficam até sem absorventes.
Os acusados de tráfico de drogas são presos e condenados, na maioria das vezes, apenas com base em depoimentos de policiais, sem que seja provado seu dolo, lembra Maíra. Segundo ela, essas violações do direito de defesa, combinadas com a “absurda” classificação do tráfico como crime hediondo, fazem com que a venda de entorpecentes seja o delito que tem mais culpa pela superlotação do sistema prisional.
“É um absurdo [
que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo]. É um
nonsense. Na verdade, é outro fator de aumento do encarceramento nos casos de tráfico, seja por conta da manutenção do condenado na prisão, seja pelas dificuldades de concessão de benefícios, porque a natureza hedionda aumenta a fração de pena necessária para se conseguir os benefícios. Então, isso dificulta consideravelmente a progressão de regime, o livramento condicional. Além disso, a Lei dos Crimes Hediondos (
Lei 8.072/1990) veda graça, indulto e anistia ao tráfico de entorpecentes, previsão que não tem respaldo na
Constituição Federal.”
E quando os condenados deixam a cadeia, aponta a criminalista, enfrentam toda sorte de dificuldades para conseguir recomeçar sua vida. A razão disso é que só é possível tirar título de eleitor após o cumprimento integral da pena, e extremamente complicado emitir CPF antes disso. Dessa maneira, aqueles que vão para os regimes semiaberto e aberto ou estão em livramento condicional não conseguem trabalho, tanto por recusa dos empregadores quanto por não conseguirem abrir conta bancária ou empresa. “A sociedade exige que esse sujeito saia da prisão e não cometa mais crime, mas não dá nenhum suporte para que ele não o faça”, critica Maíra Fernandes.
Conhecedora da realidade das penitenciárias, a advogada acredita que unidades administradas por entidades privadas não são a solução para a crise do sistema. Isso porque a lógica do lucro faz com que as empresas economizem nos serviços prestados aos detentos e façam lobby para aumentar a população carcerária.
Umas das medidas indicadas por Maíra para melhorar as cadeias é a regulamentação das drogas. Outra é investir em modelos alternativos, como as Associações de Proteção e Assistência a Condenados (Apacs) e colônias agrícolas.
A advogada recebeu a
ConJur em seu escritório, no Centro do Rio de Janeiro, onde estava acompanhada na primeira parte da conversa pelo sócio-fundador da banca
Técio Lins e Silva (também entrevistado). Expressiva, Maíra deixa claro que está indignada com a guerra às drogas, a cultura punitivista e as medidas demagógicas anunciadas pelo governo federal para combater a crise carcerária.
Leia a entrevista:
ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Maíra Fernandes — Tenho esperança de que as audiências de custódia ajudem a evitar a manutenção das prisões, embora isso não vá resolver o problema do processo como um todo. É no momento da prisão e na delegacia que uso vira tráfico, que furto vira roubo, que as histórias se fazem, se constroem, e que vão para o papel. Essas prisões têm tudo a ver com o lugar onde houve a apreensão da droga. Como a lei não distingue precisamente uso de tráfico, uma mesma quantidade de droga apreendida no Complexo do Alemão [na Zona Norte do Rio] e na Rua Farme de Amoedo [em Ipanema, na Zona Sul do Rio] pode gerar um registro de tráfico no primeiro caso e um de uso no segundo. Então, tem muito a ver com o CEP, a cor, com o nível social do abordado. No caso das mulheres, além das usuárias presas como traficantes, há aquelas que são presas por tráfico de drogas porque houve uma apreensão de drogas em sua casa, só que quem comercializa aquela droga é o marido, o pai, o filho. Mas como é a mulher que está em casa no momento, ela acaba sendo presa em flagrante. A palavra do policial acaba tendo um efeito gigantesco no processo, é muito difícil revertê-la, porque considera-se que o policial tem fé pública. Sem outras testemunhas, fica a versão do policial contra a versão do réu ou da ré. Daí é quase impossível conseguir uma absolvição.
