Telma foi presa com o seu filho nos braços. Após permanecerem juntos em uma cela por algumas horas, ela foi levada para uma Penitenciária e o filho para um abrigo. Os dois nunca mais se encontraram.
Érica está presa há quase 1 ano por uma tentativa de roubo de um celular. Foi presa quando estava grávida, teve seu filho na prisão e vive agora a angústia de saber que dentro de 1 mês terá que se separar dele e que o destino da criança será um abrigo.
Estes dois casos retratam, de forma muito singela, uma das mais perversas facetas do encarceramento na vida das mulheres: o cruel impacto da prisão nas relações entre mães e filhos. A falta de políticas públicas que considerem a prisão sob a perspectiva de gênero acaba por gerar uma verdadeira “sobrepena” para as mulheres. Para além da privação de liberdade, essas mulheres vêem-se alijadas do convívio com seus filhos, por vezes de forma definitiva, não sendo raros os casos de destituição do poder familiar da mãe presa, que sequer participa ou é ouvida no processo.
Os sistemas prisionais foram construídos por homens e para homens. Dessa forma, desde a arquitetura até as garantias sobre trabalho e contato com a família foram pensadas pela ótica masculina. As prisões femininas são, em regra, adaptações das prisões masculinas[1] e, como consequência, não atendem às necessidades específicas das mulheres, o que torna os impactos da prisão ainda mais severos.
Não bastasse a inadequação estrutural do sistema prisional às necessidades femininas, soma-se ainda o fato de que produtos básicos à saúde da mulher (como absorventes, por exemplo) são sonegados, não havendo, ademais, número significativo de ginecologistas e obstetras no sistema prisional. O cenário, como se observa, é de sistemática violação dos direitos humanos das mulheres em situação de privação de liberdade.
A invisibilidade da questão da mulher encarcerada deriva, em grande medida, do baixo percentual de delinquência feminina. Conforme os últimos dados do DEPEN (Ministério da Justiça, 2010), há 34.807 mulheres presas no Brasil, o que corresponde a 7,4% do total de presos. Entretanto, nos últimos dez anos, houve um aumento de 261% da população prisional feminina, enquanto no mesmo período a população masculina aumentou em 106%.
É preciso ter em conta, também, que a maioria das mulheres é presa por praticar crimes sem violência e, no mais das vezes, por envolvimento com drogas. Ainda conforme os dados do DEPEN, as mulheres condenadas por tráfico de drogas representam 50% da população feminina nas penitenciárias brasileiras e, de 2005 a 2010, das 15.263 mulheres que foram presas no Brasil, quase 10 mil o foram por este crime, ou seja, aproximadamente 7 em cada 10 mulheres presas neste período estão presas por tráfico de drogas. Não é por outra razão que a criminologista feminista Meda Chesney Linda afirma que a guerra contra as drogas é uma guerra contra as mulheres[2].
O crescimento alarmante do número de mulheres presas demonstra a relevância e urgência de nos debruçarmos sobre esta temática e fomentar a tomada de consciência sobre a necessidade de uma política criminal que corresponda às especificidades da mulher. Mais do que uma política prisional com perspectiva de gênero, é indispensável que a política criminal, entendida de forma ampla, leve em conta as particularidades das mulheres que entram em contato com o sistema de justiça criminal e, sobretudo, a necessidade de priorizar a aplicação de medidas não privativas de liberdade.
Dentre estas especificidades, está justamente a questão da maternidade na prisão e o convívio da mãe presa com seus filhos menores de 18 anos[3]. Aproximadamente 80% das mulheres presas são mães. A maioria delas é a principal ou a única referência de cuidado de seu filho. Ainda assim, essa realidade é praticamente ignorada tanto no momento da prisão quanto na sentença penal e, na maioria das vezes, sequer há registro no inquérito policial ou processo-crime de que a mulher tem filhos ou mesmo de que está grávida.
Apesar da prisão de qualquer dos pais ser traumática para a criança, os efeitos negativos são mais sensíveis quando a mãe é presa. Assim é que o Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino (Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2008) aponta que apenas 20% das crianças ficam sob a guarda dos pais quando a mãe é presa, enquanto quase 90% dos filhos de presos homens permanecem sob os cuidados da mãe.
