terça-feira, 29 de maio de 2018

Criação de sistema único da Segurança Pública deixa dúvidas sobre execução

Para especialistas, ideia só funcionará com fiscalização e melhor relacionamento entre polícias


Com o objetivo de unificar as polícias e os sistemas de segurança do país, o projeto que cria o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) é considerado um avanço por especialistas, mas deve apresentar dificuldades de execução.
Congresso Nacional aprovou em abril a proposta que tem como objetivo criar sistemas de compartilhamento de informação entre as forças policiais e entre os estados, e a criação de um banco de dados nacional sobre o crime, nos mesmos moldes do Datasus (do Sistema Único de Saúde). 
A coordenação fica a cargo do Ministério da Segurança Pública, criado por Michel Temer neste ano e hoje comandado por Raul Jungmann. 

De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, a integração dos sistemas é um avanço para as políticas de segurança no país. Eles apontam, porém, que há incerteza sobre a eficácia do texto aprovado no Congresso e sobre a sua implementação. 
"Eu sou muito a favor de termos um sistema único porque nós precisamos de coordenação entre os estados, nenhum vai conseguir resolver sozinho", afirma a professora da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Alba Zaluar. A antropóloga diz, porém, que em segurança pública "não tem milagre" e que é preciso assegurar que haja continuidade e fiscalização para que o sistema funcione. 
Já o coronel Ibis Pereira, ex-comandante interino da Polícia Militar do Rio de Janeiro, afirma que, se o projeto é positivo porque "dá a oportunidade de se criar um sistema", a qualidade da proposta criada fica aquém da desejada. Ele diz que seria preciso um debate mais amplo com a sociedade e as entidades policiais para que o modelo funcione de maneira eficaz.
"Eu não tenho dúvida de que se conseguirmos criar esse sistema, vai melhorar", afirmou. "Mas parece que perdemos a oportunidade de fazer um texto mais avançado, com diálogo com a sociedade."
Ele criticou o fato de o texto ter sido aprovado em um ano eleitoral e disse que é preciso ouvir as entidades policiais para superar as dificuldades de relacionamento entre as diferentes polícias e órgãos da segurança. "O que a gente espera de um sistema é que ele tenha mecanismos para que as medidas não estejam subordinadas à vontade dos gestores", afirmou.
O texto espera sanção do presidente Michel Temer. Pelo projeto, serão criados conselhos de segurança nas três esferas de poder (municipal, estadual e federal) que englobarão as polícias, os bombeiros, os guardas municipais e os agentes de trânsito. De acordo com o relator do projeto na Câmara, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF), eles funcionarão como "braço estendido" da Segurança Pública, de caráter consultivo, e serão formados também por membros do Ministério Público e do Judiciário. 
De acordo com a proposta, também será parte das atribuições da pasta cuidar do Sinesp, sistema que reunisse dados de crimes de todo o país, e do Plano Nacional de Segurança Pública (com validade de dez anos). Os órgãos estaduais serão responsáveis pelo envio de dados de ocorrências policiais, tráfico de drogas, perfis genéticos e digitais, rastreamento de armas e execução penal, entre outros.
Os órgãos estaduais que não fornecerem as informações de ocorrências policiais serão punidos, tendo dificultado o acesso a recursos federais. 
O texto tramita no Congresso desde 2012, quando foi apresentado pelo Executivo durante o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT). 
O projeto circulou por anos em comissões da Casa, sem particular urgência, e chegou a ficar quase um ano parado após passar pela Comissão de Finanças e Tributação. 
Ressuscitou apenas no início de 2018, após ter sido decretada a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro
A criação de uma proposta que integrasse os 27 estados foi discutida pelos presidentes das duas Casas Legislativas, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Eunício Oliveira (MDB-CE), com a presença dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, em reunião em fevereiro. 
O encontro não contou com integrantes do Executivo. Ele aconteceu no mesmo dia em que o governo do presidente Michel Temer criava a pasta da Segurança Pública.
O ressurgimento do Sistema Único de Segurança Pública se deu em meio a uma disputa política pelo protagonismo da pauta da segurança —eixo principal da pré-campanha presidencial de Maia, que havia ficado irritado com o decreto de intervenção.
Outro ponto polêmico é a própria coordenação do projeto pelo Ministério da Segurança Pública. 
Isso porque a pasta foi criada em caráter excepcional, e a medida provisória que a instituiu sequer foi votada pelo Congresso. 
O deputado Alberto Fraga (DEM), relator do texto, afirma que a bancada trabalhará para tornar permanente o ministério, que, segundo ele, é "mais importante do que muitos outros". Ele também afirma que o financiamento para a implementação dos conselhos e a criação do sistema de dados sairá do orçamento ministerial.
A escolha de Fraga como relator é uma das polêmicas do projeto e recebeu críticas da oposição. Para o líder do PSOL, Ivan Valente (SP), a decisão de nomear o presidente da "bancada da bala" mostra "que tipo de projeto é". 
Segundo ele, a proposta aprovada às pressas é "inócua" e ignora medidas de Justiça restaurativa.
A cassação de Fraga foi pedida pelo PSOL, após o deputado atacar, com informações falsas, a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em março no Rio.

Seminário debate nesta quarta-feira descriminalização do aborto

Três comissões da Câmara e do Senado organizam o evento que reúne especialistas para falar sobre ação do Psol que pede a revisão pelo Supremo Tribunal Federal da criminalização do aborto
As comissões de Seguridade Social e Família, de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara, em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, promovem seminário nesta quarta-feira (30) para discutir ação em que o Psol pede que o Supremo Tribunal Federal (STF) reavalie a criminalização do aborto no Brasil.
O partido alega que a Constituição Federal garante a liberdade de consciência e crença e pede que o STF declare ilegal a criminalização do aborto previsto no código penal.
Autor do requerimento para o seminário, o deputado Diego Garcia (Pode-PR), defende que a descriminalização da conduta, se for o caso, deverá ocorrer por intermédio do Poder Legislativo.
Outro deputado a subscrever o requerimento, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) considera importante retomar o debate no Congresso Nacional. “Na Casa onde o povo brasileiro tem seus representantes”, disse.
Foram convidados para participar do seminário pública autoridades, advogados, professores, e representantes religiosos.
O seminário será nesta quarta-feira (30) a partir das 9 horas no Auditório Nereu Ramos, com transmissão interativa pelo e-Democracia. Confira a programação completa.

India estudia penalizar la mutilación genital femenina

La ablación está extendida entre los musulmanes Bohra. Miembros de esta comunidad viajan a India para someter a sus hijas a esta práctica


Mujeres Bohra junto al mausoleo Raudat Tahera.
Mujeres Bohra junto al mausoleo Raudat Tahera. ÁNGEL L. MARTÍNEZ CANTERA
“Mi madre me llevó ante una anciana desconocida que me hizo el corte. Aquel dolor me hizo llorar durante horas”, recuerda Aarefa Johari, de 31 años. A los siete años, como es costumbre entre musulmanes bohra, Aarefa fue sometida a la mutilación genital en los aledaños a Bhendi Bazaar, barrio al sur del viejo Bombay con elevada presencia de esta comunidad. “Años después me enfrenté a mi madre. ¿Pero cómo culparla de una tradición patriarcal enraizada en la fe de generaciones?”, justifica Aarefa sobre una práctica atávica tan presente entre los bohra al punto que algunos miembros que viven en el extranjero viajan a Indiapara someter a sus hijas al sangrante ritual. Supervivientes como ella de este procedimiento, considerado internacionalmente una grave violación de los derechos humanos, llevan años exigiendo una ley que lo criminalice. Una plegaria de la que estudia hacerse eco el Gobierno indio. 
Ante la última petición formal para penalizar la mutilación genital femenina en India, el fiscal general del Estado respondió el pasado 20 de abril que esta práctica “es un crimen castigado con siete años de cárcel bajo la legalidad existente”, al poder considerarse un delito que produce daño o daño grave aunque no exista una normativa que lo castigue textualmente. Por ello, K. K. Venugopal pidió al Tribunal Supremo que "interviniese y estableciese las directrices" necesarias hasta la aprobación de una ley específica contra la ablación. La Corte Suprema, que tiene hasta el 6 de julio para pronunciarse en este asunto, envió entonces un aviso a los Estados indios con presencia de esta comunidad.
“Solo los musulmanes bohra realizan esta práctica. No tiene base en el islam. Sino en tradiciones tribales patriarcales de África”, aclara Zeenat Shaukat Ali, expertaen Estudios Islámicos de la Universidad de Saint Xavier de Bombay. Con orígenes en Yemen, esta secta chií es una minoría dentro de los indios musulmanes —un 14,2% del total de 1.300 millones de indios, según el último censo—. Sin embargo, India acoge alrededor de un millón de ellos de los 1,5 millones repartidos por el mundo. Además, Bombay es sede de la administración y liderazgo religioso de esta comunidad a nivel internacional. 
Hasta ahora, el Gobierno indio había negado que la mutilacion genital femenina se practicase dentro de su territorio. A finales del año pasado, en respuesta a una petición al Supremo, la Ministra de Desarrollo de la Mujer y la Infancia declaróque “no existían datos oficiales o estudios que respaldasen la existencia de mutilación genital femenina en India”. Una justificación sin sentido, según Aarefa Johari: “Las cifras oficiales se obtienen de las denuncias registradas en comisaría. Si no hay una ley que penalice la práctica, ¿cómo va alguien a interponer una querella para un crimen que no existe?”.
La ablación ha sido ampliamente documentada en el mundo, donde unas 200 millones de niñas han sufrido la mutilación genital femenina en alguna de sus formas, según UNICEF. Y eso, pese a que en muchos de ellos está específicamente prohibido por ley. En India es una práctica secreta, que ni cuenta con datos oficiales acerca de la prevalencia de este ritual ni tiene una ley explícita que criminalice su práctica, a diferencia de otros países donde está presente la diáspora bohra. 
A principios de año, una coalición de mujeres bohra contraria a la ablación financió el primer estudio sobre mutilación genital femenina en India. Realizada por investigadoras independientes, la encuesta confirmó la prevalencia de esta práctica entre los miembros de esta comunidad en cinco Estados del país. El 75% de las entrevistadas pertenecientes a este grupo, 84 mujeres y 11 hombres, admitieron haber sido víctimas o haber sometido a sus hijas al khafd ó khatna —términos árabes para describir la ablación—.
“Todas sufren algún tipo de molestia en la zona. No hay posibilidad de cortar parcialmente el clítoris”, sentencia el doctor Sujaat Jenuddin Vali, ginecólogo obstetra que examinó a las mujeres durante el curso de la investigación. Sus análisis corroboran que todas esas musulmanas bohra habían sido víctimas de mutilación genital femenina de tipo 1, que supone la eliminación parcial o total del clítoris, según establece la clasificación de la Organización Mundial de la Salud (OMS). Desde Bombay, el doctor Sujaat además confirma que la ablación no solo es practicada por las mullanis (cortadoras tradicionales), sino por profesionales médicos en algunos hospitales de la ciudad.
“La pruebas son contundentes y el Gobierno de India debe aprobar una ley que criminalice esta práctica. Este estudio también es muy importante desde el punto de vista educativo e informativo para nuestra comunidad”, señala Masooma Ranalvi, líder de #WeSpeakOut, el grupo que patrocinó la investigación. Primera plataforma de supervivientes de la ablación en India, el colectivo conciencia en favor de la erradicación de esta práctica en su comunidad, y es uno de los que solicitaron su criminalización al Supremo. 
El movimiento contra la mutilación genital femenina adquirió relieve internacional en 2015 a raíz de la condena de tres fieles bohra acusados de practicarla en Australia. Entonces, diferentes congregaciones de países en los que existen leyes específicas contra el procedimiento, incluyendo Estados Unidos y Reino Unido, enviaron notificaciones a sus feligreses para que lo detuviesen. No ha sido así en India, donde el líder espiritual de esta comunidad, syedna, desde la mezquita de Bhendi Bazaar en Bombay, alienta a que continúen practicando “la circuncisión masculina y femenina” como “obligación” para obtener “pureza religiosa”. 
Ante los mensajes contradictorios desde diferentes púlpitos, algunas familias Bohra de la diáspora optan por viajar a India, aprovechando la laguna legal, para continuar con la tradición. El pasado marzo, un juez de Manchester (Reino Unido) prohibió a una mujer de origen indio viajar con su hija al país asiático ante la posibilidad de que la menor fuese mutilada
A la espera de que el Gobierno tome cartas en el asunto, activistas bohra como Aarefa creen que las arengas de su líder son un delito en sí mismo: “Los comentarios del syedna crean confusión entre nuestra comunidad. Sus palabras son una incitación a que se perpetúe la mutilación genital femenina en India”. La joven periodista ha fundado Sahiyo, un foro digital para que las supervivientes compartan sus historias y se intente sensibilizar a aquellas madres que siguen apoyando esta práctica inhumana.  

