Se alguém fizer a célebre pergunta “a quem compete o ônus da prova?” no estado de Washington, nos Estados Unidos, a resposta mais provável será: "depende da época". Desde a última quinta-feira (30/10), o ônus de provar que é inocente não cabe mais ao acusado de estupro, quando ele alega que o sexo foi consensual. Cabe à autora da ação — isto é, à vítima — provar que o caso é mesmo de estupro e não de sexo consensual, porque ocorreu contra sua vontade.
Essa foi a decisão do Tribunal Superior de Washington, que derrubou uma lei estadual de 1975 e decisão anterior da própria corte. Até então, valia a regra de que o réu, quando alega que a relação sexual foi consentida, deve provar o que está alegando. Seria uma situação semelhante ao do réu, em julgamento criminal, que declara que matou em legítima defesa — e apresenta provas.
A lei de 1975 foi aprovada pela Assembleia Legislativa do estado para corrigir o que se supunha à época ser um erro jurídico. Até então, estupro era definido no estado como o sexo “cometido contra a vontade da vítima, sem seu consentimento”. Assim, o ônus da prova competia à vítima (e, consequentemente, à acusação). A ela caberia provar que não houve consentimento — mesma lógica que o tribunal superior voltou a adotar agora.
A consequência era que os julgamentos acabavam se concentrando mais na vítima. Assim, se explorava mais, no julgamento, o comportamento e as ações da vítima do que do acusado de estupro. Isso desestimulava as vítimas a denunciar os estupradores e levá-los à Justiça, diz o jornal The Seattle Times, a agência Reuters e outras publicações.
A lei de 1975 mudou isso. Ainda exigia que a acusação provasse “forte coerção” — isto é, uma força que superasse a resistência da vítima ou ameaças que levassem a vítima a temer por sua vida ou por ferimentos, mas removeu a referência ao consentimento.
Com isso, o foco se voltava para as ações do acusado. E, em caso de alegação de sexo consentido, o acusado teria de apresentar uma “preponderância de provas” — isto é, provas mais fortes do que as apresentadas pela vítima — de que o sexo foi consentido.
Com a nova decisão do Tribunal Superior, tudo voltou a ser como antes, em Washington. “Quando a defesa necessariamente nega um elemento do crime do qual o réu é acusado, a acusação não pode inverter o ônus da prova da defesa para o réu”, escreveu a ministra Debra Stephens em nome da maioria.
“Requerer que um réu faça mais do que levantar uma dúvida razoável é inconsistente com os princípios do devido processo”, decidiu a maioria, em uma decisão considerada controvertida. De acordo com os jornais, a convicção generalizada é a de que será mais difícil, agora, levar à Justiça e condenar estupradores — até mesmo os mais perigosos. Caberá à vítima provar que a alegação do acusado é falsa.
No voto dissidente da minoria, a ministra Susan Owes escreveu: “Colocar o ônus da prova na vítima — ou no estado, através da Promotoria — para refutar a alegação de consentimento,só irá colocar, erradamente, as ações, o comportamento e a reputação da vítima em julgamento, em vez de no réu”.
“Em 1975, o Legislativo do estado deu um passo importante na busca de justiça para vítimas de estupro, quando modificou a lei para colocar o foco na conduta do estuprador e não na vítima. Infelizmente, a decisão de hoje da maioria reverte esse progresso”, ela afirmou.
Apesar de o grande número de vítimas de estupro serem mulheres, os votos do Tribunal Superior não se dividiram entre ministros e ministras. Dos nove votos, seis foram a favor da tese de que o ônus da prova sempre compete ao autor da ação — votos de um ministro e cinco ministras; e três defenderam a tese de que o ônus da prova cabe a quem faz uma alegação — votos de uma ministra e dois ministros, como se pode ver na reportagem da Kiro TV.
Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2014.
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