Entrevista concedida pelo historiador britânico Gareth Stedman Jones ao jornalista Silio Boccanera para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).
O túmulo de Karl Marx, no cemitério londrino de Highgate, é polo de peregrinação até hoje. Não só de fieis admiradores marxistas, mas de pessoas do mundo inteiro que reconhecem o impacto que este pensador político, filósofo alemão, teve no mundo inteiro. É bem verdade que quando ele foi enterrado aqui, só onze pessoas compareceram ao enterro. É que a fama de Marx iria se expandir mesmo no século XX.
2018 marcou os duzentos anos do nascimento de Karl Marx. Comemorações se somaram às homenagens que ele recebe regularmente. No túmulo da família Marx, flores são deixadas por visitantes. Alguns, é verdade, com certa rebeldia. Foi em Londres que o filósofo e militante político alemão passou as últimas três décadas de vida. Produziu na capital britânica obras fundamentais de sua controvertida teoria política. A mais recente biografia de Marx, Karl Marx – Grandeza e Ilusão, é de autoria de um historiador britânico, Gareth Stedman Jones. Professor das universidades de Cambridge e Queen Mary, nos encontra na vasta estação de trem Saint Pancras, construída na época em que Marx vivia.
Silio Boccanera — O senhor diria que Marx foi um homem vitoriano?
Gareth Stedman Jones — Claro que sim, principalmente por sua atitude em relação às mulheres, ao moralismo sexual, à educação das filhas... Mas não devemos exagerar. Ele fez questão que elas se tornassem muito letradas, mas tiveram de aprender piano para que tivessem chance de atrair bons pretendentes. E um dos problemas dele, ou oportunidades, foi que ele havia se casado com alguém proveniente de um estrato social mais alto.
Silio Boccanera — Jenny Westphalen.
Gareth Stedman Jones — Sim. Ela era filha de Ludwig Westphalen que era parte da nobreza de serviço na Prússia. Ela não estava disposta a abrir mão dessa posição. Mesmo com uma vida difícil, quando eles viajavam, principalmente para Trier, ela comprava um vestido novo. O objetivo era parecer rica e burguesa, mesmo se tivesse de penhorar de tudo em nome da boa aparência. Ele não tinha muito dinheiro. Viveu quase sempre falido. Ele era um falido, mas ganhou algum dinheiro como jornalista para o New York Daily Tribune, na década de 1850. A mulher dele escreveu uma autobiografia e diz que aquela foi uma época boa. Fora isso, eles dependiam de parentes que morriam e deixavam algum dinheiro ou de Engels, que o ajudou. Vale lembrar que, nos últimos 15 anos, a família dele dependeu inteiramente de Engels, o que criou muito ressentimento e também gratidão.
Silio Boccanera — Friedrich Engels, dois anos mais jovem que Marx, era filho de um rico industrial alemão. Enviado por seus pais para trabalhar nas fábricas da família, na cidade inglesa de Manchester, Engels se impressiona com as condições miseráveis dos operários e se dedica a estudar o proletariado. Conhece Marx e se tornam grandes colaboradores. O trabalho conjunto deles mais famoso é o Manifesto Comunista. Ao longo do século XX, houve tentativa de colocar a teoria de Marx e Engels em prática.
Silio Boccanera — Para muita gente, os horrores praticados em nome do marxismo no século 20 – o Gulag, a repressão, os processos de Moscou e todas essas coisas – são atribuídos a Stalin e até a Lênin, a Mao e outros. Mas tem gente que diz que as sementes disso estavam em Marx. O senhor concorda? Afinal, ele defendeu o terror na Revolução Francesa.
Gareth Stedman Jones — É verdade. Eu acho que o problema do pensamento dele é que, embora ele dissesse que a humanidade é muito ativa em relação à natureza e à história, ele nunca aborda isso do ponto de vista do indivíduo. Ele foi influenciado, a partir da década de 1840, pela ideia de que a declaração dos direitos dos homens era apenas uma declaração dos direitos dos capitalistas, então não devia ser levada muito a sério. Uma coisa importante sobre a diferença entre Marx e o marxismo é que Marx se envolveu muito com a Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional. Ele testemunha seu impacto no Reino Unido após o segundo congresso de 1867. Ele testemunha e apoia a chamada “pressão externa”, que um sistema muda com pressão, não necessariamente através de uma revolução violenta, através do povo invadindo o Palácio de Inverno. Pode significar apenas políticos cedendo a pressões externas, como aconteceu em 1867.
Silio Boccanera — Qual foi a importância de Engels em termos do desenvolvimento e de ajudar Marx a desenvolver suas teorias? Foi indispensável?
Gareth Stedman Jones — Acho que ele foi muito importante no início, na década de 1850. Quando Marx veio para a Inglaterra, ele mal falava inglês. Ele escrevia os artigos para o New York Daily Tribune em alemão e Engels os traduzia. Ele aos poucos se tornou capaz de fazer isso sozinho. Em termos do funcionamento das bolsas de valores e das finanças, Engels tinha a experiência de ser empresário em Manchester.
Silio Boccanera — Ele sabia como uma fábrica funciona...
Gareth Stedman Jones — Sim, de como uma fábrica funciona. Em todos esses aspectos, Engels foi muito importante. Ele perde a importância com o passar do tempo. E o interessante é que, nos últimos 6 ou 7 anos de vida, Marx não mostrou nada a Engels. E quando Engels, que foi executor de seu testamento, vê a pilha de textos no chão, fica horrorizado, porque Marx não estava fazendo o que ele pensava, que era a sequência de O Capital.
Silio Boccanera — E Engels não achava que o volume 1 era muito claro. Ele o achava confuso, assim como muita gente que lê Das Kapital, volume 1.
Gareth Stedman Jones — Pois é, ele ficou muito impaciente com todas aquelas coisas sobre valor, que Marx nunca chegou a esclarecer. Mas não foi só Engels, os sociais-democratas alemães pressionavam Engels, perguntavam: “Mas e o clímax. Quando é que o capitalismo vai fracassar?” E Engels responde a isso – e talvez concordasse com esse raciocínio – dizendo que chegará o momento do colapso do capitalismo. Mas ele muda a palavra. Esse é um daqueles detalhes importantes. O que Marx diz, na verdade, é que, se várias situações acontecessem ao mesmo tempo, o capitalismo seria “erschüttert”, ou seja, abalado. E Engels corta essa palavra e a substitui por “zusammengebracht”, ou “implodido”. Isso deu pano para as mangas dos sociais-democratas.
Silio Boccanera — Marx teve enorme influência no século XX, quando o comunismo se espalhou pelo mundo, nos sonhos de alguns e em regimes que adaptaram as ideias dele à la carte, nem sempre com fidelidade. Marx andou quase esquecido após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Foi um período em que as propostas dele pareceram derrotadas pelo avanço do mercado pouco regulado em um capitalismo promotor de valores que Marx combatia. Renasce, porém, um interesse em Marx em meio aos desafios do século XXI, com instabilidade econômica e desigualdade social crescentes. Olha-se menos para o Marx revolucionário e agitador pela luta de classes e mais para o analista da sociedade capitalista, da globalização, do consumismo, da comunicação instantânea, época de devoção ao mercado máximo com um Estado mínimo.
Silio Boccanera — Além de Engels ter desenvolvido as teorias de Marx depois de sua morte, ele viveu doze anos mais que o Marx, vieram posteriormente os grandes nomes do século 20, os líderes de revoluções: Lênin, Stalin, Trotski, Mao, etc. Eles fizeram suas próprias interpretações do marxismo. Até que ponto o distorceram?
Gareth Stedman Jones — Tudo passa por Engels, como você disse. Poucos deles puderam ler Marx além de Engels. Isso significa que existe toda uma teoria sobre a natureza da dialética, que supostamente opera global e cosmicamente, e não é simplesmente uma forma de relações entre argumentos, como se pensava originalmente. Por outro lado, em termos de teorias de ação, eles não dependiam de nenhum dos dois, eles foram inventando com base na necessidade.
Silio Boccanera — Nascido em Trier, na Alemanha, Marx era filho de um judeu que se converteu ao cristianismo para poder atuar como advogado em um ambiente antissemita. O jovem Marx estudou em Bonn e Berlim, e trabalhou como jornalista antes de iniciar a militância política.
Silio Boccanera — Em certo momento, Marx se considerou um poeta. Marx, poeta?
Gareth Stedman Jones — Ele era em grande parte produto daquela geração romântica. Enviou poemas a revistas de poesia quando tinha uns 17 anos. Quando cortejava Jenny, enviava-lhe vários poemas.
Silio Boccanera — Bons ou ruins?
Gareth Stedman Jones — Bem, não muito bons. Eram imitações do estilo da época. Até ele em certa altura percebe isso. E adota alguns comportamentos que condizem com sua imagem dos poetas. O pai dele escreve uma carta maravilhosa dizendo: “Você não sai da cama, perambula de pijama o dia todo, fuma como um louco, bebe...” Nesse sentido, ele se enxerga como uma pessoa excepcional, com um talento excepcional. Ele acaba percebendo que não é poeta e que não pode ser um, mas durante uns 2 ou 3 anos achou que pudesse.
Silio Boccanera — Falamos sobre Das Kapital. Ele escreveu o volume 1 e Engels escreveu os volumes 2 e 3. O outro documento famoso que Marx escreveu foi o Manifesto Comunista, em 1848.
Hoje em dia, para muita gente que estuda Marx, é quase como uma bíblia. As pessoas o encaram como algo permanente, talhado em pedra. Mas na verdade era apenas um panfleto para trabalhadores, não era?
Gareth Stedman Jones — Novamente, é um documento mais do século 20 do que do 19. Embora tenha sido publicado em 1848, ninguém dá atenção a ele e o próprio Marx, em relação à Liga dos Comunistas, não quer sua divulgação, porque afastaria as pessoas. Então o Manifesto só é de fato divulgado na década de 1870, porque os líderes dos sociais-democratas, Liebknecht e Bebel, estavam sendo processados por não apoiar a unificação alemã e por apoiar a comuna. Eles foram julgados, e entre as provas que a acusação apresenta está o Manifesto Comunista, para dizer: “É isso que vocês querem.”
Silio Boccanera — Quando Marx aborda a revolução, ele considerava principalmente a Europa Ocidental, seu próprio país, a Alemanha, e também a França e a Inglaterra. Ele não pensou muito nos outros países. A Rússia ele sequer considerou. Mas 30 anos após a morte dele houve a Revolução Russa. Teria sido um choque para ele descobrir que aconteceu logo na Rússia?
Gareth Stedman Jones — O que ele achava que poderia acontecer era... Ele torcia muito pelo colapso do czarismo. Suas últimas esperanças revolucionárias estavam na guerra russo-turca de 1878. Ele esperava que os russos perdessem e isso levasse ao colapso do regime czarista. Não achava que isso levaria imediatamente ao socialismo, mas achava que a Rússia já tinha uma base comunal nas comunas de camponeses e que talvez elas pudessem contornar o capitalismo. No entanto, a Rússia ganhou aquela guerra, e o czarismo se fortaleceu. Mas o interessante é que, quando ele escreveu O Capital, em 1867, não houve muito interessa na França, na Alemanha ou na Inglaterra. Quem realmente se interessou foram os russos, e ele ganha um grupo de admiradores russos na década de 1870.
Silio Boccanera — Ele não se interessava por eles, mas eles se interessaram por ele.
Gareth Stedman Jones — Pois é. E ele passou a se identificar com os russos. Em parte, adotou a ideia de um pensador russo de que os russos poderiam pular o estado burguês e ir direto ao estado socialista.
Silio Boccanera — Como disse, ele se concentrava principalmente na Alemanha, criticava muito a Inglaterra e a França, mas o resto do mundo praticamente não existia para ele, não é?
Gareth Stedman Jones — Ele escreveu muito, na década de 1850, sobre a Índia e outros lugares assim, quando ainda achava que a presença britânica era positivamente civilizatória. Mais tarde, ele passa a achar que... Ele troca a ideia do pós-capitalismo por uma ideia de anticapitalismo, ou seja, a revolta das colônias, que antes não lhe interessava, passa a ser abordada por ele em seus últimos escritos. Ele achava que... na Filipinas? Em algum país daquela região poderia haver rebeliões contra a presença imperialista. Ele não tem uma teoria do imperialismo. Isso surge depois dele, mas ele deixa de admirar os impérios coloniais como admirava nos anos 1840 e 50.
Silio Boccanera — O senhor vê elementos, na sociedade contemporânea, como consumismo, globalização, esse capitalismo sem muitos controles... Acha que Marx teria reconhecido alguns desses elementos?
Gareth Stedman Jones — Certamente o consumismo, que se multiplicou exponencialmente desde a época dele, mas ele certamente acharia que o capitalismo tende ao excesso. Nesse sentido, não acho que ficaria muito surpreso. O que talvez o surpreendesse fosse o fato de que, no geral, o capitalismo fez o padrão de vida melhorar, pelo menos daqueles que vivem em países metropolitanos, de uma forma que ele provavelmente não previu na maior parte de sua obra.
Silio Boccanera — Até que ponto o século 21 poderia trazer o pensamento de Marx de volta para explicar o nosso tempo?
Gareth Stedman Jones — Acho que, em alguns aspectos, o pensamento dele continua sendo informativo e relevante. Um deles é, como costumo dizer, essa ideia de inversão, a ideia de que as pessoas tendem a achar que o capitalismo vem de outro lugar e que elas são apenas vítimas, quando na verdade elas são os agentes que o criam. E esse é um pensamento que vem da crítica à religião, que é relevante até hoje. Esse deslocamento de responsabilidade, que obviamente também cria uma passividade na população, que, de outra forma, talvez fosse mais rebelde. E o que ele faz nos anos 1860 é preparar algo que se aproxima mais da social-democracia do que bolchevismo. Nesse sentido, esperamos que essa ainda seja uma consideração relevante hoje. As condições hoje não são de muita esperança, mas quem sabe o que pode acontecer daqui a 25 anos ou talvez até em dez anos? Mas acho que esses aspectos – a instabilidade do capitalismo e essa sensação de ele criar algo que parece ser um ato da natureza e algo que pode ser desconstruído – são suas conquistas que permanecem.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2018.
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