LIBERTAD INDIVIDUAL VERSUS LIBERTAD DE CULTO

Algunas mujeres bohra de India crearon el año pasado un colectivo para defender “su derecho a practicar el khafd” frente a lo que consideran un ataque a sus tradiciones religiosas y culturales. La Asociación de Mujeres Dawoodi bohra por la Libertad Religiosa (DBWRF), que dice “representar a decenas de miles” de personas, se une así al debate que tiene lugar en Michigan (EE UU); uno de los 25 Estados que penaliza la mutilación genital femenina. Allí, el primer caso federalcontra varios adultos de la comunidad bohra involucrados en la ablación a dos niñas ha suscitado la discusión entre protectores de menores y defensores de la libertad religiosa.
Para Irfan A. Engineer, sin embargo, no hay polémica. “Ningún texto sagrado, particularmente el Corán, menciona el khafd”, explica el vicepresidente de la Junta Central de la Comunidad Dawoodi Bohra, una sección reformista de más de 50.000 miembros opuestos al autoritarismo del líder religioso. Aunque esta facción no se ha pronunciado públicamente sobre la ablación, Irfan es contundente: “La idea detrás de esta práctica es controlar el cuerpo de la mujer. Los hombres debemos apoyarlas en esta causa”.
Además de las plataformas de apoyo a supervivientes y de las campañas públicas para la erradicación de la ablación, también hay mujeres bohra que se niegan secretamente a perpetuar la mutilación genital femenina. Bajo el nombre #NotToMyDaughter, madres indias de esta comunidad protegen a sus hijas ante la tradición mientras dicen públicamente preservar el ritual; confirmando así el lastre de la cultura del miedo.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida

Jean Bosco Kakozi é professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Marco Weissheimer
 Em suas Lições sobre a Filosofia da História, Hegel diz que a África não tem interesse histórico próprio e é um local em que os homens “vivem na barbárie e na selvageria, sem se ministrar nenhum ingrediente da civilização”. A África, para Hegel, não é um lugar habitado pela História nem pela Razão (“os africanos são crianças eternas, envoltos na negrura da noite sem a luz da história consciente”, diz ainda). Tratada hoje como um preconceito datado e anacrônico, a visão hegeliana sobre a relação do continente africano com a razão permanece viva na prática filosófica do presente, avalia o professor de Filosofia Jean Bosco Kakozi, natural da República do Congo, que esteve em Porto Alegre nesta última semana para fazer uma conferência na 6a Semana da África na UFRGS.
Doutor em Filosofia e Ciências Humanas, Kakozi tem pós-doutorado em Direito (na área de direitos humanos) pela Unisinos e atualmente é professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu. Além disso, é um pesquisador da filosofia africana (Ubuntu) e latino-americana, da escravidão africana, movimentos sociais afrodescendentes, racismo e exclusão social, e relações inter-étnicas entre indígenas e afrodescendentes da América Latina e Caribe. O tema de sua conferencia na UFRGS foi “Ubuntu e Ukama: uma cosmovisão africana de inclusão e interdependência vital”.
Em entrevista ao Sul21, Jean Bosco Kakozi falou sobre os conceitos de Ubuntu e Ukama, fundadores de uma filosofia africana que, ao contrário do antropocentrismo que marca a tradição ocidental, caminha na direção de uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida, respeitando todos os seres vivos, humanos e não humanos e tratando os ancestrais como elo de ligação entre os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. Lembrando a passagem de Hegel, ele fala por que o problema da Filosofia na África é o problema da luta pela razão, uma luta que se aplica também aos povos indígenas e outros povos excluídos pela civilização ocidental moderna na África, na América Latina e na Ásia.
“A filosofia ocidental excluiu muitos povos do mundo do uso desse atributo eminentemente humano que é a razão”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21O que é a filosofia africana hoje e qual sua relação com a tradição da filosofia ocidental?
Jean Bosco Kakozi: O filósofo sul-africano Mogobe Ramose publicou, em 1999, um pequeno livro para falar sobre a filosofia africana a partir da noção de ubuntu. Em um dos capítulos desse livro, ele diz que o problema da Filosofia na África é o problema da luta pela razão. Por que ele fala de luta pela razão? A filosofia ocidental excluiu muitos povos do mundo do uso desse atributo eminentemente humano que é a razão. Foram excluídos povos indígenas, africanos e asiáticos. Hegel, na Fenomenologia do Espírito ou nas Lições sobre a Filosofia da História, diz que a África é uma região que não é de muito interesse para a humanidade pois é uma região que está fora da História. A luz da razão ou o espírito da História, como ele diz, nasceu no Oriente, na Ásia, e foi caminhando para o Oeste, na direção da Europa, sem passar pela África. O Egito, para ele, não teria nada a ver com a África, sendo uma espécie de preâmbulo da Europa. A História, diz ainda Hegel, é racional. São seres racionais que fazem a História. Então, aqueles que não usam a razão não estão na História.
Mogobe Ramose diz que a Filosofia na África tem uma tarefa e uma responsabilidade muito importante que é lutar pela razão. A Filosofia, assinala, deve começar também por esse problema, dizendo que a razão está presente na África e que as pessoas usam a razão. Todo o ser humano usa a razão. Ramose fala desse desafio e de sua relação com o ubuntu.
Sul21: O que é o ubuntu, exatamente? É uma corrente de pensamento, um conceito?
Jean Bosco Kakozi: É mais do que isso. Para Ramose e outros filósofos e pensadores africanos, ele é a base da filosofia africana, compreendendo uma ontologia, uma ética e uma epistemologia. Desmond Tutu, outro pensador africano, que hoje é arcebispo emérito, diz que o ubuntu é a cosmovisão africana, algo mais abrangente que a filosofia, envolvendo também elementos de antropologia, sociologia, política e economia. É uma forma de enxergar o mundo, algo equivalente ao weltanschauung alemão. Nós vemos o mundo hoje a partir de uma cosmovisão ocidental. Essa é uma forma de conhecer, pensar e enxergar o mundo. A ela está associada uma maneira de fazer as coisas. Se mudarmos essa cosmovisão, essa maneira de pensar, sentir e conhecer o mundo, a maneira de trabalhar, de pesquisar e de conhecer também mudará.
O ubuntu está baseado na ideia de humanidade. É um termo que se encontra em várias línguas banto. Trata-se de duas palavras em uma, a saber: “ubu” e “ntu”. A primeira está associada a uma ontologia, aos fundamentos da realidade, e a segunda a uma epistemologia, à possibilidade de conhecer tudo o que existe. Em uma primeira acepção, portanto, o ubuntu é uma ontologia e uma epistemologia, expressando o conjunto da realidade e de como podemos conhecê-la. Mas ele também significa a pessoa tomada em abstrato. A palavra “bantu” significa pessoa, mas quando queremos falar da pessoa de modo abstrato, usamos “ubuntu”, que nos leva a pensar a noção de humanidade, como conjunto das pessoas. Então, a primeira acepção de ubuntu é o conjunto da realidade, de tudo o que existe e que pode ser conhecido, enquanto a segunda é o conjunto das pessoas, a humanidade. E os humanos vivem sempre relacionados com outras entidades cósmicas não humanas.
Nós temos essa acepção também nas línguas europeias e greco-latinas. Nestas línguas também se fala da humanidade como um valor e não só como o conjunto dos humanos. Nós falamos que fulano é humano, tem humanidade. Isso quer dizer que fulano, Francisco ou Pedro, é uma pessoa que tem valores, é compassivo, empático e solidário com as pessoas, com o próximo.
Sul21Qual é a origem temporal dessa cosmovisão africana? É possível datá-la no tempo?
