sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Criminologia e gênero

A Professora Carmen Hein de Campos, estudiosa de criminologia e questões feministas no Brasil, em entrevista exclusiva ao Portal do IBCCRIM, concedida a Yasmin Oliveira Mercadante Pestana, comenta sobre a importância do estudo de gênero para a criminologia e o tratamento dado pelo direito penal à violência doméstica.
Carmen Hein de Campos é Doutoranda em Ciências Criminais na PUC-RS; possui dois mestrados: em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998) e em Direito pela Universidade de Toronto (2007, Programa Direitos Sexuais e Reprodutivos). Foi Conselheira-Diretora da Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em Porto Alegre (2004-2007); advogada visitante no Center for Reproductive Rights, Nova York, de setembro de 2006 a fevereiro de 2007; secretária Executiva da Associação pela Reforma Prisional, Rio de Janeiro (2004-2006). É advogada feminista, professora de direito, consultora e pesquisadora com interesse em Criminologia e Direito Penal, principalmente nos seguintes temas: violência doméstica, direitos humanos, violência contra a mulher, criminologia feminista, teoria legal feminista e direitos sexuais e reprodutivos. Foi Consultora da Secretaria de Políticas para as Mulheres para a implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher no estado do Rio Grande do Sul. Por fim, é Coordenadora Nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher - Cladem/Brasil. Dentre outros trabalhos, foi organizadora do livro Criminologia e Feminismo.

Portal IBCCRIM: Por que estudar a criminologia sob uma perspectiva de gênero?
Carmen Hein de Campos: O estudo da criminologia sofreu, durante muito tempo, o que denomino de "anemia de gênero", isto é, um déficit teórico nos estudos criminológicos. Esse déficit teórico invisibilizou as relações das mulheres com o sistema de justiça e com as demais questões ditas "criminais". Era como se as mulheres não existissem. Os estudos de gênero permitiram, então, retirar a invisibilidade das mulheres ou as mulheres da invisibilidade. Por outro lado, os estudos de gênero também têm demonstrado que muitas vezes o feminismo tem ficado preso à questão das "mulheres" de uma forma essencialista, ao substituir gênero por mulheres, esquecendo que o gênero é apenas uma das variantes em questão. A importância desse novo olhar é impedir a redução da análise a único aspecto. 

Portal IBCCRIM: O que esse novo olhar pode contribuir para as ciências criminais? E na aplicação do Direito Penal?
CHC: As análises de gênero permitem olhar as ciências criminais através de uma lente que possibilitam verificar como esse sistema jurídico trabalha, constrói/desconstrói as relações de gênero. Por exemplo: através da ótica de gênero podemos verificar como o direito penal trabalha ora com a categoria "Mulher" ora com as "mulheres". O direito penal (doutrina, jurisprudência e legislação) constrói diferentes mulheres (mulheres mães, mulheres homicidas, mulheres prostitutas, mulheres solteiras, etc). Em casos de violência sexual as mulheres, por exemplo, podem ser construídas como merecedoras da proteção penal ou como "merecedoras da violência sexual". Igualmente nos casos de violência conjugal, as mulheres podem ser tratadas como vítimas (merecedoras da proteção penal) ou como protetoras da família (e, portanto não merecedoras de proteção) ou ainda, como inconseqüentes (retiram as "queixas”), etc. Os estudos de gênero permitem, portanto, revelar e desconstruir os diversos estereótipos sobre os quais as 'mulheres' são construídas pelo discurso jurídico-penal.

Portal IBCCRIM: Considerando que existe uma grande polêmica em torno da Lei Maria da Penha, que ora é acusada de punitivista e ineficaz, ora é vista como necessária, como observa a inserção do Direito Penal no âmbito dos conflitos privados?
CHC: Essa tem sido uma polêmica instaurada desde a aprovação da Lei Maria da Penha. A discussão posta na sua pergunta, a meu ver, é se a violência doméstica contra as mulheres pode ser considerada privada. Já faz algum tempo que o feminismo desconstruiu a dicotomia público/privado e essa é uma questão teórica importante quando falamos de violência conjugal. Ao dizer que o pessoal é político, as feministas demonstram que "questões pessoais" como violência sexual, aborto, violência conjugal, dentre outras, resolviam-se através de leis e por medidas de natureza política, e não privada. Essas questões, embora digam respeito a questões privadas, são discussões da esfera pública e resolvidas na esfera pública. Questões em que o Estado não pode deixar de se pronunciar.
Por outro lado, o direito penal pune as violências ditas "privadas". Por exemplo: não se admite violência de pais/mães contra crianças e adolescentes (o argumento da privacidade nesse caso é inaceitável). Tampouco se admite violência e maus-tratos contra pessoas idosas. Também não se admite a "justiça pelas próprias mãos". A questão é: por que considerarmos a violência conjugal uma questão de "conflito privado" e essas outras violências não? Onde se origina essa dicotomia? Não me parece haver justificativa para entender a intervenção penal nesses casos uma "intromissão na vida privada". O fato de as mulheres não quererem que seus maridos/companheiros sejam presos não significa que a violência possa ser considerada privada. Necessitamos mudar o entendimento sobre o tratamento da violência conjugal contra as mulheres do âmbito "privado" para o da proteção de direitos fundamentais. Esse parece ser o novo paradigma da construção da cidadania e de novas relações entre homens e mulheres. Não mais não aceitação da violência conjugal como um problema privado, assim como o faz a Lei Maria da Penha, mas a compreensão de que se trata de uma violação de direitos fundamentais. 

