domingo, 19 de setembro de 2010

Artigo: A responsabilidade penal da pessoa jurídica para além da velha questão de sua constitucionalidade

Por Davi de Paiva Costa Tangerino



Em que pesem importantes resistências doutrinárias ao instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica,(1) inconteste que ela instaurou-se no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive com o apanágio das cortes superiores. O Supremo Tribunal Federal, muito embora nunca o tenha decidido em controle concentrado, conta com decisões, de ambas as Turmas, em que a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi debatida, sem, contudo, qualquer pecha de inconstitucionalidade. O Superior Tribunal de Justiça, mais do que aceitar o instituto, tem imposto parâmetros à sua aplicação, notadamente no que tange à necessidade de dupla imputação, bem como a outros requisitos para fixação de dita responsabilidade.

Quer, então, parecer que o debate quanto à responsabilidade penal da pessoa jurídica mereça ser adensado para além de sua constitucionalidade. Considerando-se, pragmaticamente, que as pessoas jurídicas podem e são julgadas por crimes ambientais, é missão da doutrina buscar conter o poder punitivo,(2) injetando-lhe parâmetros garantistas que tornem seu emprego compatível com os preceitos constitucionais penais, sobretudo quando se tem por horizonte a tendência expansionista do poder punitivo.

E a garantia fundamental que é comumente violada quando do emprego, sem mais, da responsabilidade penal da pessoa jurídica, é a antiquíssima vedação de responsabilidade penal objetiva, conteúdo do famoso brocardonullum crimen sine culpa, que dá corpo a uma das três possíveis acepções do vocábulo culpabilidade no Direito penal brasileiro.(3)

No campo da responsabilização penal da pessoa jurídica, porém, a responsabilidade objetiva acaba por renascer, na medida em que os aplicadores do Direito, ao encontrarem natural dificuldade em aplicar os institutos da teoria do delito, umbilicalmente ligados ao sujeito natural, às pessoas jurídicas, migram para um modelo privatista, mais adaptado aos entes morais. No marco da responsabilidade, a pessoal e subjetiva tende a se aproximar, perigosamente, da objetiva.

Com efeito, Ministro Gilson Dipp, relator de acórdão paradigma no assunto, afirma que “na sua concepção clássica, não há como se atribuir culpabilidade à pessoa jurídica. Modernamente, no entanto, a culpabilidade nada mais é do que responsabilidade social e a culpabilidade da pessoa jurídica, nesse contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito”.(4) A reforçar o cunho objetivo da responsabilidade, cita, em seu voto, a posição de Valdir Sznick, para quem a culpabilidade da pessoa jurídica seria uma culpa diferenciada, “diversa da culpa tradicional, dentro do interesse público, fundamento do ‘strict liability’, do direito americano, que prescinde de ‘mens rea’, ou seja, do dolo”.(5)

Prepondera, assim, na jurisprudência, a concepção segundo a qual a culpabilidade clássica serve para a fixação da responsabilidade pessoal e subjetiva, nascendo a da pessoa jurídica quando presentes os seguintes requisitos ditos explícitos: “1) que a violação decorra de deliberação do ente coletivo; 2) que o autor material da infração seja vinculado à pessoa jurídica; e 3) que a infração praticada se dê no interesse ou benefício da pessoa jurídica”, somados aos ditos implícitos “1) que seja pessoa jurídica de direito privado; 2) que o autor tenha agido no amparo da pessoa jurídica; e 3) que a atuação ocorra na esfera de atividades da pessoa jurídica”.(6)

Consagra, portanto, o sistema de dupla imputação que, nos dizeres de Sérgio Salomão Shecaira, “é o nome dado ao mecanismo de imputação de responsabilidade penal às pessoas jurídicas, sem prejuízo da responsabilidade pessoal das pessoas físicas que contribuíram para a consecução do ato”.(7)

A dupla imputação, tal como exposta acima, reforça, de um lado, a dimensão garantista, na medida em que demanda um agir humano como ponto de partida da responsabilidade da pessoa jurídica, cria, porém, de outro, uma responsabilidade quase reflexa para a pessoa jurídica, fruto direito da ação delitiva da pessoa física, sendo, portanto, em essência, responsabilidade objetiva, em tese vedada no ordenamento jurídico brasileiro.

Os estudos de direito penal comparado revelam que os modelos de responsabilização das pessoas jurídicas podem ser agrupados em três categorias: (i) responsabilidade pelo fato de outrem ou responsabilidade vicária; (ii) imputação penal baseada na teoria orgânica; e (iii) responsabilidade originária da empresa.(8)

No primeiro modelo, afirmam Kremnitzer e Ghanayim,(9) a responsabilidade da pessoa jurídica decorre diretamente da da pessoa física, de sorte que aquela responde ainda “que o subordinado não tenha permissão para agir ou ainda tenha contrariado uma proibição expressa nesse sentido, se desfazendo, em contrapartida, quando a pessoa física não se fizer punível”. Variação desse modelo é a teoria da identificação, que localiza no órgão diretivo da empresa espécie de alter ego da mesma, de sorte que “a ação e a culpa da empresa seriam identificados com o agir e a culpabilidade do indivíduo que possui um poder de direção em seu âmbito”. Parece ser esse o modelo adotado no Brasil.

As teorias que sustentam uma responsabilidade originária da empresa enfocam outro aspecto da responsabilidade: ela não decorreria do agir de pessoas físicas quando da prática de atos delitivos, porém seria aferível a partir de certa culpa da própria pessoa jurídica quando da organizaçãointerna corporis de suas atividades. Assim, por exemplo, a culpabilidade por defeito de organização, defendida por Klaus Tiedemann,(10) que, essencialmente, diz respeito à responsabilização da pessoa jurídica por não ter tomado as medidas de cuidado ou vigilância necessárias à garantia de uma atividade não delitiva. Heine, por sua vez, sustenta uma responsabilidade baseada na má condução da atividade empresarial no diz respeito à prevenção de riscos empresariais. Bastante mais complexa é a elaboração de Lampe,(11) para quem a responsabilização da pessoa jurídica passa pela construção de um novo sistema de injusto, assim entendidas “relações de pessoas organizadas com fins ilícitos”. No campo dos delitos cometidos no seio da empresa, os injustos de dimensão sistêmica seriam atribuíveis às pessoas jurídicas, na medida em que lesionam bens jurídicos com base em certa filosofia da empresa, assim entendida a totalidade da orientação e da concepção de valores que direcionam a empresa, principalmente em relação a sua posição em seu contexto social, econômico e ecológico, ou ainda com base em uma dada forma de sua organização. Concretamente, existiriam quatro causas fundamentais que constituiriam injusto imputável à empresa: a) o potencial perigo utilizado pela empresa para realizar uma dada prestação; b) a estrutura deficitária de sua organização, que neutralizaria erroneamente a periculosidade deste potencial; c) uma filosofia empresarial criminosa; d) a erosão de responsabilidade interna à empresa, nos casos em que esta não possui regras claras e eficientes de responsabilização de seus membros em caso de desvios funcionais.

Todas as teorias da culpabilidade da empresa coadunam-se com a adoção de programas de compliance como régua de fixação dessa culpabilidade. OU.S. Sentencing Guidelines Manual, em seu capítulo oitavo, prevê uma extensa relação de etapas, cada qual composta de inúmeras variáveis, para a quantificação da pena referente às corporações. Alcança-se uma verdadeira equação em pontos adicionais ou subtraídos a partir de posturas pró ou contra tolerância de atividades criminosas interna corporis.Elucidativo, assim, o exemplo contido em (f), (1), a saber, a previsão de subtração de três pontos da equação, “se o delito ocorreu apesar de a corporação ter implementado, no tempo do delito, um programa efetivo de ética e compliance, tal como previsto do §8B2.1”. Para se ter parâmetro do impacto que esses programas têm no quantum da pena, mister consignar que a multa, na hipótese de menor culpabilidade possível, será diminuída para 1/20 do valor original, ao passo que será quadruplicada no cenário de culpabilidade mais intensa.

Os modelos de culpabilidade própria da pessoa jurídica, além de mais compatíveis com as garantias constitucionais, revelaram-se, segundoSieber,(12) mais efetivos na prevenção de delitos, haja vista que estudos criminológicos constataram que “o comportamento dos empregados é principalmente sensível à influência exercida pela própria empresa. Em um estudo empírico comparativo, descobriu-se que o cometimento de crimes é consideravelmente menor nas empresas onde existem regras éticas e programas de compliance”.

O emprego de modelos de culpabilidade de empresa, por fim, não dispensa o debate quanto à viabilidade de se empregar o Direito penal na tutela da economia e, em especial, dadas as características legislativas brasileiras, do meio ambiente. Isso porque, também no campo do direito administrativo sancionador, mister a atribuição de responsabilidades, visto que não se confunde com o direito administrativo, precisamente por seu caráter sancionatório.(13)

Tal como está, o Direito penal ambiental representa um retrocesso, eis que responsabilização da pessoa jurídica, por ato de outrem, é incontroversamente um modelo de responsabilidade objetiva. Peca, ademais, ao reforçar a lógica da dissuasão que impregna a pena privativa de liberdade, cuja falência é evidente. A superação do paradigma clássico do Direito penal é um desafio que perpassa toda a dogmática penal. Curiosamente, o Direito penal ambiental oferece campo profícuo para que se vivenciem transformações, em especial no que diz respeito à pessoa jurídica. Os modelos de culpabilidade de empresa propiciam círculos virtuosos de prevenção delitiva que poderão, de fato, proteger com maior eficiência o meio ambiente a partir de um movimento crescente de envolvimento com o bem jurídico.

Notas

(1) Por todos, Luiz Régis PradoDireito Penal Ambiental. São Paulo: RT. Precursor, no Brasil, na defesa da responsabilidade penal da pessoa jurídica, Sérgio Salomão Shecaira, principalmente em Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Campus Elsevier, 2010, no prelo.
(2) TANGERINO, DaviCulpabilidade. São Paulo: Campus Elsevier, 2010, no prelo.
(3) BITENCOURT, CezarTratado de Direito PenalParte Geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, vol. 1, p. 15.
(4) Recurso Especial n. 610.114/RN, Quinta Turma, j. 17.11.2005.
(5) Direito penal ambiental. Editora Ícone, 2001, pp. 66/67.
(6) Recurso Especial n. 610.114/RN, Quinta Turma, j. 17.11.2005.
(7) Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. São Paulo: Campus Elsevier, 2010, no prelo.
(8) As referências que seguem foram extraídas da pesquisaResponsabilidade penal da pessoa jurídica, patrocinada pelo Ministério da Justiça, de que participei como pesquisador. Foi publicada na série Pensando o Direito, em seu número 18, em 2009, e encontra-se disponível gratuitamente no sítio do ministério.
(9) KREMNITZER, Mordechai; GHANAYIM, KhalidDie Strafbarkeit von Unternehmen. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 113, 2001.
(10) TIEDEMANN, KlausDie, Bebußung‘ von Unternehemen nach dem 2. Gesetz zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität. In: Neue Juristische Wochenschrift, Heft 19, 1988.
(11) LAMPE, Ernst-JoachimSystemunrecht und Unrechtssysteme. In:Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 106/1994.
(12) SIEBER, UlrichCompliance-Programme im Unternehmensstrafrecht. In. SIEBER, Ulrich et alli (org.). Festschrift für Klaus Tiedemann zum 70. Geburtstag. Köln/ München, 2008.
(13) A respeito do Direito administrativo sancionador, na seara ambiental, por todos, Helena Regina Lobo da CostaProteção penal ambiental. São Paulo: Saraiva, 2010.


Davi de Paiva Costa Tangerino

Doutor e Mestre em Direito penal e criminologia (USP). Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Advogado criminalista.


Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010.

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