“A maioria dos egípcios antigos era composta por negros. O eurocentrismo sempre quer branquear o Egito”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 Jean Bosco Kakozi: Essa é uma pergunta interessante. O ubuntu como um fenômeno político e acadêmico é recente, mas como uma vivência das comunidades africanas ela existe desde sempre. Eu tenho interesse em pesquisar isso. Essa linha de tempo chega até os egípcios. Agora, há uma corrente de pesquisa que está estudando a influência dos egípcios antigos na África negra. A hipótese que está sendo pesquisada é que as línguas e culturas da África subsaariana têm a ver com o Egito antigo. A maioria dos egípcios antigos era composta por negros. O eurocentrismo sempre quer branquear o Egito. Isso é uma mentira. Eu acredito que é possível rastrear alguns elementos de vivência do ubuntu até o Egito antigo. Se partirmos da hipótese de que as culturas e línguas africanas subsaarianas estão relacionadas ao Egito antigo, não seria uma loucura fazer estabelecer essa relação.
Sul21: E, enquanto fenômeno político, está ligado à luta anticolonialista na África?
Jean Bosco Kakozi: Sim. Em 1948, o National Party, partido da extrema-direita branca racista, ganhou a eleição na África do Sul. Quando esse partido chega ao poder, começa a decretar leis segregacionistas. Já havia essa segregação antes, desde a chegada dos primeiros colonizadores holandeses no século XVII e depois com os ingleses, no século XIX. Mas, em 1948, a segregação partiu do próprio Estado nas mais diferentes áreas: educação, moradia, transportes e assim por diante. Aí começaram também as respostas dos africanos contra essas leis. O ápice dos protestos contra as leis segregacionistas ocorre nos anos 70, quando ocorre o massacre de Soweto. Neste massacre, a polícia matou estudantes que estavam se manifestando contra uma lei que obrigava os africanos a fazer toda a educação, desde o ensino fundamental, na língua africâner.
No Zimbabwe, país vizinho da África do Sul, também ocorreram neste período vários movimentos de protesto que também recorreram a elementos do ubuntu para lutar contra a desumanização da colonização. Assim, pouco a pouco, o ubuntu vai sendo levado para a área política. O ápice desse processo ocorre nos anos 90, sobretudo em 1993, quando Mandela é libertado do presídio onde ficou 27 anos. Neste período, a palavra “ubuntu” entra pela primeira vez na história política da África do Sul em um texto muito relevante, que é a Constituição de transição que levará o país para as eleições em 1994. Ela entra no epílogo dessa Constituição de transição, onde se diz que, para lidar contra as mazelas da discriminação e da segregação, não havia lugar para vingança ou retaliação, mas sim para “ubuntu”, que devia prevalecer. No entanto, na Constituição de 1996, essa palavra desaparece.
A presença dessa palavra na Constituição de transição abre espaço para o seu uso na área política. Hoje ela é muito usada também na área acadêmica, na filosofia moral, ética, bioética, política, sociologia, biologia e física. É importante assinalar ainda que o ubuntu também foi levado para a Comissão da Verdade e Reconciliação, criada logo após Mandela assumir o governo. Ele defendeu que, para pensar uma África do Sul pós-apartheid, o novo governo deveria criar essa comissão. Desmond Tutu, que presidiu a comissão, escreveu um livro intitulado “No future without forgiveness” (Não há futuro sem perdão), onde ele mostra como o ubuntu ajudou no processo de reconciliação e de reparação nesta justiça transitória.
Sul21Como foi esse processo?
“Na África do Sul não foi feita uma justiça vingativa dos vencedores”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Jean Bosco Kakozi: Na África do Sul não foi feita uma justiça vingativa dos vencedores, porque não houve vencedor. Não foi feito algo como o Tribunal de Nurenberg, após o fim da Segunda Guerra, onde Estados Unidos, Inglaterra, França e seus aliados puniram os alemães. Eles castigaram os alemães e foram embora. Desmond Tutu falava: nós vamos castigá-los e ir embora pra onde? As vítimas e agressores terão que seguir convivendo no mesmo país. Por isso, defendeu, precisamos fazer uma justiça humanizante, uma justiça que humanize tanto as vítimas quanto os perpetradores de crimes. Ele falava aí, desde a perspectiva do ubuntu. A ideia é que, só alguém que se desumanizou, poderia cometer crimes e atrocidades como as que ocorreram no apartheid segregacionista. Somos uma nação de feridos, disse ele.
Houve uma anistia condicionada. Desmond Tutu falava de uma terceira via, com perdão, mas sem esquecimento. O perpetrador tinha que confessar seus crimes, pedir perdão para a comunidade e para a vítima. Era um momento de catarse nacional, que era transmitido ao vivo pela televisão pública. Algumas vítimas não queriam reparação e só pediam uma sepultura digna para a pessoa que tinham perdido. Só queriam saber onde tinha sido enterrada e que ganhasse uma sepultura digna. A ideia era ter uma reparação, mas também uma reconciliação. Muitos criticaram esse processo que não foi perfeito e teve problemas, é verdade. Há vítimas que seguem esperando a reparação material até hoje. Na Comissão também se falou que aqueles que haviam se apropriado de terras de nativos iriam devolver essas terras e haveria um processo de reforma agrária. Isso também ficou com uma tarefa pendente por parte do Estado sulafricano. A maioria das terras férteis seguiu nas mãos dos fazendeiros brancos.
Sul21: Quais seriam as principais diferenças entre essa cosmovisão africana e a cosmovisão ocidental? Qual o tamanho e a natureza dessas diferenças?
Jean Bosco Kakozi: Creio que há uma grande diferença na perspectiva de como tratar o outro, na visão de alteridade. A filosofia ocidental moderna está baseada na ideia do cogito, de Descartes. Eu penso, logo existo. O ego pensante é condição de possibilidade da existência de uma pessoa. Essa ideia do “eu” é chave na filosofia moderna ocidental. Toda a cultura ocidental pode ser entendida a partir dessa visão. A cosmovisão africana é diferente. Ela diz: eu sou porque pertenço (a uma comunidade). Desmond Tutu diz: eu sou porque somos. Há uma forte relação entre o nós e o eu. Há alguns pensadores mais categóricos que afirmam que, na cosmovisão africana, é o nós que prevalece. Isso não implica excluir o eu. Há algumas criticas que afirmam que essa visão representaria uma tirania da comunidade sobre o indivíduo, um coletivismo comunismo. Mas não é assim.
