segunda-feira, 1 de abril de 2019

É possível que o Ministério Público seja imparcial?

Dia desses estávamos escutando um programa produzido pela Folha de S.Paulo, em formato de podcast, cujo assunto central era, justamente, a atuação do Ministério Público. Discutia-se acerca de um crescente “movimento conservador” dentro órgão estatal, a partir de um entendimento político de grande parte da comunidade de promotores e procuradores, que acaba por refletir nas suas atividades jurisdicionais (o termo “conservador”, aqui, carrega a semântica mais senso comum, traduzindo a ideia de uma busca pelo punitivismo e pelo antigarantismo penal). O debate nos chamou atenção, pois fez com que refletíssemos sobre algumas questões relativas à função da instituição: é possível que o Ministério Público seja um órgão imparcial? Se sim, quais os contornos dessa imparcialidade?

A Constituição Federal conferiu ao Ministério Público função essencial à jurisdição do Estado. Essa classificação possui aplicações práticas: ao órgão cabe a defesa objetiva da ordem jurídica, do Estado federal e do regime democrático de Direito, ficando, ainda, responsável pela defesa dos interesses sociais — públicos — e difusos. Essa é a prescrição do artigo 127, caput da Carta Maior:
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Nesse sentido, possui duas principais funções: a de custus legis (fiscal da lei) e a de acusador (nos processos em que é parte). Por causa de sua função fiscalizadora, entende-se que sua atuação é imparcial, pois não é ente dotado de interesse processual, apenas é chamado ao procedimento para fiscalizá-lo.
No entanto, parte da doutrina jurídica entende que não é possível que o MP seja imparcial — ou isento — devido à sua função acusatória. Aury Lopes Jr. e Alexandre de Morais da Rosa, por exemplo, a partir de uma construção carnelutiana[1], entendem que o Ministério Público é “uma parte artificialmente construída para ser o contraditor natural do sujeito passivo (afastada assim a contradição semântica de 'parte-imparcial', além de sua ilogicidade)”[2], objetivando afirmar que a ideia de imparcialidade do MP é uma falsa construção dogmática, pois a imparcialidade do julgador apenas será possível a partir de uma divisão clara entre a parte que acusa, a parte que defende e o isento que julga. Por isso, a partir do entendimento de que o órgão é acusador, não há que se falar em isenção, ficando essa sob responsabilidade do magistrado, tão somente.
Em um primeiro momento, a ideia construída pelos ilustres juristas é atrativa. Não carecem de razão quando defendem que o MP não possui a mesma imparcialidade do julgador. No entanto, ao desenrolar a discussão e aprofundar um pouco mais a questão, poder-se-ia questionar: isso significa que o órgão estatal não possui imparcialidade? Sem a pretensão de deslegitimar a narrativa feita pelos autores — que, temos certeza, carrega consigo seriedade científica e intelectual —, entendemos que, ainda que a natureza acusatória do MP tenha sido um avanço no sistema penal brasileiro — pois favorece uma clara distinção entre as funções dos entes institucionais —, temos muito a avançar na dogmática jurídica acerca do que significa conferir uma característica imparcial ao órgão.
Veja-se: há um problema que se dá de antemão na discussão. Os autores partem do pressuposto de que há uma cisão clara e determinada entre o MP enquanto fiscal da lei (custus legis) e o MP enquanto parte processual. Nesse sentido, a imparcialidade apenas seria possível no primeiro caso, de maneira que, no segundo, por razões aparentes, ela estaria comprometida. Ocorre que, quando o MP atua como parte processual, ele não atua como defensor dos interesses particulares da vítima — nem se seus próprios —, mas, sim, de acordo com o interesse público, e isso diz muito acerca de sua atuação jurisdicional. Sua função acusatória é limitada pelo interesse social e pela defesa do Estado Democrático de Direito (consequentemente, pelos direitos fundamentais), pois esta é a sua função institucional.
Se ainda há dúvidas disso, voltemos ao artigo 127 da CF! Tanto é assim que, nas ações penais públicas incondicionadas à representação da vítima, os interesses particulares desta sequer importam para o ingresso da ação penal. Nesse contexto, a cisão entre as duas personalidades fiscalizador-acusador reduz-se à mera formalidade: quando for um, o procedimento se dará de uma forma; quando for outro, de outra forma. Não obstante, ainda que o MP atue como parte do processo, ele não perde sua função fiscalizadora, devendo objetivar, também, pelas garantias constitucionais e pelo devido processo penal (que é democrático).
Isso significa dizer que, se dentro do procedimento houver a realização de uma prova ilícita, por exemplo, o MP também possui o dever de apontá-la, haja vista que a utilização de prova ilícita vai contra o devido processo penal e pode contaminar outras provas do processo. A ideia de que o Ministério Público deixa de ser fiscal da lei quando se torna parte do processo representa um perigo à própria essência do órgão estatal e de sua razão de existir, pois ele não se reduz a ser, meramente, parte acusadora; é, sobretudo, defensora do interesse público, e isso engloba tanto um devido processo legal quanto a ideia de uma instrumentalidade garantista do processo penal. No entanto, não é isso que se vê na prática jurídica, e por isso que o assunto importa.
Voltemos, então, à questão da imparcialidade: é verdade que o Ministério Público não a possui com os mesmos contornos da imparcialidade do julgador (e isto é claro, tendo em vista que ambos exercem funções diferentes), no entanto, isso não significa que ele não tenha sua própria imparcialidade. Promotores e procuradores não podem agir conforme seus interesses particulares (políticos, morais, de cunho preconceituoso etc.), mas, sim, de acordo com o interesse público e social. É de interesse público que o processo não contenha prova ilícita, pois essa é uma garantia fundamental do acusado, construída a partir do texto constitucional, e que é aplicável a todos os cidadãos que constituírem a parte passiva (ou, até mesmo, ativa) de um processo.
Nesse sentido, o MP possui a obrigação, sim, de ser imparcial em relação aos seus interesses particulares ou aos interesses particulares da vítima. O órgão não pode se igualar à Defensoria Pública ou à figura do advogado particular (esses, sim, dotados de parcialidade), pois não é essa a sua função institucional. Caso o fosse, o cargo de promotor e procurador não possuiria as mesmas vantagens do cargo da magistratura.
Para que não seja dito que não possuímos embasamento científico, assim entende, também, o jurista Lenio Streck, que, ao defender um MP isento — quando discutia acerca da instituição do plea bargaining —, escreveu o seguinte:
Para lembrar pela enésima vez: quando critiquei o TRF-4 e o MPF pela questão do “MP-que-não-precisa-ser-isento”, estive e estou calçado em três coisas:
(i) o texto constitucional do Brasil, que, ao dar ao MP vitaliciedade, inamovibilidade e independência funcional, estabelece um MP com perfil imparcial e isento, sendo, exatamente por isso, detentor das garantias da magistratura (se for mera parte, não precisa das garantias);
(ii) inspiro-me no Estatuto de Roma — artigo 54, “a” (aliás, citado em acórdãos da Justiça Federal e tribunais superiores) —, que estabelece que a acusação deve ser imparcial, a partir da necessidade de investigar buscando a verdade, tanto faz se para a acusação ou para a defesa (ver Decreto 4.388, DE 25/9/2002);
(iii) e busco inspiração no Código de Processo Penal alemão (artigo 60), base para o Estatuto de Roma, que admite o poder investigatório do MP, desde que busque a verdade também a favor do réu[3].
E seguiu, concluindo a coluna:
Dê-se vista ao Ministério Público, para, querendo, dizer o que pensa sobre o assunto! E falar também sobre o seguinte: assumir ser “parte-parte” e agir estrategicamente quer dizer assumir ônus de parte-parte, como até mesmo o lugar de seu assento em audiência, só para começar a discussão[4].
Dessa forma, compreende-se que o MP não é — e não deveria ser — um órgão que age com parcialidade. Sua função não é agir estrategicamente, de forma cega às garantias do processo penal (como é possível presenciar na atuação da "lava jato" ou, até mesmo, na caricatura senso comum que se tem do “promotor-punitivista”); é, sobretudo, buscar garantir a ordem jurídica e agir conforme o interesse público e os direitos fundamentais previstos na nossa Constituição Federal, ainda que esses estejam em favor da parte ré. Como já referido, essa imparcialidade impõe um leque de limites a sua atuação institucional.
Isso tudo remete ao que mencionamos no início do texto. Não há nada que legitime uma atuação ativista dos membros do Ministério Público, na medida em que há uma limitação institucional nas suas funções, principalmente se essa atuação ativista é utilizada em contrariedade ao devido processo penal. Se há, em verdade, uma crescente onda “conservadora” constituindo a atividade jurídica do órgão estatal e impulsionando práticas abusivas por parte de seus membros, isso se dá, justamente, devido à mentalidade de que o MP não é — e não possui a obrigação de ser — isento ou imparcial e de que a sua função acusatória se confunde com uma busca pelo punitivismo.
Desse modo, promotores e procuradores possuem a responsabilidade de também dar azo a um processo de instrumentalidade garantista, pois não existe processo penal sem garantias — e, sobre isso, o próprio Aury Lopes Jr. tratou de aprofundar[5]. Por isso, é importante estabelecer quais são os limites da atuação institucional do órgão, para que se promova o constrangimento a práticas abusivas.

[1] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução de José Antonio Cardinalli. 2ª ed., Campinas: Bookseller editora, 2002, pág. 41.
[2] JUNIOR, Aury Lopes; ROSA, Alexandre Morais da. Quando o juiz trata o Ministério Público como incapaz ou incompetente. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 14 set. 2018, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-set-14/limite-penal-quando-juiz-trata-mp-incapaz-ou-incompetente>.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Só um MP isento pode dar azo à barganha penal: embargos deferidos. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 17 jan. 2019, São Paulo. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-jan-17/senso-incomum-mp-isento-dar-azo-barganha-penal-embargos-deferidos>.
[4] Id., Ibid.
[5] JUNIOR, Aury Lopes. A instrumentalidade garantista do processo penal. Podivm, Salvador, p. 01-16.

Guilherme Augusto De Vargas Soares é advogado, mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela mesma universidade e membro do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2019.

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