Transição é avanço, passagem, caminhada. Não é esquecimento. Bem ao contrário, é o abandono de um passado que se conhece e que, precisamente porque se conhece, não se deseja repetir. Transição é conceito difícil para uma justiça. De regra, as justiças são inertes e indispostas a transitar. Tanto que elas próprias não transitam, pois quem realmente transita, e as empurra, é o povo, este, sim, agente de transformação. Aliás, ainda mais complicado falar-se em transição em terras que preferem a sombra, a permanência, as casas avarandadas e as continuidades.
Na terra brasilis viceja uma herança forte, de um reino dito cadaveroso, incomodado pela situação moderna (o ilusionismo pombalino praticava um liberalismo de aparências). Dos portugueses, recebemos esse dom de prestidigitadores, um tipo paradoxal de dialética do estancamento, de sorte que tudo o que mais vale é precisamente isso: romper continuando, de sorte que não se rompa, mas que se continue.(1) Que se lembre a independência, a qual, logo no seu primeiro ato, consagrou imperador ninguém menos que o filho primogênito do rei português (de quem tanto se queria, ou se dizia, independer).
Vasto elenco de falsas rupturas seguiu-se desde então. Rupturas saídas da mesma fornalha em que, uma a uma, eram meticulosamente jogadas todas as novidades que por aqui chegavam. Nela, na fornalha, as novidades se cozinhavam, eram azeitadas e dissolvidas, perdendo a acidez original, temperando-se para agradar o metabolismo e os paladares mais delicados de nossas elites. Estas, sim, cada vez mais pançudas.
Desta parte do Novo Mundo, a transição mais recente é chamada democrática, pela qual se busca superar o chamado militarismo latino-americano, de traço autoritário. Mas, há quem contradiga esse mesmo militarismo, assim na pureza do termo. Raymundo Faoro, que muito pensou o Brasil, escreveu certa feita que foi o agrarismo, muito mais que o militarismo, que realmente forjou nossa cultura política.(2)
Não é simples jogo de palavras. Desde sempre, foi bem esquisito esse tal militarismo que, por toda a América hispânica, fazia de tudo um pouco, menos guerras (quando se entenda por guerra, é claro, aquele confronto em que tropas de verdade, preparadas e armadas, enfrentam por tempo certo, na valentia, de outro lado, tropas também de verdade, preparadas e armadas). Por aqui, na América, a guerra que Cortez desde antes inventara contra Montezuma não era nada disso, mas campanha genocida, com ataque direto e interminável a povo desarmado, indefeso e enganado.(3) Matriz, portanto, de um militarismo que cabe dizer genuinamente atrofiado. Ele não luta, mas massacra sem parar, muito.
Quando teve mesmo que lutar guerra de verdade, no mais das vezes, enfiou os pés pelas mãos, atabalhoado (pense-se, recentemente, nas Malvinas). Militarismo esquisito, atávico, que corre para fazer a paz nas fronteiras – poucos tiveram fronteiras extensas assim tão quietas, como a América Latina – e, ao mesmo tempo, apressado em fazer “guerra” ao povo, dentro delas. Pacífico, diplomático e colaborativo, quando a coisa é com os outros. Agressivo, valentão e impiedoso, quando a briga é com sua própria gente.
São linhas que também escreveram o militarismo brasileiro. Antes foi aquele das Bandeiras ou de Emboabas, de Palmares ou de Canudos, sempre voltado para dentro de si mesmo. Hoje, é o militarismo que toma para si a ideia de segurança pública (para dano da ideia civil de policiamento), subindo morros com tanques, helicópteros e outros apetrechos de guerra. Ou sitiando periferias em operações midiáticas e espetaculares. Seus inimigos de sempre não são exércitos de verdade ou nações estrangeiras, mas migrantes, negros, sertanejos, pobres, índios, vagabundos, capoeiras, anarquistas, comunistas, grevistas e, agora, qualquer tipo de gente tida por genericamente perigosa. Militarismo cujas botas servem para arrombar portas de moradias, acordando famílias assustadas, madrugada adentro, aos berros.
