A reforma do sistema de Justiça criminal dos Estados Unidos, aprovada pelo Senado na noite desta terça-feira (18/12), não foi ambiciosa nem uma grande conquista do governo Trump, como se chegou a noticiar. Foi apenas o que o nome da lei que a viabilizou diz: “Lei do Primeiro Passo” (First Step Act).
Isso significa, obviamente, que outros passos importantes terão de ser dados no futuro para se chegar à reforma da Justiça criminal que vem sendo preconizada há tempos. Em outras palavras, foi o que foi possível aprovar, para que senadores republicanos e democratas pudessem chegar a um consenso. E, finalmente, aprovar a lei por 82 votos a 12.
Em termos de amplitude, a lei só vai beneficiar parte dos condenados pela Justiça Federal — ou que cometeram crimes especificados em leis federais. Não inclui os condenados pela Justiça dos estados. A população das prisões federais dos EUA é de cerca de 181 mil prisioneiros.
Em comparação, a população carcerária total dos EUA é de cerca de 2,2 milhões de prisioneiros. Isto é, os prisioneiros “federais” representam aproximadamente 0,08% da população carcerária do país. E parte dessa população — o que significa milhares de presos de qualquer forma — será beneficiada. E, daqui para a frente, os condenados pegarão penas menores do que o de costume.
Em termos de realização política, no entanto, a aprovação da reforma da Justiça criminal, para amenizá-la, foi um fato significativo. Mudou radicalmente a postura do Partido Republicano. Os políticos republicanos sempre brandiram duas bandeiras fortes, que agradavam sua base conservadora: o Partido republicano é linha-dura contra o crime (tough on crime) e é o partido da lei e da ordem (law & order).
O presidente Donald Trump, que brandiu repetidamente essas bandeiras na campanha eleitoral de 2016 e que foi contra a lei de reforma da Justiça criminal até recentemente, deu o tom da nova postura republicana: “Precisamos corrigir o que está errado no sistema de Justiça criminal”. De qualquer forma, os republicanos terão de explicar bem essa ideia a seu eleitorado mais conservador nas eleições de 2020.
É claro que, por trás das boas intenções dos parlamentares, há razões menos nobres. Entre elas, a conclusão do Legislativo e do Executivo de que o custo dos prisioneiros se tornou insustentável e que é necessário esvaziar as prisões para salvar os cofres públicos.
Crimes federais
São crimes federais, por exemplo, tráfico e consumo de drogas, sonegação/evasão fiscal, sequestro [de pessoas], sequestro de avião, roubo de carro ocupado com violência, roubo de bancos, espionagem, terrorismo (federal), pornografia infantil, fraudes de cartão de crédito, fraude postal, fraude eleitoral, roubo de identidade, corrupção, chantagem e extorsão em nível federal, crimes de computação, falsificação, delitos de imigração e crimes de ódio “federais”.
Todos os demais crimes, delitos, contravenções são julgados pela Justiça dos estados, dos condados ou dos municípios. Homicídios, por exemplo, são especificados e qualificados em leis estaduais — a não ser pelo assassinato ou tentativa de assassinato do presidente e do vice-presidente do país, que são crimes federais.
Também são crimes não federais, entre outros, assalto, agressão e agressão qualificada, furto, roubo e roubo à mão armada, violação de domicílio e de propriedade, violência doméstica, posse e porte ilegal de armas. Os estados também podem julgar, em “nível de estado”, crimes que parecem federais como tráfico de drogas, terrorismo, tortura, crimes de guerra e genocídio. Os crimes estaduais colocaram mais de 2 milhões na prisão.
Principais mudanças
A “reforma” mais importante no sistema de Justiça criminal é a eliminação de sentenças mínimas obrigatórias, em diversos tipos de condenação. Os juízes reclamavam constantemente de serem obrigados a aplicar, por exemplo, sentenças mínimas de 20 anos, para casos em que um ano ou dois seriam mais apropriado. Agora, eles terão livre arbítrios, em muitos casos, para aplicar a sentença que acham correta. Não terão mais de lamentar o que chamam de “condenações ultrajantes”.
Outra mudança significativa, derivada da reforma, será a amenização das sentenças chamadas de “Three strikes, you’re out”, uma expressão emprestada do beisebol, que significa, para efeitos judiciais, que quem comete três crimes, mesmo que de pequena monta, será retirado da sociedade para sempre — ou seja, será condenado à prisão perpétua.
Agora, a condenação será de 25 anos. Assim, a lei não acaba com esse tipo de condenação. A lei ainda mantém relações com a linha-dura. Uma pessoa pode, por exemplo, ser condenada a 25 anos de prisão depois de ser presa pela terceira vez, pela Justiça Federal, por posse e consumo de maconha — embora o consumo de maconha já seja legal em vários estados.
A lei pretende ainda acabar com a disparidade na condenação por posse de cocaína em pó e de crack. Em comparação, as penas são mais duras para os consumidores de crack, que é mais popular entre a população negra e os pobres. Na outra ponta, o consumo de cocaína em pó, mais popular entre a população branca e rica, tem penas mais brandas. A lei é retroativa e deverá beneficiar cerca de 2 mil prisioneiros.
A nova lei também aumenta os “créditos por bom comportamento”. Hoje, presos que não cometem infrações disciplinares recebem um crédito de 47 dias por ano de encarceramento. Timidamente, a lei aumenta o benefício para 54 dias — uma modesta semana a mais por ano.
Os prisioneiros também poderão ganhar “créditos por bom comportamento” por participar de programas vocacionais ou de reabilitação. Nesse caso, depois de cumprir determinados anos de prisão, eles podem ser transferidos para um centro de reabilitação ou ter a pena comutada para prisão domiciliar. A intenção é prepará-los para o mercado de trabalho e, possivelmente, evitar reincidências no crime. Pesquisas têm confirmado que isso funciona.
Nem todos os prisioneiros poderão ser beneficiados pelos “créditos”. Um sistema de algoritmos irá determinar quem oferece mais riscos (e deve permanecer na prisão) e quem oferece menos. O algoritmo, na verdade, se baseia em antecedentes criminais. Por isso, o sistema já é duramente criticado. Ele ignora o fato de que pessoas negras e pobres são mais condenadas à prisão do que brancas e ricas. E são as que mais vão para a cadeia, apesar de inocentes. Imigrantes ilegais também não terão direito a “créditos” — ou seja, são comparados a criminosos perigosos.
A lei também tenta modificar algumas condições de encarceramento. Por exemplo, será proibido algemar uma mulher durante um parto. E os presos deverão, tanto quanto possível, ficar mais perto de suas famílias.
A reforma da Justiça criminal aprovada pelo Senado ainda tem de ser ratificada pela Câmara dos Deputados, o que deve acontecer em breve. A Câmara já havia aprovado uma versão da reforma, mas o projeto foi modificado no Senado. O presidente Donald Trump já anunciou que vai sancionar a lei.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 20 de dezembro de 2018.
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