Inicialmente concebida para abrigar menores diagnosticados com transtornos de personalidade, a Unidade Experimental de Saúde (UES) nasceu vinculada à Fundação Casa. Erguida na zona norte de São Paulo, em 2006, a UES seria destinada ao atendimento especializado de alguns jovens enquanto estes cumprissem medida socioeducativa. No entanto, sua atual situação é bem diferente da que foi vislumbrada no projeto e, por isso, foi alvo de destaque de reportagem da Revista Istoé no início do mês de maio.
A construção teria capacidade de atender 40 adolescentes, distribuídos em cinco casas (ou seja, cada uma delas abrigaria oito menores). Contudo, desde sua fundação, a Unidade nunca serviu ao seu propósito inicial – não se trata nem de um estabelecimento para tratamento psiquiátrico/psicológico, nem de um centro voltado à ressocialização, uma vez que os seis rapazes que ali estão não dispõem de atividades pedagógicas e laborais e o atendimento psiquiátrico oferecido é bastante precário. Observando a situação em que os jovens internados vivem, surgiram dúvidas em relação aos reais motivos que levaram à criação e manutenção da UES.
Unidade Experimental de Sáude, localizada em São Paulo.
Pouco do que se sabe a respeito dela está relacionado a Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido como Champinha, internado na Unidade desde 2007. Em 2003, ele e quatro adultos sequestraram e mataram o casal de estudantes Liana Friedenbach e Felipe Caffé, que acampavam na cidade de Embu Guaçu. O caso teve ampla repercussão e especial destaque pela crueldade contra a adolescente (que viu o namorado morrer e foi estuprada por quatro dias e morta a facadas). Na época, o crime suscitou debates acerca da saúde mental dos envolvidos e da possibilidade de redução da maioridade penal.
Quando foi condenado, Champinha tinha 16 anos, logo, foi enviado à então Febem, atual Fundação Casa, para que cumprisse os três anos de medida socioeducativa prevista no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), no artigo 121, § 3º. Contudo, às vésperas do término da internação do rapaz, o Ministério Público (MP) solicitou a conversão da medida socioeducativa em medida “protetiva” de tratamento psiquiátrico com contenção. A Justiça paulista, baseando-se em laudos que apontavam para o sofrimento de transtorno de personalidade e alta probabilidade de reincidência, decidiu mantê-lo internado até os 21 anos.
No mesmo ano em que a internação de Champinha foi estendida, em 2006, a Fundação Casa anunciou em seu site a construção da UES, cuja proposta era a de criar em São Paulo uma unidade de referência no tratamento de jovens que cumprem medida socioeducativa e apresentam distúrbios psicológicos. E esta foi a única notícia a respeito dela, não há outros registros.
Na iminência da segunda medida chegar ao fim, o Estado de São Paulo entrou com pedido de interdição civil, cumulado com internação hospitalar compulsória, no Fórum de Embu Guaçu. O pedido foi concedido e Champinha seria transferido para a Casa de Custódia de Taubaté. Esse tipo de internação está previsto na lei 10.216/2001, que estabeleceu a Reforma Psiquiátrica no Brasil, e pode ser determinado pela Justiça a partir de um laudo médico que constate sua necessidade, sem que haja o cometimento de ilícito penal, tampouco o consentimento da própria pessoa ou de sua família.
No caso em questão, o referido laudo não existiu; foram aproveitados os exames e pareceres técnicos usados na ocasião da medida socioeducativa, de acordo com Daniel Adolpho de Assis, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDACA Interlagos) e advogado do jovem. Além disso, Assis destaca que Champinha não poderia ser levado para a Casa de Custódia uma vez que o jovem ainda estava sob respaldo do ECA e o referido estabelecimento só pode receber adultos que tenham cometido crime(s) e sejam portadores de doença ou deficiência mental.
Antes que pudesse ser transferido, o rapaz fugiu da Fundação Casa, mas foi rapidamente capturado e enviado para a UES, a qual, depois de permanecer seis meses vazia, recebeu seu primeiro e mais famoso interno.
A princípio, o gerenciamento da unidade seria feito em parceria com a Universidade Federal de São Paulo e com a Associação Beneficente Santa Fé, uma ONG tradicional no desenvolvimento de ações voltadas ao bem-estar social, sob a chefia do professor doutor de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, Raul Gorayebe. Todavia, a parceria foi desfeita por uma suposta discordância entre o coordenador do projeto e a Fundação Casa em relação aos profissionais que integrariam a equipe e aos jovens que deveriam ser encaminhados para a Unidade.
