quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Artigo: Estupro, legalidade e política criminal

 Por Guilherme de Souza Nucci

A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, trouxe nova redação ao art. 213 do Código Penal, unificando-o com o revogado art. 214. Portanto, não mais existem dois delitos sexuais violentos (estupro e atentado violento ao pudor), mas um único, sob a forma mista alternativa. In verbis: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (destaque nosso). Sabendo-se constituir o tipo penal do estupro uma forma específica de constrangimento ilegal, visualize-se a fórmula genérica do art. 146 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda” (grifamos).
Constranger é o verbo principal, condutor do objeto e dos demais verbos dependentes do primeiro. Em ambas as construções, o agente constrange alguém, sob o meio violência ou grave ameaça, a duas possíveis condutas, associadas pela partícula alternativa ou. Logo, aquele que constrange outrem, violentamente, a deixar de fazer o que a lei permite e, na sequência, a fazer o que a lei não manda, comete um único crime de constrangimento ilegal. Não há que se fugir da mesma interpretação, no tocante ao crime de estupro. O agente que constrange alguém, violentamente, a manter um ou mais atos libidinosos, no mesmo cenário, à mesma hora, pratica um único delito de estupro. Lembre-se que a conjunção carnal não passa de um ato libidinoso, logo, não se constitui em objeto completamente dissociado da segunda possibilidade elencada no art. 213 (outro ato libidinoso). 

Indaga-se, então: mas a pena é justa para a prática de dois ou mais atos libidinosos contra a mesma vítima? Depende da individualização da pena, tarefa do juiz. Há uma variação de seis a dez anos de reclusão. Portanto, cabe ao magistrado, valendo-se do disposto no art. 59 do Código Penal, concretizar o seu poder individualizador. 

Entretanto, se se pode considerar ainda insuficiente a pena máxima de dez anos para quem abusar sexualmente de outrem, cuida-se de preservar o respeito ao princípio da legalidade. A pena é cominada em lei, conforme critério legislativo. E, sob tal premissa, cabe ao legislador revê-la. A invasão de instrumentos de interpretação, calcados em pura política criminal, não é bem-vinda no campo penal, mormente para prejudicar o réu. O escudo protetor, construído pelo princípio da legalidade, corrói-se diante da ousada interpretação tendente a situar o art. 213 dentre os tipos mistos cumulativos. 

Idêntica política criminal já foi utilizada no passado, quando se fez crer tratar-se o estupro seguido de morte de crime preterdoloso, vale dizer, aquele que somente pode se desenvolver com dolo na conduta antecedente (estupro) e culpa na conduta consequente (morte). Desse modo, interpretando-se a bel-prazer o tipo penal do art. 213, combinado com o art. 223 (hoje, art. 213, § 2º, CP), instituiu-se que, cometido o estupro, havendo dolo, ainda que eventual, por parte do agente, em relação à morte da vítima, configurar-se-ia estupro e homicídio em concurso material. A pena seria muito superior àquela prevista para o crime qualificado pelo resultado. Porém, esse método é um erro, derivado de pura política criminal. Ademais, no campo do roubo seguido de morte, não se advoga a mesma tese. Se o roubo for praticado com dolo e, igualmente, advier a morte da vítima por dolo do agente, cuida-se de latrocínio – e não de dois delitos, roubo + homicídio. Em suma, afora a política criminal, deve-se considerar o estupro seguido de lesões graves ou morte como crime qualificado pelo resultado, pouco importando se, quanto ao resultado agravador, atue o agente com dolo ou culpa, utilizando-se o mesmo critério que reina absoluto no contexto do roubo seguido de lesões graves ou morte.

A política criminal tem limite. Sua principal fronteira é o fiel respeito aos princípios constitucionais penais. A legalidade demanda expressa previsão de definição legal e de pena, em abstrato, promovida pelo legislador. Não cabe ao operador do Direito insurgir-se contra tal competência exclusiva, instituindo interpretação inadequada, buscando romper a faixa de fixação da pena, alcançando-se penalidades mais severas, pelo simples fato de se considerar grave a infração penal ou as condutas que a compõem.

Note-se que, mesmo concebendo-se o tipo penal do art. 213 como misto cumulativo, tal assertiva não o transforma em dois tipos penais de espécies diferentes. Desse modo, é perfeitamente cabível que se possa considerar crime continuado, somente para argumentar, a prática da conjunção carnal violenta, seguida de outro ato libidinoso qualquer, visto que ambos, ainda que reputados dois delitos autônomos, inseridos no mesmo tipo penal, constituem delitos da mesma espécie, preenchendo, perfeitamente, o disposto no art. 71 do Código Penal. Seria inviável acolher a tese de que tipos penais mistos cumulativos, com figuras constantes do mesmo artigo do Código Penal, possam ser de espécies diferentes. Se assim ocorrer, inova-se, outra vez prejudicando o réu, em matéria de crime continuado. Seria outro golpe no princípio da legalidade, fomentando-se interpretação restritiva em relação a um benefício criado em lei, buscando-se a aplicação da pena justa. 

Do exposto, conclui-se ser o crime de estupro, constante do art. 213 do Código Penal, um tipo misto alternativo, devendo-se regular a pena concreta e adequada por meio da individualização proporcionada pelos vários instrumentos previstos em lei, sem qualquer intervenção de política criminal, passível de ferir o princípio da legalidade.

Guilherme de Souza Nucci

Livre-docente em Direito Penal pela PUC-SP. Doutor e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor concursado na cadeira de Direito Penal na PUC-SP. Juiz em Segundo Grau, atuando como Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de Sâo Paulo.


Fonte: Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010.

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