O “eu” encontra seus interesses dentro do “nós”. O “nós” significa vida em comunidade com a presença de vários “eu”. A vontade de uma só pessoa, porém, não deve prevalecer, mas sim a vontade da comunidade. Essa valorização da comunidade não aparece somente na África. Há um filósofo canadense, Charles Taylor, que também trabalha a questão do comunitarismo, de uma perspectiva ocidental. Os alemães também valorizam muito essa ideia de comunidade. O pensador senegalês Léopold Sédar Senghor disse que, embora a cultura ocidental considere o comunitarismo, o indivíduo acaba prevalecendo em relação ao “nós”. Na África, mesmo existindo também a ideia de indivíduo, o “nós” acaba prevalecendo. Aliás, nesta visão, o indivíduo que não cabe dentro de um “nós” representa a morte social. Se você não se considera pertencente a alguma comunidade, você não existe. A pobreza extrema não é ter dinheiro ou riquezas, mas sim não pertencer a nenhuma comunidade.
“Os filósofos profissionais das nossas academias são muito eurocêntricos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sul21Na tua experiência como professor de Filosofia, como é o contato com seus colegas que pesquisam e trabalham com a filosofia ocidental? Há um espaço de abertura e possibilidade de diálogo com a cosmovisão africana do ubuntu com a qual você trabalha?
Jean Bosco Kakozi: Na minha experiência, infelizmente ainda existe uma distância. Eu estudei em uma das universidades importantes da América Latina, a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), chamada de a máxima casa dos estudos. Mesmo sendo uma universidade importante, uma das melhores da América Latina, na Faculdade de Filosofia eles quase não trabalham com esses temas relacionados a outras cosmovisões. Eles acabam sendo trabalhados nas pós-graduações dos Estudos Latino-americanos ou, às vezes, na Antropologia. Os filósofos profissionais das nossas academias são muito eurocêntricos.
No México, existe um Instituto de Pesquisas Filosóficas, onde quase todo mundo segue a tradição da filosofia analítica, uma linha muito rígida que, de certo modo, quer fazer da filosofia quase uma ciência exata. Os pesquisadores desse instituto não trabalham com questões que são impostergáveis para a América Latina, como tratar de enxergar e pensar essa realidade a partir das cosmovisões que foram excluídas e marginalizadas. Mesmo assim, elas seguem existindo. O México possui uma comunidade muito rica de povos indígenas. Se os nossos filósofos enxergassem e conhecessem essas cosmovisões poderiam realizar pesquisas maravilhosas. Mas preferem seguir publicando sobre Hegel, Heidegger, Habermas, Deleuze e assim por diante. As cosmovisões africanas, caribenhas e indígenas, subalternizadas, não tem vez.
Sul21Aquela formulação de Hegel sobre onde a razão está presente e onde não está parece seguir bastante vida dentro da Filosofia…
Jean Bosco Kakozi: Sim, infelizmente. Se você apresentar um projeto de pesquisa sobre Kant, Heidegger, Habermas ou Rawls será muito bem recebido. Mas se você apresentar um projeto sobre um problema como a identidade da filosofia política na América Latina ou o problema da libertação da América Latina como um problema filosófico ouvirá que eles não são temas para a Filosofia e será encaminhado para a disciplina de Estudos Latino-americanos.
Sul21Você veio a Porto Alegre para fazer uma conferencia na 6a Semana da África na UFRGS sobre “Ubuntu e Ukama: uma cosmovisão africana de inclusão e interdependência vital”. Até aqui, você falou sobre o Ubuntu. O que é Ukama e como se relaciona com o Ubuntu?
“Temos uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
 Jean Bosco Kakozi: Ukama, um termo da língua xona (grupo de línguas africanas faladas nas províncias de Manica, Tete e Sofala de Moçambique, na metade norte do Zimbabwe e no leste da Zâmbia), é um conceito que vem do verbo “kama” que, em português, significa ordenhar, tirar o leite de uma vaca ou de uma cabra. Desse verbo saiu um substantivo que é “rama” e que significa uma pessoa que eu considero muito próxima. A ideia é que essa pessoa se alimentou do mesmo leite materno que eu. Há um vínculo afetivo muito forte aí. “Ukama” é a abstração de “kama” ou “rama” , expressando uma relação de irmandade, uma relação afetiva forte.
Ukama está conectado com Ubuntu, com a ideia de humanidade e de relação com os outros seres. Ukama traz para Ubuntu essa afetividade que é elevada também a outro patamar, que é a afetividade com a natureza. O “rama” nos liga com nossos ancestrais, que são muito importantes na cosmovisão africana. Nas religiões africanas, os ancestrais são uma figura central. Eles são a ligação entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos, sendo representados por totens não humanos. Pode ser um pássaro, uma árvore, são elementos da natureza. Nós também os consideramos como “rama”, como nossos irmãos que beberam o mesmo leite materno que nós.
Temos aí uma relação intrínseca entre Ubuntu e Ukama, que tem a ver com o que chamo de uma cosmovisão biocêntrica, que está sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida. O papel dos ancestrais é trabalhar com os vivos, ajudando-os a seguir vivos e estes, por sua vez, seguem lembrando deles e os celebrando, numa relação de solidariedade afetiva e anamnésica. Eles já se foram mas sempre são lembrados, o que implica uma prática permanente da memória. Nós trazemos a memória deles com a gente e essa memória é uma responsabilidade. Herdamos a vida deles, a terra, a língua, as tradições, a cultura, tudo. É uma memória afetiva que tem uma tarefa: nos tornar sólidos, fazer todo o possível para a nossa etnia, o nosso grupo, não desaparecer.

19/6 | Debate em SP - Drogas e Segurança Pública: é hora de descriminalizar?

Evento apoiado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

 
 
 
Perguntado se o encarceramento de consumidores de drogas prejudicaria a política de segurança, o ministro encarregado da pasta, Raul Jungmann, não hesitou em responder: "óbvio que atrapalha" (O Globo, 26/4/2018). Na mesma edição do jornal, na página oposta, o Ministro da Justiça, em longa entrevista, deu declarações em sentido contrário.
A descriminalização do consumo de maconha e suas consequências para a saúde e a segurança públicas dividem opiniões não apenas no governo, mas também na sociedade. Decisão a respeito pode vir a ser tomada em breve pelo STF, onde a matéria se encontra pendente de julgamento desde 2015.
Ao reunir especialistas com visões divergentes, a Fundação FHC quer contribuir para o debate público qualificado sobre uma questão que não apenas mobiliza corações e mentes dos mais engajados, mas também, e principalmente, mexe com a vida de milhões de pessoas Brasil afora.
 
 
  
 
 
• Evento gratuito, reservado
somente a convidados.

• Convite pessoal e intransferível.
• Lugares limitados: 
os convidados serão direcionados à sala com transmissão ao vivo se e quando não houver mais assentos no auditório.
 
Data: 19/06/2018
Horário: 10h às 12h*
 
Local: Fundação FHC 
Endereço: Rua Formosa, 367
6º andar, Centro 

Telefone: (11) 3359-5000
 
* 10h00 às 10h30:
Credenciamento e welcome coffee
 
 
FÁBIO BECHARA
Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, é professor de pós-graduação (humanidades e direito) na Universidade de São Paulo e direito político e econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Também leciona na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e no Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro do Ministério da Justiça. Doutor em Direito Processual Penal pela USP, é Global Fellow no Woodrow Wilson International Center for Scholars (Washington/EUA).
GORETE MARQUES
Socióloga e militante dos direitos humanos, é pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Formada em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH/USP), concluiu mestrado e doutorado na mesma universidade.
LEANDRO PIQUET
Economista e cientista político, é professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Politicas Públicas da USP. Membro do Conselho de Segurança Pública da Cidade de São Paulo, coordena a Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial, programa de extensão da USP apoiado pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Concluiu doutorado e pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
LUIZ GUILHERME PAIVA
Bacharel em Direito, é gestor público federal e Coordenador de Estudos e Projetos Legislativos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Foi Secretário Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça. Mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, é pesquisador associado do Centro de Política Internacional de Drogas da London School of Economics (LSE) e atuou como pesquisador visitante no Centro de Criminologia da Universidade de Oxford (Reino Unido).
 


Com brecha do Supremo, tribunais resistem a aplicar HC coletivo a mães presas

Falta de documentos, cuidado dos avós, periculosidade da ré e até a contratação de eficiente banca de advogados já fizeram tribunais rejeitarem prisões domiciliares a presas preventivas grávidas e mães de crianças de até 12 anos de idade, apesar do Habeas Corpus coletivo (HC 143.641) concedido pelo Supremo Tribunal Federal.
Em fevereiro, a corte mandou o Judiciário substituir a prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres nessas condições, inclusive para adolescentes, e estendeu a medida a presas que têm sob custódia pessoas com deficiência. Conforme o relator, ministro Ricardo Lewandowski, a ordem é válida para quem não cometeu crimes mediante violência ou grave ameaça, contra os próprios filhos, ou ainda em “situações excepcionalíssimas”.
É esta última ressalva do próprio STF, sem definição objetiva, que fundamentou várias negativas nos últimos meses. Em São Paulo, por exemplo, a 6ª Câmara de Direito Criminal rejeitou benefício a uma mãe acusada de desvio de verba pública da saúde municipal, por entender que a decisão do Supremo constitui “uma proteção principalmente às mulheres consideradas pobres e vulneráveis”. Esse não é o caso da paciente, diz o acórdão, pois ela está sendo representada por aguerrida e eficiente banca de advogados.
STF determinou prisão domiciliar a presas grávidas e mães de crianças até 12 anos, desde que não acusadas de crimes graves, e fez ressalva a casos excepcionais.
O mesmo colegiado negou a substituição da preventiva a uma mãe de criança de 11 anos e 1 mêspor entender que “a intenção da Suprema Corte é proteger a primeira infância, principalmente das crianças que nascem nos presídios, o que não é o caso da paciente, cujo filho é um pré-adolescente [...] sob os cuidados da sua avó”.
A 9ª Câmara considerou “de todo desaconselhável a proximidade de crianças com pessoa apontada como traficante”. Por unanimidade, os desembargadores rejeitaram Habeas Corpus a uma mulher flagrada em 2016, e ainda sem julgamento, com 852,4 gramas de maconha e uma porção de cocaína.
Ela tem filhas que completaram seis e oito anos. Para o colegiado, porém, não se demonstrou a imprescindibilidade de sua soltura para cuidar da prole, tarefa igualmente possível aos pais ou familiares (cuja inexistência sequer se cogitou ou, muito menos, comprovou-se), cabendo salientar ter a própria paciente provocado seu afastamento das crianças ao se envolver em crime equiparado a hediondo.
“Tem alguns casos, e não são poucos, em que há essa tentativa de criar dificuldades à aplicação do HC com justificativas difíceis de aceitar. Como se faz a prova da prescindibilidade da mãe? Como que se prova que um filho não precisa da mãe?”, indaga a defensora e assessora criminal Maíra Coraci Diniz, que coordena o núcleo da Defensoria Pública de São Paulo responsável por levantar e acompanhar casos sobre o tema.
“Estão dando um jeito de criar obstáculos. Em algumas decisões diz-se que seria um estímulo à criminalidade. A mulher nem foi condenada. É juízo de valor”, afirma.
A advogada Eloísa Machado, membro do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), grupo que atuou no HC coletivo, diz que chamam a atenção os “casos indeferidos irresponsavelmente”, principalmente os que envolvem mulheres enquadradas pelo artigo 33 do Código Penal. “Tráfico de drogas é a regra do sistema. Não pode ser considerado excepcionalíssimo”, afirma.
Ela aponta que a decisão do Supremo garantiu o cumprimento de dispositivos já fixados na legislação, por meio do Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/16).
Outras situações
Tribunais de Justiça de outros estados também aplicam explicações semelhantes. No Rio de Janeiro, a 1ª Câmara Criminal considerou melhor manter a prisão preventiva da paciente em benefício das próprias crianças, evitando-se que elas sejam colocadas em situação de risco.

Como ela foi flagrada com uma conhecida enquanto transportava 82,5 kg de maconha no porta-malas de um carro, em viagem para Mato Grosso do Sul, os desembargadores viram incompatibilidade entre o interesse da mãe em recolher-se em seu domicílio (do qual se ausentou por diversos dias, para transportar drogas) e o interesse público em zelar pela ordem pública.
No Ceará, a 2ª Câmara Criminal negou “a inserção do menor em ambiente nocivo ao seu desenvolvimento”, naquela que é a situação excepcionalíssima mais recorrente: tráfico supostamente praticado dentro de casa.
A substituição da preventiva no Paraná foi negada em um caso porque “não se pode afirmar que sua presença [da mãe] junto à filha de seis anos de idade se revele preponderante em relação à necessidade de resguardo da paz social”. 
A 8ª Câmara Criminal do TJ dRio Grande do Sulrejeitou HC a uma suspeita de estelionato, mãe de uma menina de 12 anos com deficiência, por indícios de que a mulher deixava a filha sozinha e havia parado de levá-la ao centro de assistência social do município.
Em Mato Grosso do Sul, a justificativa foi a falta de provas de que os filhos ocupem o mesmo imóvel da mãe. No Piauí, em Santa Catarina e em Sergipe, presas tiveram o pedido negado por serem acusadas de integrar organização criminosa. Há registros semelhantes também nos tribunais de Justiça de MG, ES, AC, AM, MT e PE.
Em meio aos pedidos negados pelas mais diversas situações excepcionalíssimas, o cumprimento do HC tem sido impulsionado por um parceiro primordial: as unidades prisionais.
Dados incertos
Não há informações claras sobre o número de mulheres impactadas ou beneficiadas pelo HC coletivo do Supremo. Em um universo de 10 mil mulheres passíveis de serem beneficiadas, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) havia recebido, até abril, notícia de 304 revogações de prisão preventiva.

O Depen afirmou à ConJur que cabe ao Judiciário informar dados consolidados. O STF respondeu, via assessoria de imprensa, que, segundo o gabinete do ministro Lewandowski, os tribunais não são obrigados a informar a corte sobre o cumprimento da decisão. 
Também não existem dados no Conselho Nacional de Justiça, oficiado pela decisão por sua atuação no âmbito do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas. O mesmo ocorre com a Defensoria Pública da União, que oficiou o CNJ e as defensorias dos estados, mas até maio permanecia sem levantamento consolidado. 
São Paulo contou com levantamento em duas frentes, porém com informação não consolidada e divergente. Segundo o coletivo CADHu, dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) indicam que, no final de abril, 3.302 pedidos de substituição da preventiva haviam sido feitos, com 1.739 ainda não apreciados. Foram deferidos no período 999, num total de 62% dos 1.563 já analisados pela Justiça paulista.
A Defensoria de São Paulo fez outro levantamento na mesma época e identificou 3.112 casos, com cerca de 800 mulheres beneficiadas pela prisão domiciliar. Até o momento, não há atualizações.
Diálogo
Vieram do Depen os dados solicitados pelo ministro Lewandowski que apontam que, na época do julgamento, o país tinha 10.321 mulheres em condições de terem a prisão preventiva convertida em domiciliar. Baseado nesse levantamento, determinou-se que a entidade comunicasse os estabelecimentos prisionais, cabendo a estes, “independentemente de outra provocação”, informar aos respectivos juízos sobre as custodiadas.

Em HC coletivo, Lewandowski fixou 60 dias para o Judiciário cumprir a ordem, prazo encerrado em abril.
Assim, o Depen pediu aos órgãos estaduais de administração prisional que fizessem nova checagem das possíveis beneficiadas e enviassem os dados para os tribunais estaduais e as defensorias locais. Além disso, recomendou que os estados fizessem negociações com a rede de assistência social local, para efetivar a proteção social das beneficiadas.
“A decisão empoderou as unidades prisionais. Não há mais desculpa frente à falta de dados quando as próprias prisões estão dizendo que há mães presas em situação irregular”, diz Eloísa Machado.
“Não é interesse do gestor ou gestora da prisão ter uma mulher grávida ou uma criança na prisão. É um trabalho e um risco que pode respingar neles”, afirma a advogada Bruna Angotti, uma das responsáveis pela pesquisa Dar à Luz na Sombra, mapeamento da situação das mães e grávidas no cárcere e documento-base na elaboração do pedido de HC coletivo.
Eloísa Machado, Bruna Angotti e Hilem Estefania Cosme de Oliveira participaram, em 26 de abril, de evento da Fundação Getulio Vargas para marcar os três meses da concessão do HC coletivo, prazo dado pelo ministro Lewandowski para o cumprimento da ordem. Na avaliação do trio, a abrangência da decisão vem sendo tolhida em diversas cortes do país. Para quem se vê impedida de ter a pena preventiva substituída, o caminho é recorrer em primeira e segunda instâncias, ao Superior Tribunal de Justiça e, então, ao STF.
No geral, o Depen avalia como “fundamental o papel dos órgãos estaduais de administração prisional para a busca ativa dessas mulheres (e de seus dados) e fornecimento dessas informações aos órgãos com competência para revisão processual e decisão judicial”, apesar da falta de dados oficiais.
O Brasil tem 42 mil mulheres presas, número que registrou aumento de 525% entre 2000 e 2016. Desse total, 45% ainda não foram condenadas e 62% foram enquadradas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Apesar dos números, havia, antes da decisão do ministro Lewandowski, 27 mil vagas, com déficit de 15 mil.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 26 de maio de 2018.

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