No mesmo ano em que Champinha foi internado, o então governador de São Paulo, José Serra, transferiu o imóvel da Unidade para a Secretaria da Saúde com a expedição do decreto 52.419/2007. Assim, foi firmado um Termo de Cooperação Técnica entre Saúde, Administração Penitenciária e Fundação Casa, segundo o qual a UES receberia adolescentes e jovens que cometeram atos infracionais e cumpriram medida socioeducativa, mas tiveram sua medida revertida em protetiva por apresentar transtorno de personalidade antissocial e/ou alta periculosidade. Depois de o termo ter sido assinado, os outros cinco jovens foram enviados para lá com o mesmo diagnóstico de Champinha.
Desse modo, os rapazes que lá estão permanecem “guardados”, não pelos crimes que cometeram, mas por um embate mal resolvido entre o Tribunal de Justiça, o MP e o governo do Estado, os quais, sem encontrar outra solução para manter esses jovens “perigosos” longe da sociedade, optaram por sua internação na Unidade. Por esse motivo a alternativa escolhida tem sido alvo de inúmeras críticas de profissionais do meio jurídico e da área da saúde.
Em visita realizada em maio de 2008, a juíza Mônica Paukoski, do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude, declarou que “o local está sendo utilizado apenas para contenção”. A partir de então, a Unidade foi fiscalizada outras duas vezes sem que houvesse qualquer mudança. No início deste ano, representantes do MP e do Conselho Regional de Psicologia (CRP) a inspecionaram e constataram que a estrutura física é boa, mas os procedimentos de tratamento ainda não são bem desenvolvidos.
Carla Biancha Angelucci, presidente do CRP, é enfática ao apontar as irregularidades da UES: “Os jovens não têm acesso aos prontuários médicos, não há projetos terapêuticos definidos, portanto, também não há perspectivas de melhora e ressocialização”. Ela complementa: “Não digo que aqueles rapazes têm de ser soltos imediatamente porque não sou inconsequente, mas eles não podem ficar lá eternamente”.
Luís Fernando Vidal, presidente da Associação Juízes para Democracia e coordenador da Comissão de Infância e Juventude do IBCCRIM, declara que “essa unidade é cópia de um manicômio, mas com uma agravante: os jovens cumpriram medida socioeducativa e estão presos sem ter sido condenados por outros crimes”.
Profissionais da área da saúde não se mostram favoráveis à internação prolongada uma vez que está em desacordo com o que a psiquiatria moderna defende. “Essa nova Unidade está na contramão de todas as conquistas da luta antimanicomial e do ECA. O que fizeram foi um manicômio judiciário para jovens”, afirma Fernanda Lavarello, que integra o Grupo Interinstitucional, que debate questões sobre crianças e adolescentes, justiça e saúde mental.
A luta antimanicomial foi travada no Brasil da década de 1980 até a conquista da aprovação da lei 10.216/2001, que estabeleceu que portadores de doença ou deficiência mental só seriam submetidos à internação depois que todos os recursos extra-hospitalares de tratamento fossem esgotados (artigo 4º). A psiquiatria moderna tem-se mostrado contrária à internação prolongada.
Já Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (SP) defende a criação de uma medida de segurança para menores. Segundo ele, “a legislação precisa ser aperfeiçoada, (...) caso contrário eles (os menores) podem ficar num limbo jurídico, num espaço sem regras”.
Nesse caso cabe refletir se essa seria a solução ideal para o problema. Se houvesse esse tipo de medida aplicável a menores, como ela seria executada? Nos moldes da sanção imposta aos enfermos mentais que cometem crimes, os quais, quando internados, permanecem sem tratamento adequado e à espera da morte em hospitais de custódia (pois as medidas de segurança têm prazo indeterminado), ela implicaria apenas a criação de outro depósito de doentes mentais, o que, na prática, da UES já é.
Por outro lado, se a prioridade da medida proposta por D’Urso fosse efetivamente a saúde dos internados e se a eles fossem oferecidos tratamentos para seus transtornos (que, teoricamente, era a finalidade da UES), as chances de reincidência ou piora do distúrbio poderiam ser significantemente reduzidas.
De qualquer maneira, a situação de menores infratores portadores de doenças deve ser repensada e discutida com cautela. Decisões envolvendo esse assunto não podem ser tomadas por pressão da mídia e pelo clamor social, como parece ter ocorrido com a UES. Talvez ela não existisse se o caso não tivesse a repercussão que teve e se não houvesse a pressão da opinião pública não liberar Champinha.
(Linha do tempo elaborada pela revista Istoé.)
(Érica Akie Hashimoto). IBCCRIM.
Nenhum comentário:
Postar um comentário