sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Rumo à evolução civilizatória do processo penal


No teatro penal brasileiro, a prisão desponta, indiscutivelmente, como a protagonista, a atriz principal, que estreia um monólogo sem fim. Não divide o palco; no máximo, permite que algumas cautelares diversas dela façam uma figuração, um jogo de cena, e isso apenas para manter tudo como sempre esteve. Dados da última contabilidade do Conselho Nacional de Justiça, de junho de 2014: 711.463 presos, a terceira maior população carcerária do mundo[1]. Perdemos o pudor. Entre mortos e feridos, vamos nos assumindo como o país que transita — artificialmente — entre rebeliões e mutirões, numa autofagia que faz, então, que o sistema alimente de si mesmo. O (con)texto da prisão, no Brasil, é tão preocupante que sequer se registrou uma mudança efetiva na prática judicial após o advento da Lei 12403/2011, (dita) responsável por colocar, no plano legislativo, a prisão como a ultima ratio das medidas cautelares.
O processo penal certamente é o ramo do Direito que mais sofre (ou melhor, que mais se beneficia) da normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, não sendo exagero se falar, atualmente, que para se alcançar um devido processo, esse deve ser não apenas legal e constitucional, mas também convencional. Nesse sentido, Nereu Giacomolli tem absoluta razão quando afirma que “uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário”[2].
Parece-nos possível identificar, na superação deste enclausuramento normativo que somente tem olhar para o ordenamento jurídico interno, o surgimento, talvez, de uma nova política criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder punitivo a partir do diálogo (inclusivo) dos direitos humanos. Incumbe aos juízes e tribunais hoje, ao aplicar o Código de Processo Penal, mais do que buscar a conformidade constitucional, observar também a convencionalidade da lei aplicada, ou seja, se ela está em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Constituição não é mais o único referencial de controle das leis ordinárias.
Dispõe o artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”. No mesmo sentido, assegura o artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que “qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais (...)”[3].
A denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão. O expediente, anota Carlos Weis, “aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”[4].
São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos[5]. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no artigo 306, parágrafo 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.
Em diversos precedentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem ressaltado que o controle judicial imediato assegurado pela audiência de custódia consiste num meio idôneo para evitar prisões arbitrárias e ilegais[6]. Já decidiu a Corte IDH, também, que a audiência de custódia é — igualmente — essencial “para a proteção do direito à liberdade pessoal e para outorgar proteção a outros direitos, como a vida e a integridade física”[7], advertindo estar em jogo, ainda, “tanto a liberdade física dos indivíduos como a segurança pessoal, num contexto em que a ausência de garantias pode resultar na subverção da regra de direito e na privação aos detidos das formas mínimas de proteção legal”[8].
O CPP brasileiro (artigo 306, caput e parágrafo único), ao prever que o juiz deverá ser imediatamente comunicado da prisão de qualquer pessoa, assim como a ele deverá ser remetido, no prazo de vinte e quatro horas, o auto da prisão em flagrante, satisfaz a contento a exigência da audiência de custódia? A resposta é evidentemente negativa, sendo bastante clara a insuficiência do regramento jurídico interno. A esse propósito, a Corte IDH tem decidido reiteramente que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”[9], e ainda, que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no artigo 7.5 da Convenção”[10]. Logo, a norma contida no CPP não passa por um controle de convencionalidade quando comparada com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos a que o Brasil voluntariamente aderiu, especialmente a CADH, cujos preceitos, se violados, podem ensejar a responsabilização do país perante a Corte IDH.
Outro argumento recorrente para não se viabilizar, na prática, o direito à audiência de custódia é o de que tal expediente requer uma alteração/inovação legislativa, não sendo franqueado ao Poder Judiciário substituir o legislador para a implementação daquele direito no Brasil. Este argumento, no entanto, é claramente equivocado, possuindo a CADH densidade )e potencialidade) normativa o bastante para influir na prática judicial do ordenamento jurídico interno, afastando-nos, com essa orientação, do positivismo nacionalista que predominou do século XIX até meados do século XX, quando se exigia que os direitos previstos em tratados internacionais (também) fossem prescritos em normas internas para serem pleiteados em face do Estado ou de particulares[11].
Embora os Tratados Internacionais de Direitos Humanos que asseguram o direito à audiência de custódia não necessitem, conforme visto anteriormente, de implemento normativo interno algum, não se pode olvidar que a edição de lei exerce um papel fundamental na promoção do direito, principalmente no caso da audiência de custódia, cuja previsão normativa naqueles Tratados deixa em aberto a definição de algumas características do instituto. Justamente por isso, aliás, que vemos como uma medida absolutamente salutar o Projeto de Lei do Senado 554/2011, de autoria do senador Antonio Carlos Valadores, cujo conteúdo veio, depois, a ser substituído pela emenda do senador João Capiberibe, a qual, aprovada na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), conferiu-lhe a seguinte redação:
“Artigo 306:
§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.
§ 2º A oitiva a que se refere o § 1º não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.
§ 3º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.
§ 4º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código”.

O PLS 554/2011 passou e foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos em 26 de novembro de 2013, chegando, depois, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, onde foi distribuído para o senador Humberto Costa (relator) e recebeu, em 25 de junho de 2014, uma emenda substitutiva de autoria do senador Francisco Dornelles, que se limita basicamente a alterar a versão original do PLS para nele estabelecer que a audiência de custódia também poderá ser feita mediante o sistema de videoconferência. Eis a redação deste substitutivo:
“Artigo 306:
§ 1º. No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, pessoalmente ou pelo sistema de videoconferência, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”.

O senador Francisco Dornelles apresenta como justificativa principal para esta alteração o fato de que “a diminuição da circulação de presos pelas ruas da cidade e nas dependências do poder Judiciário representa uma vitória das autoridades responsáveis pela segurança pública”, e concluir afirmando que “o deslocamento de presos coloca em risco a segurança pública, a segurança institucional e, inclusive, a segurança do preso”.
O maior inconveninente desse substitutivo é que ele mata o caráter antropológico, humanitário até, da audiência de custódia. O contato pessoal do preso com o juiz é um ato da maior importância para ambos, especialmente para quem está sofrendo a mais grave das manifestações de poder do Estado. Sob o pretexto dos altos custos e riscos (como se não vivêssemos numa sociedade de risco) gerados pelo deslocamento de presos “perigosos”, o que estão fazendo é retirar a garantia da jurisdição, a garantia de ter um juiz, contribuindo ainda mais para que eles assumam uma postura burocrática e de assepsia da jurisdição. É elementar que a distância da virtualidade contribui para uma absurda desumanização do processo penal. É inegável que os níveis de indiferença (e até crueldade) em relação ao outro aumentam muito quando existe uma distância física (virtualidade) entre os atores do ritual judiciário. É muito mais fácil produzir sofrimento sem qualquer culpa quando estamos numa dimensão virtual.
Acrescentando-se a distância e a “assepsia” geradas pela virtualidade, corremos o risco de ver a indiferença e a insensibilidade do julgador elevadas a níveis insuportáveis. A Convenção Americana de Direitos Humanos assegura, em seu artigo 7.5, que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz. Por mais esforço que se faça, existe um limite semântico que não permite uma interpretação tal que equipare “presença” com “ausência”.
Finalizamos esse ensaio registrando a importante atuação da Defensoria Pública da União em prol da implementação da audiência de custódia no Brasil, tendo a instituição já obtido precedentes favoráveis na Justiça Federal de Cascavel (PR)[12] e na 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região[13], merecendo destaque, ainda, a ação civil pública ajuizada pela DPU em Manaus já noticiada na revista eletrônicaConJur[14]. Que os precedentes se multipliquem, que o Judiciário perca — de vez — o receio de se encontrar com o jurisdicionado preso e, principalmente, que a audiência de custódia seja enfim implementada no Brasil com a aprovação do PLS 554/2011 (sem a faculdade da realização por videoconferência) e também com a mudança de mentalidade judicial rumo à humanização do processo penal.
Além da importância de alinharmos o sistema jurídico interno à Convenção Americana de Direitos Humanos, é crucial uma mudança de cultura, um resgate do caráter humanitário e antropológico do processo penal e da própria jurisdição.

[2] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 12.
[3] Além de contar com previsão normativa nos sistemas global e interamericano de direitos humanos, a audiência de custódia também está assegurada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 5º, 3, dispõe que “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais(...)”.
[4] WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justiça Criminal. Edição 05, ano 03/2013. Acessível em:http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf
[5] Cf., sobre esse ponto, CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem. In: IBCCrim, Boletim n. 254 – Janeiro/2014.
[6] Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24/06/2005. No mesmo sentido, cf. também Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30/10/2008; Caso Bulacio Vs. Argentina. Sentença de 18/09/2003; Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México. Sentença de 26/11/2010; Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21/11/2007; Caso Fleury e outros Vs. Haiti. Sentença de 23/11/2011; Caso García Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25/11/2005;
[7] Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22/11/2005.
[8] Corte IDH. Caso de Los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales e outros) Vs. Guatemala. Sentença de 19/11/1999.
[9] Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24/06/2005.
[10] Corte IDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30/10/2008. No mesmo sentido, cf. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21/11/2007; Caso Garcia Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25/11/2005;Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22/11/2005.
[11] Cf. RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 83: “O risco aos direitos humanos gerado pela adoção do positivismo nacionalista é visível, no caso de as normas locais (inclusive as constitucionais) não protegerem ou reconhecerem determinado direito ou categoria de direitos humanos. O exemplo nazista mostra a insuficiência da fundamentação positivista nacionalista dos direitos humanos”.
[14] Cf. DPU ajuíza ação cobrando implantação da audiência de custódia no Brasil: http://www.conjur.com.br/2014-jun-13/dpu-ajuiza-acao-cobrando-implantacao-audiencia-custodia. A íntegra da ACP foi disponibilizada noblog do juiz Marcelo Semerhttp://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2014/06/dpu-pede-audiencia-de-custodia-para.html.
 é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Caio Paiva é defensor público federal, especialista em Ciências Criminais e editor do site www.oprocesso.com

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