sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Artigo: Breves notas sobre o direito penal ambiental

Por Fabio Roberto D’Avila



Ao longo da história recente do direito criminal, poucos âmbitos de intervenção jurídica se mostraram tão controvertidos quanto aquele circunscrito pelos denominados crimes ecológicos. Pouco ou nada restou que não fosse objeto de crítica. Da sua validade e dignidade enquanto espaço apto a resguadar uma per se exigente natureza penal ao atendentimento de imposições práticas de funcionalidade e eficácia no controle dos riscos ecológicos, passando, inclusive, pela própria indefinição da matéria a ser erigida a objeto de tutela.
Após algumas décadas de discussão, o alarde das controvérsias iniciais perde em volume e abre margem a um cenário que, conquanto não novo, mostra-se já maduro para novas perspectivas dogmáticas e político-criminais. Os problemas originais, sem dúvida, mantêm-se e, por sua conformação, ao que tudo indica, ainda muito acompanharão o direito penal ambiental. Contudo, a densificação permitida pela forte concretização legislativa constitucional e infraconstitucional já autoriza, senão mesmo exige, novos olhares e novos níveis de problematicidade. 

Se, por um lado, as particularidades ínsitas à matéria de incriminação dos delitos ecológicos fazem do direito penal ambiental um espaço de regulação verdadeiramente único em termos de desafios, por outro, é igualmente verdade que os elementos aqui colhidos, ainda que em cotejo com outras searas do direito penal secundário, permitem um contexto incomparável não apenas para a reflexão e o desenvolvimento de tradicionais institutos penais, como, e principalmente, para pôr a prova a efetiva capacidade de garantia e informação dos princípios reitores do direito penal – ou, ao menos, o comprometimento da ordem penal para com eles –, de modo a delinear, ainda que a traços grossos, o efetivo papel e validade da normatividade penal nesses novos meandros. 

Houve, sem dúvida, conquistas importantes, embora, a nosso juízo, ainda não suficientemente dimensionadas pela doutrina. Bom exemplo disso parece-nos a controvérsia acerca da compreensão do objeto de tutela dos crimes ecológicos. Mais precisamente, se tal compreensão deve atender a aspirações de cunho meramente antropocêntrico ou se, em seu lugar, deve admitir uma leitura em termos imediatamente ecológicos. 

Se bem vemos, aqui não está em questão apenas uma disputa pontual entre duas possíveis compreensões a respeito do bem jurídico tutelado. Muito mais do que isso, a simples colocação do problema, já na sua origem, denotava o esgotamento explicativo de todo um modelo de direito penal estabelecido exclusivamente a partir de um referencial antropocêntrico. E o posterior desdobramento da matéria, por sua vez, não deixou dúvidas sobre isso. 

O contínuo enfraquecimento das orientações puramente antropocêntricas em prol de compreensões mistas, i.e., ecológico-antropocêntricas, seguido, no caso brasileiro, de significativos desdobramentos legislativos, não pode – e não deve – ser visto como uma concessão “local” em termos de regulação criminal, uma vez que, se bem contextualizado, está não para causa, mas para resultado de uma precisa forma de perceber o direito e o direito penal. Admitir nos quadros da ciência penal o meio ambiente, em suas inúmeras projeções, enquanto objeto de tutela dotado não só de autonomia, mas também de uma dimensão verdadeiramente ecológica (embora não exclusivamente ecológica, o que é próprio das concepções mistas) não é, pois, uma tímida e concessa fratura “local”, mas uma importante abertura de toda a ordem de valoração jurídico-criminal a novas fontes de informação axiológicas e, portanto, também assim, a um novo horizonte compreensivo. 

Em verdade, o simples reconhecimento dos bens ambientais enquanto realidades dotadas de valor em si, i.e., para o qual o referencial humano pouco ou nada tem a dizer, arrasta consigo toda uma compreensão do ser comunitário que, ao que tudo indica, parece constituir um passo definitivo em termos civilizacionais. Inaugura-se um novo olhar sobre a vida e sobre a responsabilidade pela vida. Mas também, em uma dimensão já mais próxima da juridicidade, permite perceber que a riqueza e complexidade da matéria de incriminação já há muito não obtém adequada tradução na equívoca e restrita idéia de um mero “interesse”, quer seja ele individual, quer seja coletivo. Pois, ainda que a noção de interesse possa abranger também valores obtidos a partir de um processo de reconhecimento de informação não-antropocêntrica – eis que sempre que houver dignidade e carência de tutela pode-se falar em interesse –, o que se reconhece e o que se deve garantir será sempre não o interesse, mas o seu objeto, o bem em si, enquanto expressão do valor que lhe é ínsito.

Isso por um lado. Por outro, o quadro de desdobramentos jurídico-penais já muito pouco tem de favorável. O direito penal ambiental tem sido, lamentavelmente, palco de reiterada e não raramente gratuita desconsideração de tradicionais princípios penais de garantia, a denotar um preocupante descomprometimento não só da política criminal, mas também da própria práxis penal. Descomprometimento que se torna ainda mais saliente no âmbito dos princípios de caráter substancial, como o são aqueles atinentes ao conteúdo material do ilícito.

Não são poucos os julgados em matéria penal ambiental que, v.g., simplesmente consideram inaplicável o princípio da insignificância, sob o argumento dela versar sobre bens jurídicos supraindividuais. Como se a principiologia penal devesse se adaptar à matéria de proteção e suas vicissitudes e não o contrário. E isso partindo de uma premissa igualmente equivocada, i.e., partindo da ideia de que bens supraindividuais não são suscetíveis de análise em termos de insignificância. Ora, nada mais equivocado. É exatamente o caráter supraindividual dos crimes ecológicos, associado à técnica de tutela adotada, que reforça ainda mais a importância da análise de significação para a definição do âmbito de proteção da norma. O que, aliás, uma vez não atendido, não apenas subverte a racionalidade indispensável à lei penal, violando simultanemente as exigências de fragmentariedade e ofensividade, pela punição de fatos manifestamente irrelevantes – vale dizer, insuscetíveis a priori de conformar materialmente o ilícito-típico –, como inviabiliza em termos práticos a própria resposta penal, devido à excessiva abertura típica e, assim, também da matéria punível. O direito penal arvora-se, desse modo, tristemente, em prima ratio. E como prima ratio, tendo ele o peso garantístico penal e processual que tem, não é preciso grande esforço para antever o seu incontornável fracasso em termos regulatórios, ainda que se queira dele – o que, por certo, não é o nosso caso – o atendimento de pretensões puramente utilitárias. Torna-se, pois, imprestável a qualquer um dos seus senhores. 

Na mesma linha, a peculiar complexidade da matéria ambiental associada a técnicas de tutela tendencialmente formais permitiu, de forma igualmente lamentável, a profusão de propostas de legitimação puramente formal ou – o que não é nada diferente – apenas mediatamente material. 

Tanto os denominados crimes de acumulação quanto os chamados crimes de desobediência qualificada, v.g., não passam de proposições de ilicitude manifestamente formal. Embora propostos tendo como referencial a tutela de bens jurídicos, esse referencial de cunho substancial – tal qual ocorre na tradicional, e constitucionalmente inaceitável, concepção de crimes de perigo abstrato enquanto crimes de perigo presumido – assume um papel meramente propulsor da elaboração legislativa, desacompanhando posteriormente a conformação do ilícito-típico. Em outras palavras, o ilícito-típico abandona o seu referencial material em âmbito legislativo, realizando-se de lege lata em uma dimensão exclusivamente formal.

Em verdade, é exatamente este o aspecto que mais preocupa em tais elaborações. Diferentemente de construções assumidamente formais, a mantença, nesses casos, de uma orientação teleológica atenta ao objeto de tutela, ainda que mediata e distante, acaba por maquiar um ilícito que, ao fim e ao cabo, se perfaz de modo unicamente formal. Daí ser possível entender a diferença de posicionamento entre aqueles que defendem a teoria do bem jurídico enquanto fundamento que se faz suficiente ainda que de forma mediata e aqueles que, como nós, entendem que não se pode afastar da teoria do bem jurídico a dimensão da ofensa, de modo a impedir precisamente esse intolerável descolamento do ilícito em relação ao substrato material no qual está assente a sua legitimidade. Só assim a teoria do bem jurídico torna-se, verdadeiramente, uma teoria do crime como ofensa a bens juridícos. E, apenas nesse contexto, tais elaborações em termos de acumulação e desobediência, visto que incapazes, pelo deslocamento do substrato material, de traduzir hipóteses de ofensa, i.e., dano ou perigo ao objeto de tutela, definitavamente não encontrarão espaço. 

Não por outra razão, temos, há muito, em vários escritos, de forma insistente e reiterada, afirmado que o ilícito penal não pode e não deve se satisfazer com proposições em termos de acumulação ou desobediência, com proposições que buscam na mera orientação teleológica a sua ratio substancial. A reivindicação de ofensividade enquanto dimensão indispensável e indissociável para o reconhecimento do ilícito-típico individualmente considerado torna inaceitável – quanto a nós, constitucionalmente inaceitável – os delitos de acumulação e desobediência. 

De qualquer modo, importa ter claro que, a exemplo do que aqui se observa, a maior parte das dificuldades levantadas em desfavor do direito penal ecológico mais está no seu ainda amplo desconserto teórico e prático do que em problemas ínsitos à respectiva matéria de incriminação. E que, de certo modo, esse desconserto não é de todo mal. O direito penal ecológico, convertido em amplo campo de prova do que pode vir a ser o direito penal nos anos que seguem, muito tem a contribuir para a feição, ainda demasiadamente frágil, do direito penal que se deseja para este novo milênio.

Fabio Roberto D’Avila

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-Doutor em Ciências Criminais pela Universidad de Frankfurt am Main. Advogado Criminal. 


Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010.

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