Uma vez eu peguei um processo no conselho penitenciário de um menino que tinha sido preso por associação ao tráfico de drogas. O rapaz dizia que tinha chegado em casa ao fim do dia — ele trabalhava e estudava —, e na hora em que a polícia estava subindo o morro, ele deixou cair uma panela no chão enquanto estava fazendo o jantar. A polícia achou que ele tinha feito esse barulho de propósito, para alertar os traficantes da ação policial e prendeu o rapaz. Seu depoimento não valeu nada no processo — ele foi condenado. Não havia mais nenhuma outra prova contra ele. Isso mostra a força da palavra dos policiais. Quando há apenas a palavra do policial contra a palavra do réu, sem outras provas, deveria haver absolvição. Mas não é isso que acontece.
ConJur — Qual é o impacto da Lei de Drogas no encarceramento feminino?
Maíra Fernandes — É gigantesco. O fato de que 64% das presas estão lá por tráfico de drogas nos leva a repensar a necessidade desse encarceramento. A Lei de Drogas aumentou o encarceramento de uma forma enorme, e mais ainda o feminino, que cresceu 567% de 2000 a 2014. Esse número é monstruoso, é assustador. E o mais comum é o encarceramento feminino por tráfico privilegiado. Tal como no mercado formal de trabalho, também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas. São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hierarquia, de modo que a maioria está em posição mais vulnerável e suscetível ao encarceramento. Nessa seara, a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos.
O princípio de que nenhuma pena ultrapassará a pessoa do condenado não se aplica nesses casos, pois as penas das mulheres passam para toda a família. Muitas vezes, a mulher é presa e ninguém de sua família é avisado por vários dias. Quando você conversa com detentas, a primeira coisa que elas perguntam é “como está o meu filho?”. É de cortar o coração. Fora a falta de suporte material. Com o sistema penitenciário falido, falta tudo na prisão — pasta de dente, xampu, sabonete, roupa, comida, dinheiro para a cantina. E olha que a cantina da prisão é cara: uma Coca-Cola custa R$ 10. Quando um homem é preso, a família leva esses materiais ou dinheiro para ele. Mas isso não acontece quando uma mulher é presa. Aí falta tudo para elas, até produtos básicos, como absorventes. Quando eu assumi o Conselho Penitenciário e passei a inspecionar prisões, vi que as unidades ficavam cheias em dia de visita. As mulheres começavam a fazer fila de madrugada. E todas as mulheres da vida do preso – mulher, mãe, avó, filha, até amante. Mas quando a mulher é presa, a família se desfaz. É um abandono enorme.
Os presídios femininos são cemitérios de mulheres vivas. As visitas às mulheres presas são raríssimas. Visitas íntimas, então, quase não existem para mulheres. A maioria das cadeias femininas nem tem espaço para isso. Na maior parte das vezes, o namorado ou marido abandona a mulher quando ela é presa. Às vezes isso ocorre porque ele tem medo de também ser encarcerado. Outras vezes, o companheiro também está preso, outras é abandono mesmo e ponto. Por conta de todas essas circunstâncias, as visitas às mulheres presas acabam sendo muito raras, até porque as outras mulheres da família passam cuidar dos filhos da detenta.
ConJur — Manter mães presas ajuda a jogar seus filhos para a criminalidade?
Maíra Fernandes — Pode acontecer sim, pois os filhos ficam desassistidos. É um círculo vicioso do qual a gente não consegue sair. É muito triste.
ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Maíra Fernandes — Sem dúvida que é uma anomalia, mas é graças a essa anomalia que nós estamos com o sistema completamente superlotado. Se não houvesse essa anomalia, se todos os juízes realmente considerassem a necessidade de comprovação da conduta, de provas concretas e tudo o mais, provavelmente não prenderiam como prendem, ou não manteriam presos como mantêm. A enorme maioria dos casos de tráfico acaba com condenação, mas em alguns deles pode ter absolvição, só que aí o réu já ficou um ano, dois anos preso, ou mais. Volto a dizer que espero que as audiências de custódia ajudem a reverter esse cenário das prisões provisórias, mas é preciso mudar a forma com a qual os juízes julgam processos sobre drogas. Se isso não for feito, de nada adiantará ter audiência de custódia.
ConJur — Há justificativa para que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo?
Maíra Fernandes — É um absurdo. É um nonsense. Na verdade, é outro fator de aumento do encarceramento nos casos de tráfico, seja por conta da manutenção do condenado na prisão, seja pelas dificuldades de concessão de benefícios, porque a natureza hedionda aumenta a fração de pena necessária para se conseguir os benefícios. Então, isso dificulta consideravelmente a progressão de regime, o livramento condicional. Além disso, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) veda graça, indulto e anistia ao tráfico de entorpecentes, previsão que não tem respaldo na Constituição Federal, pois esta só fala em graça e anistia, não veda o indulto ao tráfico. Os decretos presidenciais também reforçam, todos os anos, essa interpretação de que não cabe indulto em caso de tráfico. O decreto presidencial de 2016 foi pior ainda, recrudesceu consideravelmente os benefícios. Um atraso gigantesco. Ele acabou com a comutação da pena, que existe há mais de 17 anos, que dá um sopro de esperança para os presos. A norma também restringiu diversas hipóteses de indulto. Tudo o que havíamos avançado em relação aos indultos para mulheres retrocedeu. Esse decreto presidencial mostra bem a política do governo de recrudescimento da legislação penal. E eles vão piorar ainda mais o sistema prisional. O resultado disso são essas rebeliões. É muito claro que o governo só tem propostas de recrudescimento, de endurecimento da guerra às drogas. Basta ver a foto do agora ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, cortando pés de maconha. Outro exemplo é a medida demagógica de usar as Forças Armadas para fazer revistas em presídios. Isso é ideia de quem realmente não conhece o sistema penitenciário.
ConJur — Qual é o papel do Judiciário na crise do sistema carcerário?
Maíra Fernandes — Quando o Executivo vem com a desculpa de que "quem prende é o Judiciário", está coberto de razão, embora ele também tenha responsabilidade nisso – vide os decretos presidenciais. Existe uma parcela enorme de responsabilidade do Poder Judiciário nesse superencarceramento, que deve ser dividida em todas as instâncias.
A culpa é da primeira instância, do juiz que prende provisoriamente quando não deveria, do juiz que deixa de aplicar uma pena alternativa e condena à prisão. É da vara de execuções penais, do juiz que, que diante dessa sentença de pena privativa de liberdade, deixa de aplicar os benefícios no tempo previsto da lei, mantendo as pessoas presas por mais tempo do que deveriam ficar. É também da segunda instância, que mantém indevidamente a sentença da primeira. E é dos tribunais superiores, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal — a decisão que permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância é um contrassenso para um Supremo que já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário. Então o Judiciário tem que ser chamado para reavaliar sua responsabilidade por essas prisões. Da mesma forma, o Legislativo tem que ser chamado à responsabilidade quando faz propostas como a de reforma do Código Penal, que são só propostas também encarceradoras. Mas também o Executivo, em suas instâncias, tem responsabilidade sobre o caos e a má gestão do sistema penitenciário.
ConJur — Deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem tabela de quantidades, viola o direito de defesa e dá margem a arbitrariedades?
Maíra Fernandes — Isso dá margem a arbitrariedades, sem dúvida alguma, porque quem diz o que é uso e o que é tráfico é o policial no momento da prisão. Se ele considera que a quantidade que a pessoa portava não é compatível com o uso, ele vai prender por tráfico. Por exemplo, digamos que um rapaz vá pegar uma quantidade de maconha porque vai dar uma festinha na sua casa. Daí ele pega um pouquinho a mais do que ele costuma pegar, porque ele quer distribuir para os amigos. Se fala isso para o policial, invariavelmente vai cair no tráfico, porque nos termos vagos da lei, e na interpretação restritiva dela, “distribuir” é tráfico. Além da falta de precisão da quantidade, ainda tem a vagueza do tipo penal do tráfico, que tem 18 condutas — uma elasticidade gigantesca. Mas eu não tenho certeza se a especificação das quantidades iria resolver o problema. Que quantidades vão ser essas? Quem irá especificá-las? Naquele caso que eu usei de exemplo, o rapaz continuaria sendo enquadrado como traficante, mesmo sem sê-lo. A certeza que eu tenho é que a ausência de uma especificação da quantidade, a vagueza, e a amplitude do tipo penal de tráfico fazem com que muitos usuários sejam presos como se traficantes fossem.
ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Maíra Fernandes — Não é legítimo. Essa é a discussão que está em pauta no Supremo, no julgamento que está suspenso desde setembro de 2015 após o ministro Teori Zavascki pedir vista. O porte de drogas é uma questão absolutamente pessoal. E mais: quando se descriminaliza o uso, passa a ser possível tratar os casos de uso patológico da droga como questão de saúde pública. As pessoas, normalmente, usam casos bem graves como exemplo contrário à autorização para o uso de drogas: "Fulano acabou com a vida, está em condições péssimas por causa de uso de crack". Só que, na verdade, essa pessoa não está sendo ajudada pela criminalização do uso de jeito nenhum, porque o caso dela não está sendo tratado como uma questão de saúde, e sim como questão criminal. A criminalização do uso de drogas não ajuda essas pessoas que fazem uso não recreativo, mas patológico, um uso que afeta realmente a saúde delas. Mas elas não podem bater em um posto de saúde e pedir ajuda livremente porque o problema delas é tratado como caso de polícia.
ConJur — Então é uma hipocrisia afirmar que a saúde pública é o bem jurídico protegido pelos crimes relacionados a drogas?
Maíra Fernandes — É um falso pretexto, porque a criminalização impede que esse tema seja tratado como tema de saúde pública. Um exemplo muito claro de como essa questão é tratada como um caso de polícia, e não de saúde, está nos choques de ordem que as guardas municipais promoveram nos últimos tempos. No Rio, passaram a prender viciados em crack que estavam no auge do consumo da droga. Essas pessoas eram presas nesse auge e tinham a síndrome de abstinência no presídio. Vários agentes penitenciários e o próprio subsecretário da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária me diziam que não tinham estrutura para receber aquelas pessoas, pois elas ficavam gritando, tendo alucinações típicas da síndrome. Isso ocorre porque essa pessoa não tinha que estar na prisão em nenhuma hipótese, ela tinha que ser levada para um atendimento social, uma política de redução de danos, algo que lhe desse perspectivas de emprego, recuperação da autoestima, ou mesmo, em alguns casos, para o hospital. Jamais para a prisão.
ConJur — Aqueles contrários à legalização das drogas afirmam que isso explodiria o número de usuários, causando uma espécie de epidemia social. O que pensa desse argumento?
Maíra Fernandes — A melhor frase sobre isso foi dita pelo juiz Luís Carlos Valois em entrevista à ConJur: “Eu não sei quem são essas pessoas que estão doidas para fumar maconha, mas estão esperando ela ser legalizada para fazer isso. Eu não conheço ninguém assim. Não sei quem são os ingênuos”. Eu adorei essa frase, é a absoluta verdade. Quem quer usar, usa, sendo crime ou não. A regulamentação não vai aumentar exponencialmente o uso de drogas. Na verdade, talvez possa até diminuir, porque a criminalização gera uma curiosidade maior pelo proibido e porque os realmente viciados vão poder receber tratamento na rede de saúde pública, como ocorre em diversos países onde o uso das drogas é legalizado.
ConJur — Outro argumento usado pelos opositores da legalização é o de que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que a senhora pensa desse argumento?
Maíra Fernandes — Não consigo imaginar como a regulamentação das drogas possa gerar um cenário pior do que o atual. Na verdade, o tráfico de drogas gera crimes muito violentos. Esses crimes não vão aparecer com o fim do tráfico, porque eles já fazem parte do mundo do tráfico de drogas, que, por ser atividade ilegal, exige o uso de armas e violência. Os traficantes se armam e praticam diversos crimes para manter esse sistema, que é totalmente criminoso. Isso é característico de qualquer máfia, de qualquer facção criminosa. Eles precisam proteger o negócio deles, que é criminoso, e por isso acabam recorrendo a essas atividades ilícitas. O tráfico de drogas é extremamente danoso à sociedade, é extremamente violento. E toda essa guerra às drogas só gerou mortes e violência ao longo dos anos. Inclusive de policiais e crianças, como lemos todos os dias nos jornais.
ConJur — Estima-se que o PCC fature R$ 240 milhões por ano. Desse total, avalia-se que 80% venha da venda de drogas. A guerra às drogas é responsável pelo crescimento de facções criminosas como o PCC?
Maíra Fernandes — Sem dúvida alguma. E parte desse rendimento deles também deve ser utilizado em armamentos e corrupção, que só aumentam a violência. O tráfico gera todo um ciclo de violência. A guerra às drogas fez surgir essas facções. E o Estado fica em uma situação muito difícil sobre como lidar com essas facções. Primeiro que ele não conhece quase nada sobre elas, não tem quase nenhum dado sobre as facções. É absoluto o desconhecimento. Em relação ao sistema prisional, ou bem o Estado reconhece as facções e acaba dando muito poder a elas, ou ele ignora a existência delas. Mas se ele ignorar, “lavar as mãos”, acaba misturando os presos e permitindo que eles se matem — algo que o Estado não pode admitir, pois a vida e a integridade física dos detentos são de sua responsabilidade. É muito difícil lidar com as facções criminosas no sistema penitenciário. O mais prudente é separá-las e manter presídios neutros, nos quais ficam presos os que não são vinculados a nenhuma facção criminosa.
Quando eu assumi o Conselho Penitenciário, vi que quem era preso tinha que preencher uma ficha dizendo a que facção era vinculado. Juro que peguei esse papel em mãos. Aí um preso me disse "ô, doutora, eu fui preso por roubo, eu não faço parte de facção nenhuma, não. Eu roubei porque estava precisando de dinheiro. Mas daí o agente perguntou onde eu morava, e como eu disse que morava na favela tal, me jogou na ala do Comando Vermelho, que dominava essa área”. Pronto: ele acaba tendo que se vincular à facção para sobreviver. Agora, não precisa fazer nenhuma alteração legal ou adotar uma interpretação muito garantista para evitar o crescimento das facções no sistema penitenciário, basta cumprir a lei e deixar de encarcerar gente que não precisa ir para a cadeia, como réus primários. Afinal, quando eles entram no sistema, acabam sendo obrigados a entrar em uma facção. Daí eles contraem dívidas, que terão que pagar do lado de fora, e têm que começar a viver conforme as regras daquela facção. A prisão realmente é uma universidade do crime e uma forma de aumentar o poder dessas facções.
ConJur — Que outras medidas podem ser tomadas para melhorar o sistema carcerário, a curto e a longo prazo?
Maíra Fernandes — Primeiro tem que diminuir essa superlotação carcerária. Isso é para ontem. É preciso reduzir as prisões temporárias e preventivas — é injustificável que 40% da população carcerária seja formada de presos provisórios. Também é preciso discutir a Lei de Drogas. Diminuindo a superlotação carcerária, diminui-se uma série de outros problemas, porque muitos deles decorrem da superlotação, como os problemas de segurança nas unidades prisionais. Além disso, é necessário fortalecer as defensorias públicas e as varas de execuções penais. Eu fiz um levantamento no Conselho Penitenciário do Estado, em 2014, que apontou que os únicos estados que só tinham uma vara de execução penal eram Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima. Só que esses outros estados têm muito menos presos do que o Rio, que tem 50,5 mil detentos. É injustificável ter apenas uma vara de execuções penais. É óbvio que tem gente que fica presa por mais tempo do que deveria, que tem gente que já poderia ter obtido livramento condicional, progressão de regime. São Paulo, por exemplo, tem 16 varas, e o Rio de Janeiro, uma. Outra necessidade é aplicar mais penas alternativas, porque elas são muito pouco usadas. Entendo o argumento de que é preciso que os tribunais tenham um mínimo de estrutura para aplicar essas penas alternativas. Tanto que defendo a criação de uma vara específica para a execução de penas alternativas no Rio. Mas elas já poderiam estar sendo aplicadas há muito tempo. E mais: é preciso incentivar e aumentar as audiências de custódia, com juízes vocacionados para isso.
ConJur — O que a senhora pensa de presídios administrados por entidades privadas? São uma saída para diluir a superlotação das prisões ou podem aumentá-la, devido à lógica de que “quanto mais presos, maior o lucro”?
Maíra Fernandes — Quando integrei a Coordenação Nacional de Acompanhamento do Sistema Carcerário do Conselho Federal da OAB, fiz inspeções em várias unidades Brasil afora. Quando fui inspecionar a prisão de Ribeirão das Neves (MG), fui com uma pontinha de medo, pensando: "Bom, ideologicamente eu sou contra as PPPs, mas será que eu vou chegar lá e vou ver que tudo funciona 100%? E aí eu vou mudar de ideia?". Uma vez lá, eu vi pontos positivos como limpeza e higiene, mas também vi uma unidade muito semelhante a uma pública, com outros problemas que esta não tem. Por exemplo, os presos reclamavam da ausência de assistência da Defensoria Pública e de outras assistências dentro do presídio, como a médica e a dentária. Mas a ideia da parceria público-privada era para ter esse problema. Percebi que isso se deve à lógica do lucro. No contrato firmado com o Poder Público, está escrito que a prisão tem que ter médico, mas não fica especificado quantos profissionais ou quantas vezes por semana deve ocorrer esse atendimento. Então, economiza-se colocando médico uma vez por semana ou colocando menos médicos do que precisaria ter. E os problemas permanecem.
Um segundo grande problema era que quase todos os presos trabalhavam, só que muitos deles falavam que estavam há seis meses ou mais sem receber. Tinha virado uma exploração de mão de obra, trabalho escravo, o que ensejou ação do próprio Ministério Público. Mas o cerne desse debate das prisões privadas é que elas têm a mesma lógica de um hotel: cela vazia, prejuízo irrecuperável. Se um hotel não tiver hóspedes, não terá lucro. Se a prisão se não tiver presos, igualmente não terá lucro, segundo a lógica da maior parte desses contratos. Isso vai necessariamente aumentar o encarceramento em larga escala, como vimos nos EUA. Aí aumentam os lobbies com o Legislativo, porque ele tem que fazer leis para endurecer penas, pois estarão em jogo as grandes empresas, o grande capital. Também vai ter lobby no Executivo, nas delegacias de polícia, para conferir as metas de prisões. É claro que isso vai aumentar o encarceramento da população de sempre, não é? Pobres, negros... Eu tenho muito medo dessas propostas, que não deram certo nos Estados Unidos e não darão aqui. Li outro dia no jornal O Globo uma matéria que falava sobre a prisão de Ribeirão das Neves, dizendo que em um certo número de anos de parceria público-privada, não houve uma única rebelião. Só que o jornal esqueceu de dizer que aquela unidade não aceita nenhum preso além da capacidade, e que ela só aceita um determinado perfil de condenados, não aceita facções criminosas, não aceita crimes que não sejam os mais leves, com certo percentual de pena já cumprido. É claro que é isso que faz com que não tenha rebelião.
ConJur — Um levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. A pena de prisão funciona?
Maíra Fernandes — Não funciona. E com esse formato que nós temos de prisões, sempre vai aumentar a reincidência. Essas prisões são universidades do crime, como eu já disse. Não acredito que a prisão seja para ressocializar, até porque esse termo é muito infeliz, pois a maior parte dos presos entra na prisão sem nunca ter sido socializado antes. A maioria dos que são presos não tem sequer identidade, não sabe nem assinar seu nome, têm escolaridade baixíssima, não têm os mínimos documentos, nunca exerceu a sua cidadania. Não vai ser entrando na prisão que eles vão ser ressocializados. Prisão, de modo geral, é pena, punição. O que não significa que não se possa ter iniciativas bacanas de trabalho e estudo para ajudar as pessoas a saírem dali, virarem essa página de suas vidas e recomeçarem. E os dados de reincidência são muito difíceis de serem diagnosticados — fala-se em índice de 25%, depois fala-se em 70%. Ninguém sabe direito quais são os dados de reincidência.
Na verdade, faltam dados sobre o sistema penitenciário como um todo. Hoje nós trabalhamos com dados oficiais que não são 100% confiáveis sobre número de presos, tipos penais. Outro fator que gera reincidência é o fato de não termos políticas para os egressos do sistema prisional. Pelo contrário: a pena deles continua do lado de fora, e continua de uma forma muito cruel, porque eles não conseguem empregos. Há uma série de burocracias que dificultam o acesso deles a empregos. Por exemplo, quem progredir para o regime semiaberto ou aberto, ou obtiver livramento condicional, não consegue tirar título de eleitor, porque a nossa lei atual diz que só pode se inscrever na Justiça Eleitoral quem tiver terminado de cumprir sua pena. E a maioria dos presos sai da cadeia dessa forma, ninguém sai com a pena totalmente cumprida, até porque consegue benefícios que a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) prevê. E olha que a maior parte das decisões que concedem livramento condicional exige que o preso tenha um emprego. Mas sem título de eleitor ninguém consegue emprego. Também é difícil emitir CPF. Sem isso, eles não conseguem abrir conta em banco, requisito exigido por muitos empregadores. Tem um sujeito que está em livramento condicional e estava trabalhando direitinho como porteiro em um edifício no Centro do Rio. Outro dia ele me ligou e falou: "Doutora, eu fui mandado embora, porque o meu edifício exigiu que todos os funcionários fossem transformados em pessoas jurídicas, para não pagar verbas trabalhistas. Mas eu não tenho título de eleitor, então não consigo abrir um registro de microempresário individual". Ou seja, nem quando o sujeito arranja um emprego ele consegue mantê-lo, porque os entraves são muito grandes. A sociedade exige que esse sujeito saia da prisão e não cometa mais crime, mas não dá nenhum suporte para que ele não o faça.
