Pesquisadora afirma que Brasil é vítima da própria política de encarceramento em massa, que leva à superlotação, ao fortalecimento de facções e a todos os outros problemas das penitenciárias, como a rebelião em Cascavel.
A rebelião na Penitenciária Estadual de Cascavel, no Paraná, voltou a evidenciar os graves problemas do sistema carcerário brasileiro. Pelo menos quatro presos foram mortos, sendo dois decapitados e os outros dois, jogados do telhado.
No telhado da penitenciária, uma bandeira do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi hasteada, em mais um sinal de que a rebelião é organizada pela facção criminosa criada em 1993.
Para Camila Nunes Dias, professora de políticas públicas da Universidade Federal do ABC e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP, a superlotação é o principal problema nas prisões brasileiras e a origem de todas as outras mazelas do sistema carcerário do país.
Segundo estimativas, o Brasil tem mais de 560 mil presos, mas apenas 360 mil vagas em seu sistema carcerário. "O paradigma de se pensar que nós podemos combater a criminalidade e a violência por meio da prisão precisa ser mudado", diz a especialista, em entrevista à DW Brasil.
Deutsche Welle: Como você avalia as condições do sistema prisional brasileiro?
Camila Nunes Dias: O sistema carcerário brasileiro é terrível nas suas condições estruturais, sobretudo pela superlotação das unidades prisionais. A superlotação é um fator gerador de uma série de outros problemas estruturais, sobretudo as péssimas condições de higiene, alimentação e de permanência nas celas. A superlotação agrava os problemas que já são crônicos no sistema prisional, que não tem investimentos minimamente suficientes por parte do governo. Gasta-se muito recurso público no sistema prisional, mas não vemos qualquer melhoria e mudança em relação ao padrão dessas unidades.
Quais são os principais fatores para tal precariedade?
Uma política de encarceramento em massa que o Brasil adota, seguindo o exemplo de outros países do Hemisfério Norte, principalmente os EUA. O Brasil passou a encarcerar nas últimas décadas muito mais. A taxa de encarceramento relativa quadruplicou nas últimas duas décadas. Essa intensificação das prisões, por mais que o governo gaste recursos na expansão das unidades prisionais, não consegue garantir um controle em termos da relação entre número de presos e de funcionários.
O agravamento das condições das prisões faz com que surjam grupos organizados dentro das prisões. O principal fator que eu indicaria, mais do que a falta do investimento necessário, seria a superlotação.
Falta atenção ao problema por parte dos governos?
Historicamente, a prisão no Brasil é destinada à população pobre. Então os políticos e o governo estão pouco se importando com a condição que essa população será encarcerada. Você tem um segmento populacional que é a clientela das instituições prisionais que, de fato, é uma população que historicamente tem seus direitos violados o tempo todo. As condições das prisões hoje são apenas uma decorrência dessa questão estrutural-histórica, a desigualdade social e de direitos vista no Brasil.
Por um lado, há o avanço da violência e o pedido da população para o aumento das penas. Por outro, a superpopulação prisional e as mazelas carcerárias. Como deve agir o governo?
O paradigma de se pensar que nós podemos combater a criminalidade e violência por meio da prisão precisa ser mudado. É preciso mudar a percepção de que a prisão é uma solução para a violência e criminalidade. Eu entendo que a prisão é a parte central do problema. A prisão é, digamos, um locus a partir de onde a criminalidade se articula no Brasil. Ela não é solução, e agrava os problemas da criminalidade. Tanto que, por conta das prisões no Brasil, é que nós temos hoje as maiores organizações criminosas brasileiras, como o Comando Vermelho e o PCC.
Qual é o papel hoje das facções criminosas dentro dos presídios brasileiros, como Cascavel?
Essas facções representam um problema nacional. A hiperpopulação carcerária leva à formação das facções, ao mesmo tempo em que o Estado não tem condições de manter o controle sobre essa população. As facções, até certo ponto, auxiliam o Estado ao exercerem o controle sobre a população carcerária e organizarem o espaço, que já é caótico e extremamente violento. Os grupos acabam substituindo o Estado na organização prisional.
É um papel ambíguo...
Sim. De um lado, elas acabam fazendo o que o Estado não faz: elas impõem a ordem. Por outro lado, elas se colocam contra o Estado. De vez em quando surgem crises em que, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, em que as facções atacam agentes do Estado. Então elas têm esse papel ambíguo: de um lado, elas ocupam o papel do Estado, impondo a ordem e o controle social sobre a população carcerária. Por outro, aparecem como contrapostos ao poder do Estado e efetivam ações contra o Estado.
No cotidiano, os dois são parceiros, porque se não fossem as facções criminosas, o Estado brasileiro não teria condições de encarcerar tantos presos em situações tão subumanas e, ao mesmo tempo, manter a ordem como é mantida nas prisões em São Paulo, por exemplo. De certa forma, esses grupos acabam sendo parceiros do Estado.
Como reintegrar um preso que fazia parte do PCC ou outra facção na sociedade, após ele ser libertado?
Isso é um grande desafio. Essa reintegração passa só por processos de conversão radicais, como a religiosa. Mas, no fundo, quando um preso se integra ao PCC, ele faz uma opção pela vida no crime. O que a sociedade e o Estado podem fazer é não dar condições para que isso aconteça. É por isso que falo sobre o desencarceramento. O encarceramento é a condição ideal para engrossar as fileiras das facções, porque é nas prisões que eles recrutam a maior parte de seus membros.
Críticos dizem que a falta de agilidade processual é um dos piores problemas. Muitos detentos ficam vários anos na cadeia sem terem sido julgados. O Judiciário também tem culpa pela situação do sistema carcerário?
O Judiciário é um dos principais responsáveis, já que o sistema prisional apenas administra aquilo que é determinado no âmbito do Judiciário. Ele é um dos principais responsáveis, ao lado, obviamente, do Ministério Público e das polícias.
Quais seriam as possíveis soluções para o sistema prisional brasileiro?
As soluções passam pelo processo de desencarceramento. Isso envolve a adoção efetiva de penas alternativas para crimes de pequena gravidade, como furto e tráfico de drogas; a adoção de políticas alternativas à prisão; tratamentos de saúde para alguns indivíduos que precisam. Esses seriam algumas das soluções possíveis para o sistema prisional.
Eu não vejo solução para prisão a partir da própria prisão. Para mim, não existe solução para prisão ao expandir o número de vagas no sistema prisional, porque os governos vêm fazendo isso há décadas e a demanda só continua crescendo, sem sucesso algum. Os governos constroem vagas para precisar de mais vagas. O caminho possível é o desencarceramento com essas medidas.
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