Podemos então dizer que uma ditadura militar é duas vezes usurpadora. Primeiramente porque é ditadura, mas também porque se autonomina militar, esquecendo-se – querendo que seja esquecido! – que guerra de gente valente é aquela que se faz para fora, não para dentro, sob pena de perversão absoluta das ideias de militar e de guerra.
Transição? É muito difícil qualificar assim processos tão complexos. Bem mais continuidades, isso que temos por aqui, no passar dos séculos. Vejam o que se preocupou agora em acusar: não os generais e os negócios de estirpe que patrocinavam as usurpações – afinal, não houve por aí quem dissesse ser essa ditadura um mal necessário? –, mas os terroristas que, deixando de lado aquela tal cordialidade (palavra citada no ouvir dizer), pegaram em armas para matar, roubar e insurgir.
Ora, alguém, por aí, perdeu muita aula. Não foi o século XVIII que nos constituiu o direito de resistência contra os usurpadores do político (e, com mais razão, contra aqueles que são duplamente usurpadores)? Ora, resistir constitui então dever cívico. E resistir a esse militarismo – como vimos, mais cênico que real – implica usar dos mesmos meios que os agressores (inclusive armas, quando armados eles primeiramente se puseram). Portanto, se não resisti, então sou eu quem deve desculpas, já que me amedrontei, e não quem o fez à custa, sabidamente, de sua família, paz, coisas e carne. Mas não nos espantemos com esses equívocos. Um povo que não sabe onde fica a própria tragédia, também não saberá dizer, é claro, onde está seu heroísmo.
Estamos sempre às voltas com o autoperdão, a mais cínica de todas as grosserias. Quem perdoa a si próprio é porque planeja, no seu íntimo, continuar a ofender. Engendra repetir a mágoa e voltará, mais cedo ou mais tarde, a fazê-lo. Tanto que se perdoou e apressou a banhar-se com água. Sobre essas coisas, conta-se que os primeiros imperadores da cristandade – inclusive Constantino – postergavam a decisão de batizar-se, fazendo-o apenas à vista da morte. Assim, podiam continuar pecando para, somente no instante certo, serem absolvidos de um lote maior de faltas.(4) Espertos, esses imperadores que guardavam pecados em conta-corrente: é temerário precipitar o perdão.
Ora, é possível que um caso erroneamente julgado fique por um instante irrecorrido por conta de uma dada conformação do que seja justiça de um país, na voz daqueles que pensam que têm voz. Mas isso não quer dizer que a justiça – enquanto força, ideia e princípio de um povo – tenha necessariamente se esgotado ou enrouquecido para sempre. Ela continua viva. Mesmo biografias são reescritas a qualquer momento e é confortante saber que todas, afinal, serão certamente reescritas. Desde já, sabemos que a punição dos crimes cometidos pela recente ditadura militar brasileira está sendo objeto de julgamentos novos e importantes, além de nossas fronteiras, pela comunidade humana. O povo ainda fará muitos julgamentos. Isso é o que mais nos importa. A isso e apenas a isso tributamos, portanto, nosso interesse.
Notas
(1) Vale referir: NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. Col. Pensamento Criminológico, v. 4.
(2) FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 683.
(3) Sobre isso, ver. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Col. Tópicos.
(4) VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão: 312-394. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 97-100. Aliás, havia desde antes uma sabedoria sobre o batismo que o medievalismo apressou-se em perder: o arrependimento não é coisa que se sente, mas coisa que se pratica. Daí que o cristão antigo tinha que pensar muito antes de deixar-se batizar, pois isso lhe implicava todo um regime novo e piedoso de vida que bem valia a pena retardar.
Sérgio Mazina Martins
Presidente do IBCCRIM.
MARTINS, Sérgio Mazina. Justiça e transição. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 215, p. 02, out., 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário