Apesar de os discursos de pânico moral consensualizarem a ideia de o país viver uma intensa crise de impunidade – em razão da alta flexibilidade das leis penais, da tolerância do Poder Judiciário e da ineficácia das agências policiais –, os índices de encarceramento, nos últimos 15 anos, atingiram taxas assustadoras.
A análise superficial da curva de prisionalização permite a validação da hipótese (valores expostos na relação número de presos por 100.000 habitantes) (quadro abaixo).
Incabível, portanto, sugerir – como tem sido comum perceber nos discursos de inúmeros agentes públicos pouco preocupados com os dados da realidade – que a sociedade brasileira vive período de afirmação de política criminal de índole minimalista ou garantista. Ao contrário, passados mais de 20 anos da publicação da Constituição Federal, os atores da cena judicial ainda buscam encontrar mecanismos que permitam limitar o populismo punitivo, que coloquem freio ao incremento de políticas criminais autoritárias que se materializam, fundamentalmente, em propostas legislativas voltadas tão somente à satisfação dos reclamos sociais passionais e contingentes.
Nas últimas décadas, a política criminal distanciou-se, sobretudo no plano legislativo, do necessário rigor técnico e da orientação científica. Neste quadro, as últimas reformas penais têm levado os juristas à perplexidade, visto que a falta de critério atingiu a própria parte geral do Código Penal brasileiro, conforme destaca Miguel Reale Júnior: “(...) o vício que caracteriza a produção da legislação penal nos últimos tempos, mormente nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique, de início, se restringindo à legislação extravagante e à Parte Especial do Código, atinge, agora, a Parte Geral do Código Penal. O Direito Penal ‘fernandino’ faz da década de 90 um dos momentos mais dramáticos para o Direito Brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa”.(1)
O produto normativo das legislações de pânico demonstra-se em visível desobediência à necessária limitação das fontes de criação de proibições penais, mormente à regra de codificação. Apesar de a doutrina nominar este fenômeno como “legislação simbólica”,(2) suas consequências são concretas, não apenas por elevar massivamente o número de encarcerados, mas, igualmente, por alterar a postura dos operadores do direito, cada vez mais identificados ideologicamente com esta política criminal antidemocrática fortemente apoiada no imaginário social de pânico fomentado pelos meios de comunicação de massa.
Segundo Claus Roxin, a política criminal populista, ao optar pela forma de “reação simbólica”, desnaturaliza o sentido primeiro de política criminal, arte ou técnica com aptidão para delinear a estrutura reitora que constitui o sistema de direito penal a partir dos fins estabelecidos pela ciência. Desde as lições de Sebastián Soler, a política criminal deve ser concebida como um campo no qual se conciliam as “conclusões da ciência”e “as exigências da política”, conservando a “pureza metódica da primeira e barrando as improvisações da segunda”.(3)
Apesar do idealismo otimista dos autores tradicionais em relação à capacidade da ciência e à instrumentalidade da técnica (política), seria possível dizer que uma reforma legislativa democrática necessariamente deveria estar ancorada nos princípios definidos pela Constituição (base normativa). Todavia a coerência normativa não é suficiente, sendo imprescindível às reformas a base empírica. Conforme destaca Nilo Batista, a transformação da legislação criminal deve surgir “do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia”.(4)
A adequação da política criminal à Constituição necessariamente prescindiria da adoção do princípio de reserva de codificação (Luigi Ferrajoli). A técnica de Reserva de Código criaria verdadeira barreira contra propostas legislativas de emergência que invariavelmente oferecem respostas meramente emotivas, geradas em casos episódicos e, nestas circunstâncias, divorciadas dos requisitos constitucionais e alheias à realidade do sistema penal – no caso específico: a caótica situação carcerária.
Assim, em paralelo à proposta de Reserva de Código, conforme defendido em outro momento,(5) imperioso que qualquer projeto legislativo criminalizador – com previsão de novos tipos penais, de aumento de penas, de restrição à progressão de regime ou de ampliação de hipóteses de prisão processual –, seja precedido de estudo de impacto carcerário. O estudo de impacto carcerário (ou político-criminal), seguindo a linha dos mecanismos de proteção ao meio ambiente, apresentaria a previsão de encarceramento futuro decorrente da aplicação da nova lei e indicaria quais políticas públicas seriam necessárias à sua implementação, como, p. ex., qual a incidência da criminalidade nas diferentes regiões do país; qual a situação regionalizada do sistema prisional e qual o número de vagas necessário para suprir a nova demanda; qual o tempo e quais os gastos necessários para a criação das novas vagas e a contratação de novos servidores; e, sobretudo, qual a origem dos recursos para implementação da nova política criminal.
Outrossim, de maneira similar ao que ocorreu em Portugal, entende-se fundamental a elaboração de uma Lei-Quadro de Política Criminal, com claras diretrizes sobre a relevância de tutela de bens jurídicos, projetando processos de descriminalização e de diversificação de penas não carcerárias. Afinal, na linha da antiga advertência de Miguel Reale Júnior, o “pensamento crítico do Direito Penal remete, obrigatoriamente, à questão da criminalização e descriminalização”.(6)
Entende-se, a partir dos projetos apresentados, que qualquer reforma, por menor que seja, deve criar condições de efetiva aplicabilidade, diminuindo ao máximo, dentro dos limites do possível, os efeitos perversos. Essa tarefa é tanto mais imperiosa quanto maiores são as diferenças entre os modelos político-criminais defendidos pela academia e os implementados pela política. O movimento pendular da política criminal entre minimalismo e punitivismo não pode obstar a efetivação do texto constitucional e a tutela dos direitos humanos. Exige-se, pois, um mínimo de compromisso do Legislativo com a Constituição. E se a opção é pelo encarceramento, como foi possível perceber nos últimos anos, que ao menos sejam respeitados minimamente os direitos das pessoas.
Notas
(1) Mens legis insana, corpo estranho. Penas restritivas de direito: críticas e comentários às penas alternativas Lei nº 9.714/1998. São Paulo: RT, 1999, p. 23-43.
(2) ROXIN, Claus. Tratado de derecho penal, parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, v. I, p. 59.
(3) Derecho penal argentino. 10 ed. Buenos Aires: Tea, 1992, v. I, p. 58-59.
(4) BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 34.
(5) CARVALHO, Salo. Em defesa da Lei de Responsabilidade Político-Criminal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, dez. 2008.
(6) Novos rumos do sistema criminal. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 213. Sobre o tema, ainda outras antigas advertências: HULSMAN, Louk. Descriminalização. Revista de Direito Penal, trad. Yolanda Catão, São Paulo, v. 9/10, p. 7-26, 1973; BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização. Revista de Direito Penal, São Paulo, RT, nº 13/14, 1974; CASTRO, Lola Aniyar de. Sistema penal e sistema social: a criminalização e a descriminalização como funções de um mesmo processo. Revista de direito penal, Rio de Janeiro, nº 30, jun./dez. 1980.
Alexandre Wunderlich
Professor Coordenador do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da PUC-RS.
Salo de Carvalho
Professor do Departamento de Ciências Penais da UFRGS.
Professor do Departamento de Ciências Penais da UFRGS.
Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010
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