Se as provas trazidas ao processo despertam dúvidas sobre a falta de consentimento e o emprego de violência para consumar a conjunção carnal, estas devem ser sempre interpretadas a favor do réu. Com este fundamento, a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sulabsolveu um homem acusado de estuprar uma deficiente mental em Bagé — a 400km de Porto Alegre.
A relatora da apelação na corte, desembargadora Naele Ochoa Piazzeta, reformou a sentença condenatória, por entender que a suposta vítima não foi submetida a uma perícia que avaliasse o seu grau de debilidade. Sem esta avaliação, não é possível saber, com certeza, se ela tinha ou não capacidade para compreender o ato sexual e suas consequências, bem como de consentir com a prática.
Ela também considerou o fato de que, fruto da relação sexual, nasceu uma criança que foi devidamente reconhecida pelo acusado — ele, inclusive, está pagando pensão alimentícia. ‘‘Tal situação vem ao encontro do sustentado pelo denunciado, no sentido da existência de relacionamento com a vítima por determinado lapso temporal, e enfraquece a tese de estupro’’. O acórdão foi proferido dia 15 de dezembro.
O caso
O Ministério Público ofereceu denúncia à 2ª Vara Criminal de Bagé no dia 9 de setembro de 2009. A inicial, com base no inquérito policial, narrou que o carpinteiro, que é viúvo, pulou o muro da casa da vítima e a submeteu à conjunção carnal, com presumida violência. Desta conjunção, a vítima ficou grávida. Após cometer o delito, conforme o MP, o denunciado teria ameaçado surrar a vítima caso contasse o fato a alguém. A mulher afirmou que esta foi a única vez em que viu acusado.
Com base nestes fatos, o carpinteiro foi incurso nas penas do artigo 213, combinado com o artigo 224, letra “b”, ambos do Código Penal, combinados com o artigo 9º da Lei nº 8.072/90.
Em juízo, o réu confirmou ter mantido relações com vitima por mais de um ano, mas negou que a tenha forçado ao ato, ressaltando que também ignorava o fato dela ser deficiente mental. Disse que ela se insinuava e ia até sua casa, sempre aos sábados. Uma vizinha foi invocada como testemunha de sua versão. Para o acusado, ela era um ‘‘biscate’’. Por isso, nunca teve interesse em assumi-la.
Na audiência presidida pelo juiz Marcos Danilo Edon Franco, foram ouvidas a vítima e cinco testemunhas. Ao final, o acusado foi interrogado. A pedido das partes, os debates orais foram substituídos por memoriais.
A sentença
O juiz afirmou que os argumentos do réu não encontram sustentação nos autos. ‘‘Ao que tudo indica, o acusado, ao negar o fato, está simplesmente exercendo seu direito de defesa pessoal, sem que, contudo, atenue a prova acusatória, que é conclusiva no sentido de apontá-lo como autor do fato.’’
Na verdade, destacou, o réu tinha plena consciência da ilicitude da sua conduta. Os motivos que o levaram a cometer o delito estão ligados, pura e simplesmente, à satisfação da lascívia. ‘‘Os prejuízos ao psiquismo da vítima são graves, uma vez que os danos causados pelos abusos, de regra, são irreversíveis.’’
Segundo o julgador, em crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima assume vital importância. ‘‘É por isso que a jurisprudência, maciçamente, vem reconhecendo total relevo à palavra das vítimas, no que se referem aos delitos patrimoniais e sexuais, pois não se concebe que ela venha a juízo, em evidente constrangimento de sua intimidade, acusar um inocente’’, destacou ele nasentença.
Após citar depoimentos de testemunhas, ressaltando o ‘‘comportamento infantil’’ da vítima e a sua incapacidade para se autogerenciar, o juiz Marcos Danilo Edon Franco julgou procedente, em parte, a denúncia oferecida pelo MP. Condenou-o à pena de seis anos de reclusão, em regime inicial fechado, por tratar-se de crime hediondo.
Reforma da sentença
Por ser primário, o réu pode recorrer em liberdade. Na apelação encaminhada ao Tribunal de Justiça, ele pediu absolvição, já que não existe prova segura da deficiência mental da vítima nos autos. Consultado, o procurador de Justiça com assento na 7ª Câmara Criminal, Gilberto Montanari, opinou pelo desprovimento do apelo.
A desembargadora Naele Ochoa Piazzeta, relatora do caso, iniciou seu voto pela questão envolvendo a causa ensejadora da presunção de violência, disposta na alínea “b” do artigo 224 do Código Penal, vigente ao tempo do fato. O que ele estabelecia: Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: [...]. b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância.
Citando Júlio Fabbrini Mirabete, disse que a condição psíquica da vítima deve ser idêntica à dos inimputáveis a que se refere o artigo 26 do Diploma Material, de modo a abolir inteiramente a capacidade de entendimento ético-jurídico ou de autogoverno. Neste caso, salientou, a alienação e a debilidade mental da vítima devem ser comprovadas por laudo pericial, com conclusões e fundamentos seguros. Frisou que, por se tratar de circunstância elementar do crime, não basta que se apresente deficiência mental, como nos casos dos chamados “fronteiriços”, devendo ser determinada sua intensidade por meio de perícia.
No caso dos autos, lembrou a relatora, foi acostado atestado com timbre da Prefeitura Municipal de Bagé, indicando que a vítima é portadora de necessidades especiais, com diagnóstico F71 – CID 10 (retardo mental moderado), sendo dependente nas atividades da vida diária e necessitando de auxílio permanente. O documento foi firmado por um médico psiquiatra e por uma psicóloga. Também foi anexado laudo de avaliação para pessoa portadora de deficiência, firmado por agentes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), concedendo benefício previdenciário por incapacidade.
Ela observou, entretanto, que os peritos, quando da elaboração do exame de corpo de delito, ignoraram um dos quesitos (sexto), limitando-se a responder que a vítima apresentava debilidade mental, sem tecer outras considerações. ‘‘Convém frisar, neste ponto, que a realização de exame pericial foi solicitada diversas vezes pela defesa, seja na resposta à acusação (fls. 44-46) e nas manifestações das fls. 60-61 e 67-68, todas indeferidas pelo juízo a quo.’’
A relatora concluiu que a perícia era fundamental para elucidar a presença da causa de presunção de violência. ‘‘A ausência de laudo específico, nesse sentido, evidencia a dúvida em relação à capacidade de consentimento, determinando a necessidade de reforma da decisão condenatória.’’ Assim, deu provimento à apelação para absolver o réu, com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (CPP).
O entendimento foi seguido, por unanimidade, pelos desembargadores Carlos Alberto Etcheverry e José Conrado Kurtz de Souza.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário