terça-feira, 5 de outubro de 2010

Artigo: Algumas provocações a respeito da lei n. 7.492, de 1986

Flavio Antônio da Cruz



“A autoridade das leis repousa
apenas no crédito que lhe
concedemos. Nelas acreditamos,
eis seu único fundamento”.(1)
Jacques Derrida
É sabido que “o controle de constitucionalidade em matéria penal deve ser realizado de forma ainda mais rigorosa do que aquele destinado a averiguar a legitimidade de outros tipos de intervenção legislativa em direitos fundamentais dotadas de menor potencial ofensivo”.(2) Mas isso não tem sido empreendido a contento.
Raras são as decisões judiciais em que se promove efetiva crivação, pelo tamis constitucional, das fontes normativas do Direito Penal. A carga retórica das sentenças penais tem gravitado essencialmente em torno do exame dos meios probatórios: o que esta ou aquela testemunha teria dito, qual o alcance de determinado documento etc., sem maior confronto entre as normas infraconstitucionais e os vetores axiológicos que animam nossa já vintaneira democracia. Talvez porque esse controle imponha um significativo custo político, sobremodo em um tempo de midiatização de processos e de notório clamor popular por maior criminalização e punição.
É com esse pano de fundo que a Lei 7.492 deve ser examinada.
O diploma bem retrata o afã de se empregar a sanção criminal como instrumento de programação de condutas, mesmo quando destituídas de uma prévia reprovação coletiva. Ao contrário do que ocorre com o homicídio e outros delitos tipificados no Código Penal, a Lei 7.492 criminaliza comportamentos eticamente neutros,(3) de maneira que, em muitos casos, a autocensura do agente, quanto ao próprio agir, somente eclode após a pesquisa da legislação.
Subsiste uma constante sobreposição de normas, eis que a censura penal fica condicionada à existência de uma infração administrativa. Não há como aplicar o art. 22 da Lei 7.492 sem que o Juízo disponha de profundos conhecimentos a respeito dos regulamentos que versem sobre o mercado de câmbio, por exemplo.
Exceto quando se tratem efetivamente de preceitos de caráter temporário ou excepcional (como eram, ao seu tempo, os tabelamentos da SUNAB), a eventual alteração de dispositivos administrativos, deixando de exigir esta ou aquela autorização, implicará em abolitio criminis ou novatio legis in melius.
Em princípio, os regulamentos cambiários não podem ser tomados como preceitos de caráter excepcional ou temporário, de modo que – via de regra – alterações favoráveis aos acusados devem ser aplicadas retroativamente.(4) A alteração de valores para a exoneração do dever de declarar capitais internacionais pode causar, portanto, abolitio criminis (p.ex., comparação das Circulares 3.181/2006 e 3.071/2001, BACEN).(5) A grande verdade é que as autoridades administrativas que editam essas resoluções não se mostram muito preocupadas com os efeitos criminais que delas decorram.
Outro aspecto diz respeito ao postulado da lesividade (nulla lex poenalis sine necessitate; nulla necessitas sine injuria). As condutas – mesmo quando supostamente típicas – devem ser confrontadas com o art. 17 do CP; eis que, no Brasil, tentativas absolutamente inidôneas não podem ser reputadas como crime. O Judiciário há de tomar em conta as grandes contradições que têm vigorado no Direito Administrativo quanto ao regulamento do câmbio, por exemplo.
Ensina Zaffaroni: “Não seria admissível para uma elementar racionalidade de qualquer decisão judicial, que se considerasse proibida uma conduta que não lesiona outrem; tampouco é racional afirmar que está proibida uma ação que outra norma ordena, ou considerar que uma norma proíbe o que outra fomenta. Mas além de que ninguém saberia o que fazer em uma situação concreta, os juízes estariam confirmando a irracionalidade absoluta do poder ao condenar pelo que não prejudica a outrem”.(6) Há que se questionar, p.ex., a razão pela qual se rotula como crime a atitude de quem tenha depositado valores em contas CC-5, a partir de contas correntes alheias (“laranjas”), se o próprio Estado não se mostrou muito preocupado com a efetiva identificação dos remetentes (dado que franqueou, a 05 Bancos, a realização de depósitos em espécie em tais contas, conforme conhecidas autorizações especiais do BACEN; além da inegável contradição do art. 10, §1º, com art. 12, inc. I, da Circular n. 2.677/96, BACEN, quando confrontados com o art. 8º do mesmo diploma).(7)
Por outro lado, em brilhantes votos do Ministro Celso de Mello, a Suprema Corte tem reconhecido ao Judiciário o dever-poder de efetivar o controle da coerência das sanções criminais (HC 92.525 e 102.094). Há certo disparate na Lei 7.492 quando censura, com a pena de 02 a 06 anos, a conduta de quem tenha remetido irregularmente R$ 30.000,00, em divisas, ao exterior (art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492), ao mesmo tempo em que repreende, com pena entre 01 e 04 anos, o comportamento de quem com habitualidade e por longos anos tenha operado uma instituição financeira clandestina (art. 16), conduta mais agressiva.
Destaca-se ainda a aparente inconstitucionalidade do art. 4º, parágrafo único, da Lei n. 7.492, dada a agressão à regra constitucional da taxatividade (nulla poena sine lege certa – art. 5º, inciso XXXIX, CF). Os parlamentares tipificaram, como crime, uma conduta imprudente (gerir temerariamente), mas sem condicionar a aplicação da pena à sobrevinda de um resultado lesivo(8) e sem fazer expressa menção à aludida condição (como exige o art. 18, parágrafo único, CP).
Ainda que todo crime culposo esteja fundado em tipos abertos (violação ao dever geral de cautela), a Dogmática concebeu inúmeros critérios de contenção do arbítrio nisso envolvido (previsibilidade, evitabilidade, incremento indevido do risco, consumação do risco no resultado etc.). A simples tipificação penal de um agir temerário, sem exigir a ocorrência de dano, não pode ser aceita em um Direito Penal democrático, pois – do contrário – quem estará criando a proibição, ao final de contas, será o Judiciário, em exame post factum.
Seriam admissíveis tipos penais assemelhados: “conduzir-se temerariamente no trânsito” ou “exercer temerariamente a medicina”? Tais dispositivos, que veiculam redação análoga ao do art. 4º, parágrafo único, bem ilustram o perigo de tais preceitos. Fica sempre ao gosto do censor de plantão definir quando é que tal ou qual conduta seria delituosa, o que agride o inc. XXXIX, já referido.
Nem se diga que o delito seria doloso. Os crimes imprudentes também envolvem certo conteúdo volitivo (a escolha voluntária dos meios para a realização de um propósito lícito). Quem, sem intenção, atropela um transeunte, por estar a 150 km/h, atua com vontade de dirigir a 150 km/h, o que, por si só, não converte um crime negligente em doloso. Ademais, mesmo que se suponha que se trata de crime doloso, continua ausente a delimitação da conduta penalmente censurada.
Cumpre também registrar a aparente atipicidade das chamas operações hawalla (dólar-cabo). Como explica Tórtima,(9) o crime do art. 22, parágrafo único, da Lei somente se consuma quando, de forma irregular, o agente promove a saída, para o exterior (pleonasmo legislativo), de divisas que se encontravam em solo nacional. A simples transferência de titularidade de divisas que já se encontrem no exterior – ainda que configure infração administrativa (art. 1º, Dec. 23.258/33), ou possa caracterizar outro delito – não parece atender aos requisitos daquele parágrafo único ora referido.
Quem dispara em um cadáver não pratica homicídio (art. 17, CP). A negociação de divisas já ocultadas ao Estado não poderia ser tomada, em princípio, como evasão (eis que, quando muito, a verdadeira evasão teria ocorrido anteriormente). Por mais que se reconheça que toda interpretação da lei está condicionada pela polissemia do idioma, não menos certo que há regras para uso dos termos linguísticos, de modo que, onde se diz saída de divisas para o exterior, não se pode simplesmente ler “transferência de divisas que já se encontrem no exterior”.
O controle de constitucionalidade não deve ser tomado como complacência com conjeturados delitos. Antes, trata-se da função mais nobre reconhecida ao Judiciário: a de garantir a efetividade dos valores fundamentais da nossa comunidade política. Do reconhecimento da inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime, no âmbito da Lei n. 8.072 (STF, HC 82.959), não se seguiu o caos profetizado por alguns. Os parlamentares cumpriram seu papel, editando novo texto, com respeito aos comandos constitucionais (Lei 11.464/2007). Se nos contentarmos com dispositivos deficitários, nunca teremos normas constitucionalmente adequadas.


Notas
(1) Jacques Derrida. Força de lei:o fundamento místico da autoridade, SP; Martins Fontes, 2007, p. 21.
(2) Brasil, STF, ADIn 3112, voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 14.
(3) Figueiredo Dias. O problema da consciência da ilicitude em Direito Penal. 2ª ed. p. 392-415.
(4) Roxin, Derecho penal, p. 169. Américo Taipa de Carvalho. Sucessão de leis penais. 3ª ed.,p. 256.
(5) Taipa de Carvalho, Sucessãode leis penais, p. 267.
(6) Zaffaroni. Derecho penal:parte general, Buenos Aires, p. 485.
(7) Lógica já aplicada pelo TRF da 4ª Rg., ao julgar a apelação criminal n. 2005.70.00.00.3484-8/PR, DJE de 28.08.2008.
(8) Ao contrário do que previa a Lei n. 1.521/51, art. 3º, inc. IX, que condicionava a aplicação da sanção à existência de falência ou insolvência, decorrentes da gestão temerária.
(9) José Carlos Tórtima. Evasão de divisas, Lumen Juris, 2006.

Flavio Antônio da Cruz

Doutorando em Direito do Estado pela UFPR. Juiz Federal Substituto em Curitiba desde 2002.


Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010.

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