Portal IBCCRIM: Sabendo que muitas mulheres não continuam seus processos por medo do seu parceiro ser preso, ao crime de violência doméstica deveria incorrer necessariamente a punição de prisão? Em outras palavras, o Direito Penal poderia oferecer outra resposta que não a prisão ou isso desqualificaria mais uma vez a atuação nos crimes de violência doméstica, tendo em vista o exemplo da experiência dos Juizados Especiais Criminais?
CHC: Não existe uma única resposta que possa ser considerada "boa" ou aplicada igualmente a todos os casos. Há casos em que a intervenção, inclusive com a prisão é necessária e outros casos em que outros tipos de resolução, não penais, podem ser aplicadas. O direito penal é um instrumento limitado, por outro não pode ser desprezado em determinadas situações. A pena de prisão é sempre uma resposta extrema e é importante pensarmos em outros mecanismos de sanção que não necessariamente ensejem a prisão, mas também é importante saber que às vezes a prisão é absolutamente necessária para evitar, por exemplo, casos de morte ou grave lesão. Inúmeros exemplos de mulheres mortas por ex-companheiros comprovam a necessidade de que a prisão tivesse sido decretada. O que não pode acontecer é a violação dos direitos fundamentais das mulheres por insuficiência da proteção penal. Parece-me que a exigência da representação nos casos de lesão corporal de natureza leve demonstra uma insuficiência dessa proteção.
O tratamento dos Juizados Criminais aos casos de violência conjugal era muito problemático, tanto do ponto de vista teórico ao incluírem a violência contra as mulheres como delito de menor potencial ofensivo quanto do ponto de vista prático, na aplicação da pena de cesta básica como a alternativa encontrada para todos os casos. Deu-se com isso, a completa banalização das violências contra mulheres. 

Portal IBCCRIM: Muitas vezes as medidas protetivas são a melhor reposta para a mulher em situação de violência doméstica. No entanto, por renunciarem à representação ou se retratarem, as mulheres perdem as medidas. O que pensa a respeito das medidas protetivas serem desvinculadas do processo penal?
CHC: As medidas protetivas são um importante instrumento à disposição das mulheres para situações de necessidade e urgência. Entendo que nos casos de lesão corporal não cabe a representação e portanto, não há retratação possível.
A Lei Maria da Penha retirou a competência do julgamento dos crimes cometidos com violência doméstica do âmbito dos Juizados e expressamente aumentou a pena do crime de lesão corporal de natureza leve. Ao fazer isso, a Lei excluiu a representação dos crimes de lesão leve (incluída pela Lei 9.099/95). Portanto, não há como exigir a representação nos crimes de lesão corporal, razão pela qual considero incorreta a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça. O STJ demonstrou uma total incompreensão com o fenômeno da violência doméstica, um desconhecimento absoluto das razões que levam as mulheres a se retratarem. O discurso de que as mulheres podem decidir se querem ou não manter a denúncia desconsidera razões como medo, que impede as mulheres de continuar um processo criminal.
No entanto, analisando-se cada caso concretamente (naqueles onde é cabível a representação) a mulher pode se retratar em audiência especificamente designada para esse fim, onde o juiz/a terá a oportunidade de analisar os motivos da decisão de renunciar.
A Lei estabelece que as medidas protetivas, face à urgência, tramitam em processo à parte e devem ser analisadas em no, máximo, 48 horas. A urgência é o fator que determina a apreciação da medida protetiva em separado do processo penal, como acontece, em geral, com os pedidos de medidas liminares. 

Portal IBCCRIM: O que são direito humanos das mulheres?
CHC: Do ponto de vista ético-jurídico os direito humanos estabelecem um novo paradigma para o tratamento das relações humanas, entre homens e mulheres e estão estabelecidos nos tratados de direitos humanos e em nossa Constituição. Talvez possa se dizer que o respeito aos direitos humanos das mulheres forneça, de fato, esse novo horizonte ético-jurídico para as novas relações de gênero que queremos construir.


IBCCRIM.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog