É evidente que os dados disponíveis sobre a população carcerária no Brasil não são precisos, havendo problemas de consistência e atualização. Pode-se dizer que há hoje duas fontes principais: o banco de dados do Depen-MJ (Infopen e Sisdepen), reunindo informações fornecidas pelos Estados e cuja última atualização refere a dados de 2016, e o Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), organizado a partir do registro dos mandados de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias. Há, ainda, o projeto “Sistema Prisional em Número” do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), alimentado por informações obtidas por membros da instituição em visitas e inspeções periódicas às unidades prisionais. De todo modo, com maior ou menor grau de atualização e confiabilidade, todos os bancos de dados apontam para um padrão grave de ao menos três décadas de crescimento acelerado do número de pessoas presas no Brasil.
O conceito de “encarceramento em massa”, embora produzido nos círculos acadêmicos norte-americanos, tem sido utilizado com frequência para descrever também os processos brasileiros de crescimento do aprisionamento em torno a um número pequeno de tipos penais, sobretudo tráfico de drogas, roubo e furto. Não reconhecer esse processo histórico – fenômeno similar em diversos outros países ocidentais, nas últimas quatro décadas – é negar o óbvio. Circulam nas mídias sociais, todavia, afirmações categóricas de que o encarceramento em massa seria um “mito”, com viés conspiracionista e conclusões ilógicas, ainda que fundadas na constatação correta da fragilidade dos dados oficiais.
Falta a tais posições uma visão global e sistêmica capaz de compreender o funcionamento do sistema prisional em seu dinamismo. O que realmente importa para a aferição de processos de encarceramento em excesso é o padrão de um maior número de entradas que saídas se repetindo no tempo, mês após mês e ano após ano, produzindo crescente déficit de vagas (o que se chama de “superlotação”, afinal) e, com ele, a inviabilização de quaisquer políticas de trabalho, educação, valorização da carreira dos profissionais do sistema e mesmo de segurança e controle pelo Estado de suas unidades prisionais.
Em síntese, os dois argumentos centrais presentes em uma amostra de textos (Nucci 2019; Carpes 2017; Ulio 2019) que contêm a posição ora criticada são os seguintes: a) questionamento da consistência dos dados, os quais estariam “inchados” por critérios inadequados, a depender do regime prisional ou da natureza provisória da prisão; b) esforço de justificação do índice de presos por 100 mil habitantes no Brasil, considerado razoável e proporcional diante dos índices de violência. O índice de superlotação não seria “tão grande”, destacando-se que a colocação no ranking seria o 26º lugar, e não a terceira colocação oriunda da consideração exclusiva dos números absolutos. Em complemento, na mesma linha, o alto número de homicídios e da violência em geral explicaria e justificaria a velocidade do aumento da população carcerária nacional, concluindo que o Brasil, na verdade, “prende pouco”, por causa da baixa taxa de elucidação de homicídios.
A mensagem política, ao final, é a de que “está tudo bem e estamos no caminho certo”, não havendo sentido em qualquer desconforto diante da situação prisional brasileira. Deslocam, assim, o ônus e a crítica de modo integral ao Poder Executivo, responsável pela omissão na criação de novas vagas no sistema prisional.
Estão errados, muito errados.
Sobre os dados
É uma inverdade afirmar que os dados prisionais são “inchados” por conta da inclusão de pessoas que estariam, a rigor, soltas. A metodologia declarada no INFOPEN-2016 não computa pessoas em prisão domiciliar e em regime de monitoração eletrônica. A Resolução CNJ 251, de 2018, que regulamenta o BNMP, exclui expressamente situações em que não haja o recolhimento em unidade penal (artigo 3º, §§ 1º e 2º), como a maior parte dos presos em regime aberto ou sob monitoração eletrônica. Não há uma metodologia clara no âmbito do projeto “Sistema Prisional em números”, do Conselho Nacional do Ministério Público (ao menos na Resolução CNMP 56, de 2010). Seria infactível supor que os promotores de justiça “contem” os presos em suas visitas e inspeções, sendo mais razoável imaginar que o ponto de partida é a informação fornecida pela autoridade administrativa – a mesma que alimentará o DEPEN local e, posteriormente, o INFOPEN.
Seja como for, as divergências entre os bancos de dados não são relevantes a ponto de se poder dizer que haveria um falseamento da realidade. O índice proporcional de presos por 100 mil habitantes oscila de 347 (Infopen – 2016) para 337 (BNMP/CNJ – fevereiro 2019). No sítio virtual do World Prison Brief(acesso em 22/03/2019), a mais importante referência para comparações entre países, já são levados em conta os dados do CNJ, e não os do DEPEN. De acordo com informações do BNMP/CNJ, de fevereiro de 2019, o Brasil teria 719.998 pessoas presas acrescidas de uma estimativa de 36.765 pessoas custodiadas em delegacias de polícia, com nível de ocupação (superlotação) de 166.2%. Não são dados muito distantes do relatório referente ao 2º trimestre de 2018 do CNMP, segundo o qual haveriam 680.441 pessoas presas para 417.135 vagas, com taxa de ocupação de 163,12%, sem contabilizar presos em delegacias de polícia. Se excluídos aqueles em regime aberto – e não está claro como o CNMP chega a esse dado, já que só há visitas e inspeções em unidades de fechado ou semiaberto – seriam 9.311 presos a menos.
Muito se questiona sobre o número de pessoas efetivamente presas, mas pouco se fala da efetiva capacidade de vagas do sistema prisional brasileiro, hoje estimada em 417.135 postos. A regra legal constante do art. 85, parágrafo único, da Lei de Execução Penal, segundo a qual seria o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária a definir a capacidade máxima de cada estabelecimento, não é cumprida. O número de vagas em cada cubículo e unidade é indicado de forma unilateral pelas autoridades administrativas. Procedimentos questionáveis como a colocação de colchões no chão e pessoas em containers elevam, de forma artificial, o número de vagas, o que impacta diretamente na taxa de superlotação.
A hipótese de não se levar em conta presos provisórios na estatística prisional por causa da suposta precariedade e brevidade da prisão é um descomunal absurdo e indica, com clareza, a ausência de uma perspectiva sistêmica capaz de compreender que, independentemente da sorte de fulanoou beltrano, o que interessa é a ocupação da vaga por alguém, seja a mesma pessoa de ontem ou não. Mais uma vez: para a análise do problema da ausência de vagas e do crescimento desenfreado da população carcerária, o dado que interessa é exclusivamente o (des)equilíbrio entre entradas e saídas em um período determinado, independentemente se as mesmas ou diferentes pessoas estão sendo presas e soltas.
Da necessária crítica da ausência de uma política pública permanente de gestão que valorize a produção de dados confiáveis à afirmação de que dados seriam deliberadamente falseados há uma grande distância. Ainda que inconsistentes, há a possibilidade de comparação e percepção de tendências de curto, médio e longo prazo; e tais tendências são evidências irrefutáveis.
Sobre a justificação da posição do Brasil no ranking do World Prison Brief e do número de pessoas presas
Passando à dimensão não mais da negação da realidade, mas de sua justificação, afirma-se que, utilizando o índice proporcional, e não os números absolutos, o Brasil, com 337 presos por 100 mil habitantes, ocuparia posição razoável (26º) no ranking internacional em face de seus indicadores de violência e criminalidade.
Evidente que o índice de presos por 100 mil habitantes é que deve ser utilizado para fins comparativos e que ele tem uma função totalmente distinta da utilização dos números absolutos. Nunca se defendeu o contrário. No entanto, se o procedimento metodológico é comparativo, recomenda-se excluir localidades muito pequenas para evitar distorções estatísticas (Silva 2017). Dentre os 25 “melhores colocados”, há ilhas norte-americanas e britânicas com população de 15 mil pessoas; ao todo, são 12 locais com população total inferior a 110 mil pessoas, o que colocaria o Brasil, a rigor, na 14ª colocação, atrás de Estados Unidos, El Salvador, Turcomenistão, Tailândia, Cuba, Maldivas, Ruanda, Bahamas, Panamá, Rússia, Costa Rica, Belize e Belarus. Mas o mais grave e importante é constatar que o índice brasileiro era de apenas 132 presos por 100 mil habitantes em 2000 e cresceu em velocidade alucinante ao menos até 2016.
Um segundo passo no plano da justificação das agora assumidamente altas taxas de encarceramento no Brasil é sua vinculação causal aos indicadores de violência.
Nada aqui é “óbvio”. A correlação entre aumento da população carcerária e fatores diversos, dentre os quais os índices de criminalidade registrada, mudanças na legislação, aplicação de penas mais longas, a política de criminalização das drogas, índices de desemprego, entre outros, é um dos temas mais complexos e debatidos na literatura penológica. Explicar o crescimento da população carcerária como efeito direto de um mal comprovado aumento da criminalidade não letal é uma opção profundamente simplista, que ignora países com índices de violência elevados, mas menores taxas de encarceramento (exemplos próximos: Colômbia, Venezuela, México), e outros com indicadores de menor violência: os Estados Unidos veem decrescer os índices de criminalidade registrada desde 1992, mas seguiram em fortíssimo ritmo de crescimento da população carcerária até os anos de 2015 e 2016. Não é, em absoluto, uma hipótese explicativa facilmente aceitável quando confrontada com os fatos.
No caso brasileiro, a ausência de centralidade do crime de homicídio nos processos de encarceramento – já que, em média, apenas 5 de cada 100 homicídios são elucidados no País – impede em definitivo qualquer associação causal direta entre esse indicador e o aumento da população carcerária.
Por outro lado, é grave, falaciosa e inadmissível a afirmação de que a baixa eficiência na elucidação de homicídios seria um indicativo de que “prendemos pouco”. A escassez de recursos é um imperativo aplicável também ao sistema penal, o qual atua de forma limitada e vê suas normas organizacionais e institucionais direcionadas à eleição de prioridades. Eis que elegemos um modelo de policiamento ostensivo em detrimento do fortalecimento da inteligência e da investigação, modelo este que propicia a prisão em flagrante e a superlotação dos cárceres com pequenos traficantes varejistas do mercado das drogas e acusados por crimes patrimoniais. Um modelo, portanto, direcionado à criminalização da pobreza e que parece ter optado, no médio e longo prazo, por não priorizar os homicídios que vitimam enorme parcela da juventude mais vulnerável. Não é que prendemos pouco, portanto: é que prendemos mal.
Conclusão
Como era de se esperar, a conclusão dos terraplanistas que afirmam ser um “mito” o encarceramento em massa no Brasil é a nada original transferência de responsabilidade ao Poder Executivo, responsável por construir mais presídios e abrir novas vagas visando cobrir um déficit que cresce em progressão geométrica.
Possíveis distorções, constatáveis em casos individuais, não se confundem com uma perspectiva de gestão pautada pela compreensão sistêmica do dinamismo do sistema de penas brasileiro. Em outras palavras, é possível questionar – por exemplo – a fração para progressão de regime em casos de roubo com arma de fogo sem que isso interfira na compreensão de que sim, temos um problema grave quando para cada saída do sistema prisional há duas ou três novas entradas. Caso seja tomada uma opção legislativa pelo incremento da severidade no caso citado, resultando na elevação do número de entradas, tal perspectiva haverá de buscar mecanismos de compensação para aumentar o número de saídas, por meio da redução da severidade em crimes mais leves, como furto, se quisermos seguir no exemplo de crimes patrimoniais. É disso que estamos falando.
Fica claro como a negativa do superencarceramento como problema real não se relaciona à discussão de evidências, mas sim à busca de justificação ideológica de determinadas posturas e posicionamentos absorvidos pelas instituições que protagonizam os processos de criminalização e punição.
Ocorre que a doxa se converte em práticas irresponsáveis: justificar moralmente a superlotação carcerária tem por efeito prático não só a banalização de condições de custódia vergonhosas, mas também o fortalecimento dos mecanismos de articulação de grupos criminosos organizados que foram fundados e organizados dentro do sistema penitenciário nacional, fazendo com que o superencarceramento tenha passado a ser uma de suas principais bases materiais de recrutamento e expansão. Fulmina também as possibilidades de expansão de políticas de trabalho e educação, bem como atinge diretamente as condições de trabalho de agentes penitenciários e outros servidores que atuam no interior do sistema prisional. Precisamos, mais do que nunca, de mais serenidade para debater políticas públicas efetivamente fundadas em evidências.
Referências citadas
Carpes, Bruno Amorim. “O mito do encarceramento em massa”. O Estado de São Paulo, 05 set. 2017.
Nucci, Guilherme de Souza. “Encarceramento em massa e distorção de dados: a verdadeira política criminal no Brasil”. Disponível em:
http://www.guilhermenucci.com.br/artigo/encarceramento-em-massa-e-distorcao-de-dados-a-verdadeira-politica-criminal-no-brasil, 31 jan. 2019.
Silva, Adrian. “O mito do mito do encarceramento em massa”. Portal Justificando, 19 set. 2017.
Pavarini, Massimo; Giamberardino, André. Curso de penologia e execução penal. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
Uliano, André Borges. “8 mitos sobre segurança pública em que você sempre acreditou”. Gazeta do Povo, 18. Fev. 2019.
World Prison Brief, disponível em: http://www.prisonstudies.org. Acesso em 22/03/2019.
André Giamberardino é defensor público no Paraná. Professor dos Programas de Pós-graduação em Direito e em Sociologia da UFPR.
Revista Consultor Jurídico, 2 de abril de 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário