Justiça e MP enviaram à Corregedoria da Polícia 30 pedidos de processos disciplinares contra chefes de distritos que libertaram delinquentes de baixo poder ofensivo.
Delegados de Curitiba que aplicaram o chamado princípio da insignificância ou da bagatela – por meio do qual soltaram pessoas que haviam sido presas em flagrante por crimes de menor potencial ofensivo, como pequenos furtos – vêm enfrentando a oposição de juízes e promotores. Neste ano, a Corregedoria da Polícia Civil recebeu 30 ofícios do Ministério Público (MP-PR) e do Poder Judiciário pedindo a abertura de processos disciplinares contra delegados que puseram “pequenos ladrões” em liberdade antes de enviar os casos à Justiça.
Flagrante
Decisão cabe ao Poder Judiciário, diz magistrado
Definir o que é e o que não é insignificante pode ser muito subjetivo. Esse é um dos motivos pelos quais o juiz Rogério Etzel, de Curitiba, acredita que a aplicação do princípio da bagatela deva ficar restrito ao Judiciário, e o delegado de polícia não pode fazer valer o dispositivo. Apesar disso, Etzel não foi um dos juízes que pediu a investigação dos delegados. “Deixar a decisão para o delegado é muito prematuro. É preciso avaliar uma série de elementos, como, por exemplo, a ofensividade do crime e se o réu é primário. Portanto, esta é uma decisão que cabe apenas ao juiz” avalia. Por se tratar de um flagrante, o Judiciário deve ser comunicado em 24 horas. “Aí, o juiz vai ver se tem condições de relaxar a prisão, convertê-la em preventiva, em liberdade provisória ou arbitrar fiança”, diz. O Ministério Público recebeu o ofício da Adepol, mas o corregedor-geral da instituição, Arion Rolim Pereira, não foi localizado para comentar o caso.
Delegacia tem vários casos de “crime menor”
No setor de boletim de ocorrência de uma das delegacias, uma jovem negra chora algemada a uma barra de ferro presa à parede. Ela foi flagrada tentando furtar uma bermuda numa loja. Segundo o delegado (que não quer se identificar), é raro um dia em que um “ladrãozinho de galinha” não chegue à unidade. “Eles são um problema social, não de polícia. Não posso ficar amontoando essas pessoas no xadrez. Mas com essa pressão, não tenho outra alternativa.”
Só nas últimas semanas, o distrito acumula casos como o da senhora presa por pegar um par de chinelos numa loja, do rapaz que furtou três caixinhas de Bis numa farmácia, da mulher que surrupiou um xampu, da moça que fugiu de um mercado com um hambúrguer. A lei determina que prisões em flagrante sejam analisadas pela Justiça em 24 horas, mas presos disseram estar na cela há dias.
Sem sanção
No dia 10 de outubro, um homem que havia furtado uma chapinha de cabelo, avaliada em R$ 29, foi posto em liberdade um dia depois de ter sido preso em flagrante. A magistrada que proferiu a decisão, a juíza Luciana Abrahão de Queiroz Telles, da 5ª Vara Criminal de Curitiba, considerou que “os fatos ofensivos de restrita relevância ou de ínfima lesividade não devem receber sanção penal”. O objeto que havia sido furtado foi devolvido à loja. “Algumas varas têm manifestado resistência quanto à aplicação do princípio da insignificância por parte dos delegados, enquanto outros juízes têm usado o dispositivo. Essa indefinição causa uma insegurança no delegado, que não sabe se vai ser perseguido ou não”, avalia o diretor da Adepol, João Ricardo Kepes de Noronha.
De acordo com a Associação dos Delegados do Paraná (Adepol), a perseguição de setores do Judiciário e do MP-PR começou há cerca de quatro meses. Hoje, pelo menos seis delegados respondem a processos disciplinares na Corregedoria da Polícia por terem feito valer o princípio da insignificância. Desde que a pressão recrudesceu, os responsáveis pelos distritos têm pensado duas vezes antes de aplicar o dispositivo. Resultado: mesmo os acusados pelos furtos mais banais são mantidos presos.
No fim de outubro, a reportagem visitou a carceragem de um distrito de Curitiba. Dos 18 presos, 16 haviam sido detidos por delitos considerados leves. Entre eles, um rapaz loiro, que olhava assustado por detrás da grade. Havia furtado um salgadinho e um refrigerante em uma padaria no Boqueirão. “Eu tava com fome, senhor”, justificou. “Por mim, soltava todos. O que o Estado vai gastar para mantê-los presos e para instaurar o inquérito custa mais do que o produto que furtaram”, disse um delegado que pediu para não ser identificado.
Reação
A Adepol encaminhou ofício à Corregedoria do Ministério Público e à Corregedoria de Justiça do Paraná pedindo às instituições que estabeleçam uma diretriz, orientando seus operadores quanto a aplicação do princípio da insignificância por parte dos delegados de polícia.
“Queremos sensibilizar o MP e o Judiciário, porque os delegados têm poder discricionário para aplicar o princípio da insignificância. É preciso bom senso de todos os operadores do direito. Não adianta excesso de ação repressiva contra um coitado que furtou uma banana. Guardemos essa energia para os criminosos de maior potencial ofensivo”, diz o diretor da Adepol, João Ricardo Kepes de Noronha.
Corregedor-chefe da Polícia Civil, Valmir Soccio destaca que os delegados têm instaurado o inquérito policial como manda a lei, mesmo que soltem o acusado. Por enquanto nenhum processo disciplinar contra delegados foi avaliado pelo Conselho da Polícia Civil, mas ele acredita que a tendência é pelo arquivamento. “Estamos expedindo uma orientação para que o delegado que aplique o princípio da insignificância fundamente a decisão por escrito, para evitar essa reação pontual de juízes e promotores.”
Falta consenso sobre aplicação do princípio
O juiz Moacir Antonio Dala Costa, titular da 2.ª Vara de Execuções Penais de Curitiba, vê o princípio da insignificância como um elemento que pode contribuir para a redução da burocracia na aplicação da Justiça e para reduzir a população carcerária. Na avaliação do magistrado, os delegados não só têm prerrogativa para analisar os casos em que o dispositivo pode ser aplicado como deveriam ser incentivados a fazê-lo.
“O Estado tem de se preocupar com coisas que causam uma lesão grave ao patrimônio ou à coletividade. Como se pode ficar gastando uma energia com inquéritos policiais, com ações penais, em cima de quem furtou uma barra de chocolate ou uma peça de roupa em loja? Aí o Estado deixa de investigar homicídio, latrocínio, tráfico de drogas”, compara.
Por sua vez, o advogado Daniel Laufer, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), avalia que a aplicação do dispositivo está restrita ao MP e ao Judiciário. Ou seja, o delegado deveria manter o suspeito preso e aguardar a decisão judicial. Em contrapartida, ele entende que os responsáveis pelos distritos acabam lançando mão do princípio da insignificância como forma de eliminar entraves e corrigir distorções do sistema penitenciário (carceragens superlotadas).
“Do ponto de vista formal, o delegado deveria fazer a autuação do flagrante. Ao aplicar este instrumento [da insignificância], o delegado faz algo para o qual não tem poder legal. Mas é uma situação complicada. Em certos casos, o delegado o faz para arrumar um sistema que vem todo errado”, opina o especialista.
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