Resta claro, portanto, que é necessário um novo olhar para a realidade das mulheres encarceradas e, sobretudo, para as mães que estão presas. Esclarece-se que, ao falarmos do direito da mãe que está no cárcere, estamos falando também do direito fundamental da criança à convivência familiar e de ser cuidada por sua família de origem.
Neste contexto, mostra-se de grande importância o conhecimento e a difusão das chamadas “Regras de Bangkok” (Regras mínimas da ONU para o tratamento de mulheres presas), verdadeiro marco normativo internacional de proteção das mulheres encarceradas. Aprovadas na 65a Seção da Assembleia Geral das Nações Unidas, em outubro de 2010, as Regras de Bangkok foram editas em razão do recrudescimento das percentagens de mulheres reclusas e da consideração de que as mulheres presas são um grupo vulnerável que tem necessidades especiais. Visam complementar as Regras Mínimas para tratamento de pessoas presas e as Regras de Tóquio, que tratam de medidas não privativas de liberdade, e são endereçadas às autoridades penitenciárias, órgãos e agentes atuantes no sistema de justiça penal.
Dentre os diversos dispositivos que as Regras de Bangkok trazem e que tratam especificamente da temática das mães no cárcere, destacamos, inicialmente, o direito da mulher, no momento da prisão, de poder definir como dispor sobre seus filhos e de ter acesso e reunir-se com seus familiares, possibilitando-se, inclusive, a suspensão da reclusão por um período razoável em função do melhor interesse da criança (Regra 2).
Trata-se de garantia inicial fundamental para evitar que crianças fiquem desamparadas após a prisão da mãe e sejam insertas de forma desnecessária em programas de acolhimento institucional. Para tanto, a autoridade policial deve questionar a mulher sobre a existência de filhos e os possíveis familiares que possam assumir os cuidados da criança (Regra 3). Não havendo familiares que possam cuidar da criança ou residindo estes em outras localidades, deve-se colocar a mãe em liberdade por um tempo razoável para que ela possa providenciar os arranjos que julgar necessários aos cuidados do filho.
As Regras de Bangkok preocupam-se também com a manutenção dos vínculos entre a mãe presa e seus filhos, prevendo que o local de detenção deve ser sempre aquele mais próximo à sua residência (Regra 4). Há também disposições específicas sobre as visitas e sua importância (Regras 26 a 28).
A propósito, deve-se considerar a possibilidade de disponibilizar o acesso ao telefone (e mesmo aos sistemas de videoconferência), não apenas naquelas hipóteses em que a pessoa esteja detida em local muito distante da residência de seu filho, mas também como forma complementar de estreitar os vínculos afetivos e de promover a participação ativa na vida dos filhos[4].
Bom não olvidar que a preservação do vínculo familiar já era preocupação expressa nos artigos 9 e 21 da Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se reconhece o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos, garantindo, ademais, o direito, tanto da criança quanto dos familiares, à informação sobre o paradeiro do membro familiar que teve sua liberdade restrita pelo Poder Público.
Em relação à imposição de medidas alternativas à prisão, as Regras revelam a necessidade de pensar em alternativas para a problemática feminina, considerando que a mulher é parte de um sistema familiar e os efeitos da sentença repercutem diretamente sobre seus filhos e familiares. Estes efeitos colaterais precisam e devem ser considerados na individualização da pena e no regime prisional. Deve-se sempre priorizar medidas não privativas de liberdade e que não gerem o rompimento dos vínculos familiares. Neste sentido, as Regras estabelecem que as responsabilidades maternas podem ser consideradas como circunstância atenuante da pena (Regra 61) e que na condenação de mulheres gestantes ou que tenham filhos sobre seus cuidados deve se dar preferência para medidas não privativas de liberdade, considerado o interesse superior da criança (Regra 64).
Convém assinalar que, sob esse aspecto, as Regras de Bangkok estão em plena consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que, de um lado, partem da necessidade de não estender os efeitos da condenação aos filhos e familiares, necessidade positivada na Constituição como direito fundamental (artigo 5º, XLV), e, de outro lado, possibilitam que a condição de mãe seja considerada como atenuante, o que é totalmente passível de conformação a partir do disposto no artigo 66 do Código Penal (a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei).
Ressalta-se que, por força da Convenção sobre os Direitos da Criança, “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança” (Artigo 3.1), o que por óbvio também deve ser observado pelo juiz ao sentenciar ou prender uma mulher gestante ou que tenha sob seus cuidados filhos menores de 18 anos.
Nesta linha, as alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei 12.403/11, que tratam especificamente da substituição da prisão preventiva pela prisão albergue domiciliar (arts. 317 e 318) no caso de mulheres gestantes a partir do 7o mês ou com gravidez de risco ou quando imprescindíveis aos cuidados especiais de pessoas menor de 6 anos de idade ou com deficiência, mostram-se de fundamental importância para a melhor garantia dos direitos da mulher presa e seu filho, embora tragam um limite de idade bem inferior ao recomendado pela normativa internacional (6 anos, ao invés de 18 anos) e se apliquem somente aos casos de prisão preventiva, de forma que na fixação da pena e na execução, a substituição por medidas não privativas de liberdade permanece como uma faculdade do juiz.
De todo modo, a prisão domiciliar prevista no artigo 117 da Lei de Execução penal pode e deve ser estendida, independentemente do regime de cumprimento da pena, àquelas mulheres que têm filhos em tenra idade ou em fase de amamentação sempre que a unidade prisional não oferecer as condições necessárias à efetivação do convívio familiar entre mãe e filho[5]. Cuida-se de interpretação informada pelo fundamento da dignidade humana (artigo 1º, III, CR) e pelo princípio da prioridade absoluta à criança (artigo 227, CR).
Espera-se que as diretrizes trazidas pelas Regras de Bangkok, conjugadas com os dispositivos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, sejam capazes de garantir o direito fundamental de proteção à maternidade e a infância, fazendo com que a prisão não seja o fator determinante na separação de mães e filhos. Para que essa esperança se torne realidade, é imperativa a sensibilização dos profissionais do direito que atuam na área, vez que, como se divisou, precisamos menos de mudanças legislativas e mais de mudanças profundas na mentalidade conservadora que, em pleno século XXI, ainda permite que o exercício pleno de direitos fundamentais pelos mais vulneráveis seja invariavelmente tolhido.
[1] As primeiras duas unidades prisionais projetadas especificamente para atender as necessidades da mulher foram inauguradas em São Paulo apenas nesse ano de 2011(Tremembé e Tupi Paulista).
[2] CHESNEY-LIND, M. Imprisoning Women: The Unintended Victims of Mass Imprisonment. In: CHESNEY-LIND, M.; MAUER, M. (orgs.). Invisible Punishment, The Collateral Consequences Mass Imprisonment, New Press, 2003, p. 84.
[3] Não se ignora que as reflexões sobre a maternidade na prisão, embora seja o tema principal aqui discutido, servem potencialmente para reforçar os papeis de gênero tradicionalmente desempenhado por mulheres na sociedade, reafirmando o papel exclusivo da mulher como a única responsável pelos cuidados com os filhos. Entretanto, o objetivo aqui é abordar a maternidade na prisão apenas como uma das consequências do aumento do encarceramento feminino que apontam para a necessidade de considerar a questão de gênero no sistema penal. Importante sublinhar que o presente artigo foca a questão da maternidade, mas é essencial que a questão de gênero seja divisada em sua amplitude.
[4] Nesse sentido, conferir a “Carta de São Paulo” (diretriz 2):http://www.ipdh.org/CARTA%20DE%20SP%20PDF.pdf
[5] Vide Diretriz 1 da “Carta de São Paulo”.
Fernanda Penteado Balera é advogada voluntária da Pastoral Carcerária de São Paulo.
Heidi Ann Cerneka é coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional para a Questão da Mulher Presa.
Rodolfo de Almeida Valente é advogado criminalista em São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário