É um procedimento judicial corriqueiro nos EUA o juiz ordenar que um condenado por crime sexual se submeta à terapia, feita em uma instituição credenciada pelo estado, como condição para a liberdade condicional. Nessas instituições, os psicoterapeutas exigem que a pessoa revele todo seu histórico de crimes sexuais, em vez de discutir apenas o crime pelo qual foi condenado. Se não o fizer, a liberdade condicional é suspensa e ele volta a ser preso.
As instituições, com o apoio dos tribunais, argumentam que faz parte do processo de cura a descrição detalhada, pelo criminoso, e a discussão de todos os crimes sexuais, grandes e pequenos, que cometeu na vida, seguida de um sincero pedido de desculpas às vítimas. No entendimento dessas instituições, a terapia imposta a predadores sexuais não visa aliviar a sua dor, mas aumentá-la, também como parte do processo de cura.
O Tribunal Superior de Utah, nos EUA, declarou —
conforme decisãopublicada no sábado (26/11) — que essa prática viola o direito constitucional do réu de não se incriminar. E que toda a prática é uma coerção inaceitável, uma vez que ela obriga o réu a confessar crimes que não foram julgados, se não quiser voltar para a cadeia. Se confessar, seus crimes ainda não julgados poderão ser relatados pela instituição à Justiça (ou ao FBI). E o réu correrá o risco de ir para a cadeia do mesmo jeito.
De acordo com a Quinta Emenda da Constituição dos EUA, nenhuma pessoa deve ser compelida, em qualquer caso criminal, a testemunhar contra si mesma — um princípio praticamente universal, que o Tribunal Superior de Utah esclareceu no processo que examinou.
“As proteções oferecidas pela Quinta Emenda se estendem além do contexto de um julgamento criminal. Elas garantem ao indivíduo o direito de não responder perguntas das autoridades que o coloquem, em um procedimento civil, criminal, formal ou informal, sob risco de autoincriminação em procedimentos criminais futuros.”
“E esse direito não é perdido por condenação ou encarceramento. Efetivamente, a Suprema Corte dos EUA decidiu especificamente que um réu não perde a proteção da Quinta Emenda por causa de uma condenação por um crime, apesar de ele estar preso ou em liberdade condicional no momento em que ele possa fazer declarações incriminatórias.”
O Tribunal Superior examinou o caso de Brendt Bennet que, em agosto de 2000, foi condenado por estupro de uma criança, após confessar o crime. Um tribunal federal o sentenciou a um período indeterminado de prisão — de seis anos à prisão perpétua. Porém, em 2007, após Bennet concluir, na prisão, um programa de tratamento para criminosos sexuais, ele foi colocado em liberdade condicional.
Uma condição da liberdade condicional foi a de que Bennet concluísse o programa de terapia sexual no Bonneville Community Correctional Center (BCCC), seguindo as regras da instituição. Se falhasse de alguma forma, o Departamento de Correções seria notificado pela instituição e a comissão encarregada de examinar os processos de liberdade condicional iria revogá-la e um mandado de prisão seria emitido. Foi o que aconteceu.
Confissão de culpa por escrito
Em sua decisão, o Tribunal Superior do estado disse que a instituição, além dos testes usuais, obriga o réu a fazer um relatório do crime (offense report), que inclui o preenchimento de formulário sobre a vítima (victim form) e uma narrativa sobre a vítima (victim narrative). O relatório seria essencial para o tratamento e para o réu entender a natureza de seus crimes.
A instituição exige, segundo o tribunal, que o réu preencha um formulário para cada vítima de seus crimes sexuais, quando ela tinha menos de 18 anos. No relatório, ele tem de:
1) declarar nome, idade, sexo da vítima, bem como a idade dela na época do primeiro contato. Deve indicar o tipo e a quantidade de contato sexual com cada vítima. Deve realçar o mês e o ano do primeiro e último contato com a vítima, para estabelecer a duração. Se não souber o nome da vítima, deve dar indicações como “colega de escola de minha irmã ou filha de oito anos”;
2) descrever o tipo de relacionamento que tinha com a vítima e como se conheceram e começaram a se relacionar (parente, namorada, desconhecida etc.);
3) fornecer sua idade e a idade da vítima quanto a “vitimização” começou;
4) contar toda a história: como se encontrou com a vítima, como fez para abordá-la sozinha, como abusou dela; e comentar se seu comportamento ou táticas mudaram com o tempo;
5) fornecer o número de vezes em que a vitimização ocorreu. As instruções dão um exemplo: "Eu abusei de Susie duas vezes por semana, durante seis meses";
6) informar onde o abuso sexual ocorreu, tal como o quarto da vítima ou um prédio abandonado;
7) explicar como conseguiu fazer a vítima cooperar, explicando o que disse à vítima para ela cooperar ou para mostrar a própria superioridade a fim de influenciá-la.
8) descrever o que fez para impedir a vítima de denunciar os artifícios, ameaças ou intimidações empregados para dominá-la;
9) descrever como o crime foi descoberto e porque outros crimes não foram descobertos, explicando, por exemplo, que “ela nunca falou para ninguém sobre o abuso e eu nunca fui pego”.
Em outras palavras, tal relatório equivale a uma ou mais confissões de culpa por escrito de crimes dos quais o réu já foi acusado ou nunca foi acusado. Bennet tentou aplicar o golpe do João-sem-braço, revelando por escrito e oralmente (em terapias de grupo) crimes que já eram do conhecimento do tribunal.
Mas não colou. A instituição decidiu aplicar testes detectores de mentira para descobrir se Bennet estava omitindo crimes que cometeu e não quis relevar. Segundo o tribunal, foram feitas perguntas tais como:
1) desde que fez 18 anos, você tocou sexualmente os genitais de quaisquer menores, além da vítima em seu processo de condenação?
2) você está intencionalmente omitindo qualquer abuso sexual que perpetrou, além daquela pela qual foi acusado?
3) há alguma vítima de seus abusos sexuais que você não está revelando a seu terapeuta?
4) além do que já discutimos, você forçou alguém a ter contato físico-sexual, antes da data da condenação?
5) você omitiu intencionalmente o nome de qualquer vítima no relatório de seu histórico sexual?
Bennet não passou no teste. Mas a essa altura já havia levado seu caso a um escritório de advocacia e foi orientado a ler uma declaração, escrita pelos advogados, quando fosse pressionado pela equipe da instituição. A declaração dizia: “Se Mr. Bennet for removido do tratamento, uma ação judicial será movida contra a instituição, com ampla possibilidade de obter uma decisão favorável”.
Foi o que aconteceu. A instituição se comunicou com o Departamento de Correções e em poucos minutos a liberdade condicional foi revogada e um mandado de prisão foi expedido. Os advogados moveram uma ação, perderam nos tribunais inferiores, mas ganharam no Tribunal Superior do estado.
Em sua decisão, os ministros do tribunal superior disseram que não pretendiam terminar o programa de terapia para predadores sexuais, mas que eles estão fazendo as coisas de maneira errada. Além de violar o direito constitucional do réu de não se incriminar, a equipe de terapeutas coage os réus a fazer confissões de culpa, o que é ilegal.
O Tribunal Superior não ordenou a reinstituição da liberdade condicional de Bennet, mas remandou o processo para o juízo de primeiro grau para fazê-lo. E também ordenou ao juiz de primeiro grau que garantisse a nomeação de um advogado para a defesa de Bennet, o que lhe foi negado no julgamento inicial.
Toda essa controvérsia gerou discussões também sobre o papel dos psicoterapeutas no tratamento de criminosos sexuais ordenado pelo juiz. Segundo estudos do
IPT e do
Journal of Criminal Law and Criminology, os terapeutas, nesses casos, atuam como “agentes duplos”: parece que estão trabalhando para um cliente, mas, na verdade, estão atuando para cumprir os objetivos e exigências de um tribunal ou de um órgão estatal.
Outro problema é que a confidencialidade terapeuta-cliente, que é respeitada em outras áreas, pode — e deve — ser quebrada em casos criminais. A legislação autoriza essa quebra da confidencialidade em várias circunstâncias, para proteger a comunidade contra predadores sexuais e por diversas outras razões. Em outras palavras, tudo que o paciente disser na terapia poderá ser usado contra ele no sistema criminal.
Revista Consultor Jurídico, 29 de novembro de 2016.