Para quem vive nas ruas do Rio de Janeiro, ser abordado por uma autoridade pública não costuma ser uma experiência agradável. Normalmente é um policial ou um guarda municipal que chega e manda as pessoas saírem da praça ou das calçadas. Com menos truculência, as equipes da prefeitura municipal cumprem a mesma missão. Embarcam as pessoas em situação de rua em vans e as transportam para abrigos localizados longe do centro e da Zona Sul da cidade. Em 2016, dois defensores públicos uniram forças para mudar essa realidade. Em dezembro passado, o projeto Ronda de Direitos Humanos (Ronda DH) ganhou o Prêmio Innovare 2018 na categoria Defensoria Pública.
A defensora pública do Estado do Rio de Janeiro Carla Beatriz Maia, o defensor público da União Renan Vinícius Sotto Mayor e voluntários que aderiram ao projeto abordam pessoas que moram nas ruas para verificar se sofrem algum tipo de violação de direitos. Conduzem uma entrevista com quem aceita conversar e, com base em um questionário, diagnosticam a situação de violência e se preparam para tomar as medidas necessárias para resolver o problema. Muitas vezes, a questão é a emissão da segunda via do RG, o que outro projeto da Defensoria Pública assegura gratuitamente para pessoas sem renda.
O projeto também mantém uma fanpage no Facebook com matérias jornalísticas que divulgam tanto o projeto quanto outras ações da Defensoria para este público-alvo e notícias de eventos sobre a temática da população de rua. Até hoje, pelo menos 500 pessoas já foram entrevistadas pelo projeto, criado em meio à retirada maciça de pessoas das ruas dos principais cartões-postais da Cidade Maravilhosa ocorrida meses antes dos Jogos Olímpicos Rio-2016, segundo a defensora pública Carla Beatriz Maia.
Em alguns casos, a gravidade da situação exige uma providência extrema, como acionar a Justiça, mas os idealizadores do projeto também recorreram a meios não tão institucionais. “Tomamos uma decisão estratégica de divulgar as violações encontradas aos correspondentes internacionais que estavam no Brasil para a cobertura das Olimpíadas. Falamos com jornalistas do Canadá, da França, do Japão, entre outros. De uma semana para a outra, as retiradas compulsórias cessaram. A Secretaria de Desenvolvimento Social da prefeitura adquiriu outros procedimentos de abordagem”, afirmou Carla Beatriz Maia.
Higienização
“No Rio de Janeiro, há muito tempo temos uma ‘cultura da higienização’ retirando das ruas o que antigamente chamavam de mendigos e, hoje, são tratados como população em situação de rua. O processo se agravou no contexto dos megaeventos (Copa do Mundo de Futebol de 2014 e Rio-2016), quando recebíamos muitas reclamações e denúncias até de agressões. O fenômeno revela um ciclo de impunidade contra a população de maior vulnerabilidade, pois em muitos casos não possuem identidade (RG) ou residência fixa, geralmente não denunciam porque têm medo de represálias das forças de segurança. Muitas vezes são impedidos de buscar seus direitos”, destaca a defensora.
Problema histórico
Embora o projeto reflita uma imagem moderna do trabalho da Defensoria Pública, a problemática das pessoas que saem de casa e ganham as ruas é secular no Rio de Janeiro, segundo o defensor público da União, Renan Vinícius Sotto Mayor. “Essa parcela da população é extremamente vulnerabilizada, criminalizada desde o Código Penal de 1890. Estar em situação na rua era considerado crime ao longo da história. Felizmente a maioria desses crimes foi revogada que criminalizavam a população em situação de rua, mas infelizmente não temos uma política pública efetiva”, disse Sotto Mayor.
O primeiro Código Penal da República foi promulgado em 11 de outubro de 1890 pelo Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do então Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil. No Capítulo XIII, proíbem-se vadios e (os praticantes de) capoeira. O Artigo 399 previa pena de 15 a 30 dias para quem não tivesse profissão ou meio de ganhar a vida “e domicilio certo em que habite”.
Reconhecimento
Além de atender mais de 500 pessoas, a Ronda DH promoveu uma redução do número de relatos de violações de direitos feitos aos defensores. “As violações não cessaram, mas tiveram uma queda de cerca de 60%. Ganhamos reconhecimento. A Defensoria Pública virou uma referência positiva para a população de rua”, afirmou a defensora pública Carla Beatriz Maia.
Segundo o defensor público Renan Vinícius Sotto Mayor, esse ganho institucional demandou muitas caminhadas madrugada adentro, no Centro do Rio, pelas ruas da Lapa, da Glória e alguns bairros da Zona Norte. “Quando a pessoa vê um defensor, um servidor público na rua a uma hora da manhã, conversando com as pessoas em situação de rua, conversando com as autoridades, tentando fazer uma mediação de conflito, você ganha a confiança deles porque a população em situação de rua está já tão vulnerabilizada pela maior parte das agências do Estado, mas também pela sociedade, que não olha para essas pessoas ou as olham com desprezo”, disse Sotto Mayor.
Prêmio Innovare
O Prêmio Innovare é uma realização do Instituto Innovare, do Ministério da Justiça, da Associação de Magistrados Brasileiros, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Associação Nacional dos Procuradores da República e da Associação Nacional dos magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), com o apoio do Grupo Globo.
Participam da Comissão Julgadora do Innovare ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, desembargadores, promotores, juízes, defensores públicos, advogados e outros profissionais de destaque interessados em contribuir para o aprimoramento do Poder Judiciário.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias. 14.01.2019.
Agência CNJ de Notícias. 14.01.2019.
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