sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Quando o réu é Estado estrangeiro, como citá-lo?

Promovida uma ação contra Estado soberano estrangeiro, poder-se-ia questionar a necessidade de ordenar a citação nas situações em que, de plano, pode o juiz constatar a imunidade de jurisdição. Esse indeferimento liminar seria indicado caso se considerasse inepta a petição inicial, o que somente poderia ocorrer se fosse válido o entendimento de que a ação contra Estado imune à jurisdição é juridicamente impossível (Código de Processo Civil, artigo 295, parágrafo único, III).

Entretanto, a imunidade de jurisdição não significa impossibilidade jurídica do pedido. Não se pode considerar inepta a petição inicial, pois ela, mesmo nos casos em que se configura a imunidade, deve provocar o chamamento a juízo do Estado-réu. É verdade que o Estado estrangeiro pode, querendo, declinar o foro, se, pelas circunstâncias concretas do litígio, fizer jus à prerrogativa de imunidade. Todavia, diante da possibilidade de não exercício do direito à imunidade (renúncia) ou mesmo de sua não caracterização, é preciso sempre chamar o Estado réu a juízo, o que se faz por meio da citação (CPC, art. 213: Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender.).
Chamado a juízo, ou seja, ameaçado pela jurisdição estrangeira, é que o Estado soberano poderá exercer — ou não — o direito de a ela não se submeter, caso, repita-se, as circunstâncias fáticas consubstanciarem a hipótese normativa do direito internacional público consuetudinário, que estipula, de modo não absoluto, a imunidade de jurisdição. O juiz deve sempre, portanto, determinar a citação do Estado estrangeiro.
Problema relevante é saber como deve ser feita a citação do Estado estrangeiro. Diante da existência de representação diplomática, alguns juízes e tribunais tendem a determinar que a citação seja enviada à embaixada do Estado réu ou mesmo ao seu consulado, sob o raciocínio de que a missão diplomática permanente tem a representação ampla do Estado estrangeiro, inclusive para receber citações. Parece razoável o argumento de que o Estado estrangeiro deve ser citado por meio de sua missão diplomática, mas a questão não é assim tão simples.
Antes de abordar o problema da existência de poderes para receber citação no âmbito da representação diplomática ou consular, é preciso ressaltar que as missões diplomáticas e os serviços consulares não têm personalidade jurídica, sendo impróprio promover ações contra esses órgãos. As muitas ações que na jurisprudência brasileira arrolam consulados e embaixadas como réus são, na verdade, ações contra os Estados estrangeiros acreditados, sendo recomendável, nesses casos, que o juiz determine a correta autuação.
Quando a ação, ainda que impropriamente, é promovida contra a embaixada ou consulado, a citação é normalmente ordenada para esses órgãos, quase sempre observando os juízes a remessa por meio do Ministério das Relações Exteriores. Resta saber, entretanto, se o Estado estrangeiro pode ser citado por meio de seus representantes locais.
Não deve o juiz incorrer no equívoco de procurar a resposta para essa questão no Código de Processo Civil que, como visto, não disciplinou o procedimento das ações contra Estados estrangeiros. O simples empréstimo da solução que o CPC oferece para as pessoas jurídicas não soberanas pode não estar de acordo com o Direito Internacional ou não atender às normas de cortesia internacional, ou mesmo não promover a reciprocidade de tratamento. É preciso encontrar solução que atenda à especialidade da situação em que o réu não é simples pessoa jurídica, mas um Estado soberano.
Na ausência de uma norma internacional escrita, buscamos, inicialmente, as soluções encontradas pelas legislações de outros países. Ainda que essas práticas unilaterais não impliquem necessariamente na existência de norma consuetudinária internacional, dada a restrição de sua aplicação, podem elas servir de indicação dessa norma ou, pelo menos, de critério auxiliar para integração da lacuna do direito brasileiro. Analisamos as leis sobre imunidades de jurisdição de quatro países, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Argentina. Todas essas leis, exceto a argentina, que nada dispõe sobre esse aspecto, preveem que a citação deve ser feita no território do Estado estrangeiro, isto é, não devem ser remetidas às embaixadas ou consulados acreditados no Estado do foro.
Federal Sovereign Immunity Act dos Estados Unidos, promulgado em 1976 e emendado em 1988 e 1997, admite que a citação pode ser feita nos termos de acordo especial firmado entre o Estado do foro e o Estado-réu. Nessa hipótese, não se exige tratado internacional, mas apenas acertos pelos quais o Estado demandado se daria por citado conforme procedimentos previamente acertados. Não havendo tais acertos, a lei americana estipula que a citação deve ser feita nos termos de convenção internacional aplicável. Falhando os dois primeiros métodos, pode a corte remeter a citação para o Ministro das Relações Exteriores do Estado demandado, “por qualquer forma de correio que preveja um aviso de recebimento”. Somente quando nenhum desses prévios meios pôde ser realizado, é que a lei americana autoriza a citação por meio dos canais diplomáticos, ainda assim determinando que seja endereçada ao Ministério das Relações Exteriores do Estado-réu.
A lei britânica — o State Immunity Act of 1978 —, mais sucinta, limita-se a determinar que a citação seja transmitida, por canais diplomáticos, para o Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado:
A Austrália, assim como os Estados Unidos e o Reino Unido, também determinou que a citação do Estado estrangeiro fosse remetida ao seu Ministério das Relações Exteriores:
Nenhum dos Estados pesquisados previu em sua legislação que a citação pudesse ser remetida às missões diplomáticas e consulares do Estado demandado. Tampouco o fez a Convenção Europeia sobre Imunidade do Estado (European Convention on State Immunity), que, igualmente, previu a transmissão da citação para o Ministério das Relações Exteriores do Estado-réu:
A prática internacional recomenda que a citação seja dirigida ao Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado, embora uma das funções de uma missão diplomática consista em representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado, conforme expressamente estabelece o artigo 3o, parágrafo 1oa, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. A Convenção Internacional sobre Imunidade Jurisdicional dos Estados e de seus Bens, preparada pela ONU mas ainda não vigente, confirma essa prática ao estabelecer que, na ausência de convenção internacional, a citação deve ser transmitida por meio de canais diplomáticos para o Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado.
Entendemos que a citação do Estado estrangeiro não precisa, necessariamente, ser feita por carta rogatória, pois o sentido desse instrumento é solicitar a realização de um ato processual que deve ter lugar no território do Estado estrangeiro soberano e que, portanto, somente pode ser realizado pelo Poder Judiciário local. A ordem de citação de uma pessoa que se encontra no exterior, não podendo ser executada diretamente no território estrangeiro, não atingiria seu destino sem a cooperação rogada às autoridades competentes do Estado estrangeiro. Mas a citação do Estado estrangeiro é diferente, pois sua efetivação não carece de ato processual em território estrangeiro para que alcance o réu, bastando para esse fim sua comunicação por vias diplomáticas ao Ministério das Relações Exteriores do Estado demandado. Os canais diplomáticos são o meio de comunicação entre Estados, não havendo porque substituí-los pelos meios judiciais estrangeiros, a menos que uma convenção internacional disponha em contrário. Assim, a ordem judicial de citação do Estado-réu estará efetivada quando, pelos canais diplomáticos, atingir o seu Ministério das Relações Exteriores, sendo desnecessário que se rogue essa citação às autoridades judiciárias desse Estado.
Antenor Madruga é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.
Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2011

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