ConJur — Há modelos de prisão que funcionam no Brasil?
Maíra Fernandes — Eu não acredito em prisão, mas não posso deixar de destacar o que conheci de positivo. Há ideias diferentes de prisão que merecem uma atenção um pouco maior do Poder Público. Por exemplo, as Associações de Proteção e Assistência a Condenados (Apacs). Eu conheci uma Apac em Minas Gerais e fiquei muito impressionada. Primeiro porque foi a primeira vez que um preso olhou nos meus olhos. Isso nunca tinha acontecido — e eu já inspecionava presídios há anos quando fui a essa Apac. Ele apertou a minha mão, olhou nos meus olhos e falou: "Boa tarde, doutora". Eu chorei. Eu nunca tinha sentido uma emoção tão grande, porque ali eu realmente vi a possibilidade de fazer algo diferente para aquelas pessoas. Todos os presos trabalhavam e estudavam. Eles tinham uma auto-organização de disciplina, de responsabilidade. Faziam trabalhos como consertar as mesas e carteiras das escolas locais, remiam pena e eram remunerados por isso. Outra parte dos presos trabalhava em uma padaria, e os pães feitos lá abasteciam as escolas, e também eram vendidos para os restaurantes locais, o que gerava alguma renda para pequenas despesas na unidade. Tinha horário para tudo: se alguém não comparecia no horário certo, ou se não arrumava a cela como deveria, recebia pequenas sanções internas, convencionadas e aplicadas entre eles. E a chave da unidade ficava nas mãos de um preso. Os muros eram baixos, até eu conseguiria pulá-los, mas não tinha nenhum relato de fuga. É outro modelo, um modelo baseado no amor próprio, no respeito próprio, coisas que se perdem no sistema. Em todas as outras unidades que eu inspecionei, quando eu entrava no local, era mão para trás, cabeça para baixo, sabe? Uma absoluta submissão, o sujeito vira meio bicho. Mas também, ele é tratado pelo número, vira apenas mais um, perde a sua história, perde quem ele é. Na Apac, não. As pessoas são quem elas são, conscientes dos erros que cometeram, dos crimes que cometeram, e do quanto precisam trabalhar isso. Precisamos incentivar o uso das Apacs. Minha única ressalva é a de que a unidade que conheci tinha um forte apelo religioso. Mas é possível haver Apacs com as mesmas ideias, sem se valer unicamente da religião.
Também precisamos estimular o uso de colônias agrícolas e industriais. O regime semiaberto, tal qual previsto na Lei de Execução Penal (
Lei 7.210/1984), é um regime de colônia agrícola, mas quase não há colônia agrícola no país. No Rio de Janeiro há a colônia agrícola de Magé, que foi a única estrutura realmente positiva que eu conheci no Rio de Janeiro. É um espaço enorme, lindo. E tem um projeto em que o sujeito planta a semente e cuida de todos os processos do plantio. Essas plantas — há mudas de pau-brasil, de ipê — depois são usadas em projetos de reflorestamento. Então o preso está trabalhando, está remindo pena, está ganhando salário, está fazendo um projeto de reflorestamento, que depois vai ter uma consequência ambiental maravilhosa. Tem também a horta em que eles plantam o que consomem: alface, rúcula, maracujá, um monte de frutas. Os que não trabalham nessa áreas, porque o número de vagas é limitado, recebem um treinamento específico, e trabalham no restaurante, na marcenaria, no setor de informática, na biblioteca. Não há um único preso que não trabalhe. Os quartos, as celas, são meio abertos. Eles estão presos, mas são completamente soltos na unidade. Não é difícil fugir dali, mas eles não fogem. Só houve uma fuga, mas o sujeito acabou voltando. O índice de reincidência de lá é baixíssimo. Então, esses são modelos completamente diferentes, nos quais as pessoas são tratadas com um mínimo de respeito e dignidade.
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2017.