segunda-feira, 15 de abril de 2019

Quando os lobos são muitos: Direito Penal e redes sociais

As redes sociais transformaram-se em instrumento de uma pseudo-democracia direta! Uma forma de substituir a representatividade, como característica da democracia moderna, por uma inserção direta do usuário das redes sociais nas coisas do Estado e da política. 

Poderia ser uma ágora pós-moderna? 
Poderia! 
Mas não é assim! 
Há distorções claras.  
Em uma certa medida, agentes políticos bastante pragmáticos perceberam a possibilidade de ocupar o espaço virtual, manietar ideias e pensamentos e criar ondas num sentido desejado, corrompendo não apenas a democracia representativa, mas também as ideias e os homens. 
Computadores em centros de controle midiáticos criam humores e amores em uma parcela da sociedade, a partir de mensagens transmitidas por robôs ou por pessoas em núcleos de monitoramento de redes. 
Nunca antes George Orwell esteve tão presente. Nunca antes a sociedade foi tão controlada, exatamente em razão de seu aparente descontrole. 
Parcelas da sociedade tendem a ser vistas como reflexo de toda ela. Na verdade, são reflexos daqueles que geram as ideias, difundem os pensamentos e corrompem as compreensões. 
E isto tem repercussão no Direito Penal. 
A rede social escolhe o crime que merece rejeição e exige punição severa para seus autores. Quando isso ocorre, a ode pela aplicação de pena supera a preocupação com a existência de provas ou de culpa. Mesmo na inexistência da prova ou da culpa, a pena exigida é desproporcional ao fato. 

Os mecanismos de punição das redes de comunicação operam binariamente no sentido de atribuírem um valor negativo ao que ojerizam e  um valor positivo ao que acolhem. Esta desproporção em relação a um dado fato, apenas tem por base sua retórica intrínseca, ou o seu simbolismo cunhado a partir de valores claramente definidos. 
O que conduz à punição não é mais a culpa - conquista da modernidade - e nem mesmo as provas, mas  o enquadramento do caso nesse movimento binário de rejeição/aceitação. 

Duas questões merecem reflexão. 
Em primeiro lugar, esses movimentos das redes são - de fato - demonstração de um sentimento de maioria ou apenas demonstração das ideias de uma minoria que ocupa um espaço tecnológico e faz muito barulho? Em segundo lugar, ainda que esses movimentos das redes sociais sejam reflexo da maioria, será que ela pode tudo no Direito Penal? 
Respondendo à primeira questão, parece claro que não existem parâmetros para afirmar que a “voz das redes” é reflexo do que pensa a sociedade sobre um dado fato. Ouvir as redes sociais pode significar ouvir apenas um determinado setor que controla as redes, jamais a sociedade. 
Não parece crível a morte da democracia  representativa e a supremacia da democracia direta, através das redes sociais. 
Nem temos, no Terceiro Mundo, um grau de inserção digital que implique a ampla participação popular nas redes. 

Movimento forte, sem dúvida, tanto é que restou impossível discutir democracia sem tratar do papel das redes sociais, mas nem de longe substitutivos dos canais próprios da democracia moderna. 
Em segundo lugar, a resposta acerca das possibilidades jurígenas da maioria também precisam ser pensadas com cautela. 
Digo o porquê! 
Imaginemos o caso de uma sociedade de 12 indivíduos, onde dois deles possuem uma relação homoafetiva. 
Imaginemos uma ampla discussão nas redes ou mesmo uma ágora com todos eles  a discutir a liberdade de opção sexual. Pensemos em todos reunidos em assembléia, depois do discurso inflamado de um deles e da defesa de ambos os acusados. No momento de decidir, os 10 heterossexuais resolveram que os dois diferentes teriam de morrer.
Esta decisão foi absolutamente majoritária e, a partir de um uso primário do conceito, a decisão foi democrática, na medida em que dela participaram todos os cidadãos de nosso local fictício. Houve procedimento que levou à decisão, e a ordem de execução partiu de uma ampla maioria.

Como o nosso exemplo bem demonstra, a democracia absoluta pode conduzir a uma atrocidade, e à negação da própria racionalidade.
Quando leio e quando ouço expressões como “tudo pela democracia”, penso sempre em todo o mal que o mundo já experimentou em razão de decisões, julgamentos e compreensões vindos da maioria conduzida.
Isto não quer dizer que a nossa sociedade duodecimal seria mais justa e mais feliz se apenas dois – diferentes ou iguais – resolvessem, com base em alguma lei, escravizar os outros dez, optando sozinhos por suas ideias de justiça e correção. Se algumas regras imemoriais justificassem o direito dos dois líderes hipotéticos de se sobreporem aos dez, até poderíamos ter leis sendo executadas, mas estaríamos ferindo da mesma maneira a racionalidade.

Como fica claro facilmente na simplória leitura do nosso segundo exemplo, o Direito também pode comportar um mal.
Estamos sempre entre duas antíteses que exercem uma tensão entre si, em movimentos opostos: de um lado o direito, do outro, a vontade direta da maioria. Embora o direito tenha origem na ideia de maioria – posto que as leis são feitas por um Poder democrático – a sua aplicação sempre se dá pelo único dos Poderes estatais que não é, e nem pode ser democrático: o Judiciário.
Há sempre dois fantasmas que se escondem e estão à espreita do mínimo deslize. Há o fantasma do Direito, e também há o fantasma da democracia. O autoritarismo, que sempre se apóia no Direito, e o totalitarismo, que sempre se justifica na vontade da maioria. Ambos são opressores, ambos sufocam as diferenças, ambos agridem a racionalidade.
Este é o paradoxo de toda compreensão política, ou o “paradoxo da democracia” como quer a cientista política e filósofa belga, de origem indiana, Chantal Mouffe. O nosso grande desafio é equilibrar este pêndulo e permitir que o direito possa reduzir a tendência totalitária da democracia, e que a democracia reduza a tendência autoritária do Direito.
Por esta razão, é preocupante ver os exercícios de demonstração da "vontade do povo", em julgamentos populares que se realizam através da imprensa, ou da internet, e utilizando-se do senso comum. Também pode ser assustador ver a tentativa de encontrar o "espírito do povo" em manifestações que se autodenominam "tribunais populares", ou "tribunais da terra", observatório da internet ou algo que o valha. Enquetes populares também se manifestam com a mesma virulência desarrazoada.
As redes sociais são ocupadas por portentosas manifestações de ódio que até podem representar a maioria, mas sempre desbordam para além de seus próprios limites. 
Estes julgamentos das redes sociais, construídos para dar vazão aos anseios imediatistas ou perenes da maioria não diferem muito da decisão de soltar Barrabás e condenar Jesus à crucificação, o que parece ter sido injustificável até mesmo para um agnóstico.
Ainda que movida pelas razões certas, as decisões da maioria pelas redes sociais podem sufocar a racionalidade, e deixar de lado as maiores conquistas da modernidade.
Acaso Hitler era um homem apenas, ou trazia consigo todo um país que se deixava caminhar naquela direção? Está claro que suas decisões foram toleradas e aprovadas pela maioria do povo alemão, e isto se constitui em um trauma da modernidade.
Da mesma maneira, Mussolini e Hugo Chaves também se apoiaram na regra da maioria. Não foi diferente com Juan e Evita Perón e com tantos outros delinquentes estatais.
Isto não quer dizer que devamos permitir a ditadura de poucos autoritários. Quer apenas deixar claro que não é possível submeter o Direito Penal aos desejos da maioria, manifestados através das redes sociais. Esses direitos são caros à ideia de pluralidade, de diferença e de tolerância e não se submetem a eventuais desejos torpes, ainda que sejam a vontade da maioria.
Até posso concordar com o pensamento segundo o qual “para o direito nem sempre basta cercar e proteger as ovelhas. Às vezes é preciso gradear a toca dos lobos”. O problema é que a modernidade e a racionalidade ainda não conseguiram dizer, com certeza, quem são os lobos e quem são as ovelhas. E, pior, muitas vezes as ovelhas, todas elas reunidas, tendem a se transformar em lobos sanguinários, ou a utilizar o rótulo de "lobo" para gradearem os pastos de outras ovelhas.
 é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.
Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2019.

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