Desde Montesquieu, tem-se que o poder político nas democracias deve ser repartido, de tal sorte que aqueles que o exercem fiscalizem-se mutuamente. Essa ideia, concebida no Estado Liberal, tinha por finalidade primaz limitar a atuação dos agentes públicos, estabelecendo uma espécie de autocontrole do poder. Paralelamente, permitiria aos cidadãos questionar abusos lesivos a direitos individuais. Assim, entendida essa relação, parecia estar ao alcance de todos, no contexto democrático liberal, insurgir-se contra os excessos do exercício do poder. Todavia, essa fórmula originária não levou em consideração – e, a bem da verdade, nem poderia tê-lo feito – que o poder político viria a manifestar-se, tempos depois, com a roupagem do que Bourdieu chamou de poder simbólico: o discurso dissimulado que submete sem precisar da força, que obtém a cumplicidade de quem a ele se sujeita, que esconde sua arbitrariedade para conseguir manipular pela ignorância. E a intervenção penal, ponto de tensão da ação política estatal, parece ter se tornado a representação por excelência desse poder simbólico.
No Brasil, nunca se legislou tanto em matéria criminal quanto no período posterior à Constituição Federal de 1988. Há um verdadeiro agigantamento da criminalização primária, que – para aqueles que querem ver – revela a fragilidade e a ineficácia das instâncias formais de criminalização secundária (Polícia, Ministério Público, Judiciário, Sistema Penal etc.). Para isso, faz-se tábua rasa de conquistas históricas orientadas à limitação do poder punitivo, volatizando-se a ideia de bem jurídico penal e convertendo-se a resposta criminal na prima ratio para a solução dos problemas sociais. Meio ambiente, relações de consumo, trânsito, condições etárias e de gênero (idoso e violência doméstica), relações tributárias etc., são exaustivamente usados como objeto da tutela penal, sempre recrudescida, num movimento de expansão que parece não encontrar fim. Agora se pretende submeter a essa disciplina também as relações familiares. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, recentemente, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) n. 20/2010, o qual, se valendo do conceito de síndrome da alienação parental – a interferência promovida por um dos genitores na formação psicológica da criança para que repudie o outro, bem como atos que causem prejuízos ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este –,promove alteração no art. 236 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de modo a punir criminalmente o responsável que apresentar relato falso à autoridade policial, ao juiz, a representante do Ministério Público ou a membro do Conselho Tutelar, cujo teor possa ensejar restrição à convivência de criança ou adolescente com genitor. Não será de espantar se, quando da publicação deste Editorial, a lei já estiver em vigor.
Dos diversos efeitos nocivos provocados pelo excesso de leis penais, o mais prejudicial, talvez, seja o comprometimento da harmonia sistemática do ordenamento jurídico. A intervenção mínima, no seu duplo aspecto de fragmentariedade e subsidiariedade, constitui, indiscutivelmente, pressuposto da coerência lógica do sistema de normas penais. Quanto mais tipos, maiores as dificuldades em estabelecer entre eles uma relação de proporcionalidade punitiva. Busca-se punir atos tendentes à promoção de alienação parental com a pena mínima de 6 (seis) meses de detenção, correspondente ao dobro da pena mínima prevista para a lesão corporal qualificada praticada pelos pais contra o próprio filho (art. 129, § 9º, do Código Penal). Enfim, um crime de perigo – com todos os embaraços de ajustamento constitucional que essa técnica legislativa implica – punido mais gravemente do que um crime de dano. Consequência do uso – melhor seria, do mal uso – do direito penal como solução para todos os embates humanos.
Não é de hoje que esses ímpetos político-criminais de repressão vêm afetando a proporcionalidade punitiva interna da legislação penal. Exemplo emblemático dessa desarmonia é o art. 273 do Código Penal, que prevê pena mínima de 10 (dez) anos de reclusão ao delito de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Quase o dobro da pena mínima cominada ao homicídio simples (!).
Mais preocupante, entretanto, é a reação letárgica da sociedade a esse modelo repressivo. O discurso penal materializa o poder simbólico – ou seria dele uma manifestação? – pois conquista, seduz, envolve as pessoas sem que essas se deem conta da violência que representa. Ao invés de funcionar como instrumento de contensão do arbítrio estatal, limitando o âmbito de ingerência do poder punitivo na vida dos cidadãos, o direito penal simbólico amplia esse campo até as raias do indeterminado, sempre apoiado na falácia do preventismo e do retributivismo. Como se esperar que a intervenção penal seja capaz de dirimir questões de tamanha complexidade como relações familiares marcadas pela disputa que os pais travam pela afetividade dos filhos, em meio a mágoas e ressentimentos? A ameaça penal, do modo como a concebeu Feuerbach, definitivamente não é o melhor caminho a ser trilhado nesses casos, e o castigo, com toda sua carga estigmatizante – inclusive aquela inerente ao próprio processo penal – servirá apenas para intensificar a dor entre pais e filhos.
A resposta penal é a face simbólica do poder político. Enquanto isso não for tratado com responsabilidade, continuaremos a viver de ilusões, como a que faz muitos pensarem que leis penais tornam nossa vida melhor.
O excesso das leis penais. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 01-02, ago., 2010.
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