quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Caim e a Esperança

 João Baptista Herkenhoff
 
          A sentença criminal condenatória, transitada em julgado, retira do indivíduo a condição de primário. Decorridos dois anos do dia em que for extinta a pena ou terminar sua execução, o condenado pode obter a reabilitação.
          Entretanto, mesmo assim, o estigma do processo criminal é extremamente cruel.
          A primariedade não está, em algumas hipóteses, disciplinada sabiamente. A lei omitiu um tratamento diferenciado aos criminosos absolutamente ocasionais.
          Coloquemos um caso que facilite o raciocínio. Chefe de família, cidadão trabalhador e conceituado, não obstante a modéstia de sua profissão, é condenado pelo Tribunal do Júri na rubrica do homicídio privilegiado. Havia praticado o crime impelido por motivo de relevante valor moral.
          Depois de cumprir uma parte da pena, primário que era, mereceu o livramento condicional.
          Livre da prisão, queria recomeçar sua vida em outro Estado.
          Compareceu à presença do juiz e colocou um problema para cujo encaminhamento pedia conselho e ajuda:
          “O que vou fazer de minha vida? Embora eu seja um profissional competente, como poderei arranjar emprego se minha folha corrida vai registrar que eu matei meu semelhante?”
          Ao despachar o pedido, o juiz invocou Santo Tomás de Aquino que, à luz da Filosofia, estabelece uma distinção entre a verdade substancial e a verdade formal.
          A verdade formal é aquela que decorre da aparência das coisas. A verdade substancial é aquela que expressa a natureza profunda do ser das coisas.
          A partir da concepção de Santo Tomás de Aquino, o magistrado concluiu que a verdade formal apontaria o réu como criminoso, carente de primariedade, com folha corrida manchada.
          Sob o prisma da verdade substancial, o réu, que já cumprira o tempo de prisão necessário para alcançar o livramento condicional, não devia receber o carimbo de “criminoso”. O crime que cometera e pelo qual já pagara não devia ser para ele “a marca de Caim” a impossibilitar inteiramente sua volta à sociedade.
          Respaldado na lição de Tomás de Aquino, o juiz determinou que se expedisse em favor do ex-preso um atestado de bons antecedentes.
          O réu conseguiu emprego no Rio de Janeiro. Encontrando-se casualmente com o velho juiz, já agora aposentado, convidou-o para almoçar em sua casa. O magistrado aceitou o convite e testemunhou a vida digna do ex-preso junto à esposa e filhos.
Quisera que esta página seja um conselho para os jovens magistrados. Entre a Esperança e as marcas de Caim, escolham a Esperança.
 
João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado (ES), professor, escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras.
 
É livre a divulgação deste artigo, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog