A figura do “promotor privado”, em oposição a promotor público, ainda existe em alguns poucos estados dos Estados Unidos, mas ele opera em um sistema judicial que está sob suspeita: o da “corte secreta”. É chamado de “promotor privado” o cidadão que processa criminalmente outro cidadão, sem interferência da polícia ou do Ministério Público.
A corte secreta é presidida por um servidor do Judiciário, que não é juiz, nem juiz auxiliar e, muitas vezes, nem mesmo bacharel em Direito. É uma espécie de “julgador”, que recebe as denúncias, ouve as partes e toma uma decisão. Excluem-se os casos que podem resultar em pena de prisão. Normalmente, os casos terminam em acordos entre as partes ou o julgador encaminha o caso para um fórum criminal.
Massachusetts é o estado dos EUA onde as cortes secretas são mais questionadas. Em outros estados, um promotor público pode interferir no caso. Ele pode avaliar o processo, pode assumi-lo ou pode trancá-lo (variando de um estado para outro). Em Massachusetts, o processo é um problema do acusador, do acusado e do julgador.
Isso tem dado margem a uma distorção do que seria um sistema útil para a Justiça, por economizar recursos dos fóruns criminais, como tempo dos juízes e funcionários, custos do processo, etc. Muitos acusados — e alguns advogados — recorrem às cortes secretas para conturbar uma ação criminal movida em um fórum criminal. Ou até mesmo para impedir que uma ação seja movida.
Explicando, quando uma vítima de agressão, por exemplo, move uma ação criminal contra um agressor, o agressor move um processo contra a vítima em um tribunal secreto, alegando que ele é quem foi agredido.
O tribunal secreto não tem transparência. Funciona em uma sala fechada, sem acompanhamento público e sem gravações ou transcrições do que se fala em uma audiência.
Nesse tipo de julgamento, a parte com mais capacidade de convencer o “julgador” pode se sair bem, mesmo que culpada. Segundo o jornal The Boston Globe, que produziu um relatório sobre as cortes secretas, autoridades públicas e empresários proeminentes têm escapado de ações criminais, mesmo quando há provas substanciais contra eles.
Segundo o relatório, milhares de processos criminais “morrem” nas cortes secretas, todos os anos, muitas vezes porque as vítimas desistem da ação criminal que moveram contra os acusados nos fóruns criminais. Em outras palavras, acusados usam o sistema para chantagear — ou intimidar — suas vítimas.
Só nos últimos dois anos, os “julgadores” trancaram cerca de 62 mil casos. Desses, cerca de 18 mil continham causas prováveis e provas suficientes para justificar acusações em um fórum criminal, segundo o relatório.
O The Boston Globe cita exemplos de ações movidas em cortes secretas por agressores contra suas vítimas. Em um deles, um policial aposentado agrediu uma mulher, na estrada, deixando-a com um olho roxo e uma fratura facial. Chamada, a polícia examinou um vídeo de segurança e denunciou o policial aposentado por agredir a mulher e trocar socos com o filho dela de 15 anos, que tentava defender a mãe.
Mas, quando ela pensou que o assunto estava encerrado, recebeu a notícia, por seu advogado, que o policial aposentado havia movido uma ação criminal contra ela em uma corte secreta. Ele alegou que foi agredido pela mãe e pelo filho, levando de 2 a 5 socos. O “julgador” aceitou as acusações contra o policial, mas também aceitou as acusações contra a mãe. E encaminhou a denúncia contra o filho para um “tribunal juvenil”.
Enfim, o policial utilizou o sistema para tentar virar a mesa — isto é, intimidar a mulher, para ela desistir da ação contra ele. O caso ainda não está resolvido.
Mas, em outro caso, a mulher desistiu de uma ação contra o ex-marido, também por agressão. Quando ela deixou os filhos na casa do ex-marido, eles tiveram uma discussão e ele a teria empurrado do topo da escada de três degraus, na entrada da casa. Ela teria batido o rosto no chão e sofrido escoriações.
Assim, os policiais que compareceram ao local acreditaram que ela foi agredida e prenderam o ex-marido, que foi denunciado em um fórum criminal. Semanas mais tarde, o ex-marido moveu uma ação criminal contra ela em uma corte secreta. Ele alegou que a ex-mulher agrediu a ele e a sua namorada — alegações que não constaram da ocorrência policial. Disse que ele pegou a ex-mulher pelo braço, para forçá-la a sair da casa e que os dois caíram na escada.
A mulher, porém, ficou tão preocupada com a possibilidade de ter antecedentes criminais, perder o emprego e não conseguir outro, que achou melhor encerrar o assunto, retirando a queixa contra o ex-marido, com a condição de que ele retirasse a queixa contra ela na corte secreta.
Perguntado pelo jornal, o ex-marido respondeu, por e-mail, que retirou as acusações contra a ex-mulher porque, afinal de contas, ela é a mãe dos filhos dele. E que ela deve ter retirado as acusações contra ele pela mesma razão.
Um advogado que já usou esse recurso disse ao jornal que recorrer a uma corte secreta é uma estratégia válida de contra-ataque. Em muitos casos, resulta em uma espécie de “virada de mesa” a favor do cliente.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 24 de dezembro de 2018.
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