A partir dos meados do século XVIII, com a mudança de paradigma acerca da Religião, do poder das monarquias no Velho Mundo, e da concepção de “Estado”, sobretudo no que diz respeito à operação e à tutela jurídica, surge – naturalmente após alguma consolidação de entendimentos basilares – a corrente Humanitarista, “filha penalista” do Jusnaturalismo Racionalista e, por isso mesmo, neta do Antropocentrismo e do Iluminismo. Uma vez relacionados os pontos de cariz filosófico, não pode ser esquecido também o fenômeno político que deu azo a tal conceito: o Liberalismo como motor dessa revolução intelectual.
O grande marco da nova doutrina dá-se com os trabalhos de Beccaria,Montesquieu, Filangieri, Voltaire(1) – nunca esquecendo o trabalho deRousseau no que diz respeito à função de tutela do Estado nascido do “Contrato Social”.(2)
As novas teorias espalharam-se pela Europa ocidental com a troca de conhecimentos entre acadêmicos (principalmente através do intercâmbio de professores) e a partir daí, foi fácil – diria inevitável – seu avanço nas colônias (as primeiras universidades brasileiras, em contraposição ao fenômeno das colônias espanholas, só apareceram no segundo quartel do século XIX, sendo hábito que os jovens da nobreza fossem experimentar o ensino superior na então metrópole). Tal encontro vai culminar no Código Criminal do Império Brasileiro de 1830.(3)
Constata-se um significativo avanço no entendimento da finalidade das penas. Ora, a apreciação anterior falava das teorias retributivas e, simultaneamente, faz-se presente a teoria da prevenção geral negativa. Assim, a pena congregava, por via de consequência, mais uma finalidade intrínseca: a de imposição do poder do soberano. Com a transição, passa-se a conceber a sanção penal como um meio de prevenção, tanto geral como especial, mas em ambos os casos na sua perspectiva positiva. Naturalmente que sendo a prevenção o fim maior das penas, perdem qualquer sentido de oportunidade os suplícios espetaculares até então assistidos em praça pública e assiste-se à célere e substancial evolução do modelo penitenciário.(4)
Mas não fiquemos por aqui. Considerando o Estado como o “regente” das relações jurídicas, só ele é capaz de tutelar direitos e sancionar uma qualquer invasão a estes. Ora, não faz sentido que se permita – ao menos depois da aceitação de pressupostos racionalistas – que o particular, motivado puramente por vingança, detenha a titularidade do ius puniendi.Assim, a junção dessas ideias vai resultar na publicitação do direito-poder de punir, extiguindo o instituto da vingança privada.(5)
Mais uma característica de considerável relevo foi, antes de ser abraçada pela corrente, um meio de se chegar à sua construção. Fala-se agora da repartição da membrana do “núcleo duro” que englobava o tripé da Religião, Direito e Moral. Desta forma, afastam-se os meios probatórios utilizados até então (de forma sintética e caricata – a “Proteção Divina”).(6)
O grande percussor dos ideais humanitaristas em Portugal foi Mello Freire. Num período em que a norma vigente já era pouco consultada napraxis jurídica em razão da sua inadequação aos novos tempos e das suas falhas estruturais (falamos das Ordenações Filipinas com seus “filipismos”), o Professor da Academia de Coimbra foi solicitado pela Rainha D. Maria I para a elaboração de uma codificação penal que expressasse o pensamento em voga e seu cabimento na sociedade em questão. Tal projeto nunca foi aprovado na Assembleia, mas ficou nas paredes da memória do direito português como o primeiro passo a caminho da razoabilidade.(7)
Uma vez que lecionava a cadeira de Direito pátrio na “Lusa-Atenas”, sua doutrina, acompanhada por outros professores da Academia de Ciências de Lisboa – ganhou ressonância e conquistou larga parte do universo acadêmico. Por via de consequência natural, os escolares de então absorveram tais entendimentos e deram segmento à justa bandeira iluminista – seja na prática processual, seja na produção teórica.
É de ter em atenção o corpo discente: como era de se esperar, majoritariamente composto por portugueses de “boa família”, e os jovens oriundos das colônias (dispensável é dizer que também de famílias bem abastadas). Agora torna-se fácil perceber a “ponte” por onde “caminhou” a doutrina Humanitarista – tal como se havia feito noutros tempos a difusão de escolas e correntes por meio de estudantes estrangeiros que regressavam ao seu País com novos conhecimentos e fazendo uso destes, o mesmo se passou neste contexto.
O principal reflexo dessa ligação acadêmica deu-se com a elaboração do Código Criminal do Império, de Bernardo Pereira de Vasconcelos, que havia concluído os seus estudos de Direito e de Filosofia na Universidade de Coimbra e deixou clara essa marca no texto que elaborou.(8) São pontos de destaque da obra normativa: a) o princípio da legalidade criminal; b) um capítulo destinado aos crimes justificáveis (circunstâncias excludentes de ilicitude); c) a objetividade “não humilhante” da pena capital etc. Não havendo cabimento para discorrer acerca da matéria, faz-se necessária a referência a um ponto que não acompanhou os fundamentos humanitaristas: as penas continuavam tendo o fim de “satisfação do mal ou dano causado”, como se pode verificar em todo o Capítulo IV do Código.
Torna-se impensável, tendo em vista tal evolução do direito penal e dignificação da pessoa humana, um contexto de operação do direito alheio ao pensamento iluminista. Contudo, é comum que se perca de atenção um paulatino afastamento deste “norte” sob o pretexto (pseudo-justificativa) da segurança pública ou de um possível aumento da criminalidade.(9) Os juristas e filósofos dos séculos XVIII e XIX foram assombrados pelo mesmo espectro muito mais vigoroso(10) e conseguiram mostrar empiricamente o que já se sabia em teoria: a tolerância e a filosofia jamais poderiam figurar como causa de um qualquer mal social.
Notas
(1) ALMEIDA, Mário Júlio de. História do Direito Português. 3ª ed. Almedina, p. 362.
(2) CRUZ, Guilherme Braga da. O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal. In: BMJ, n. 170, p. 53 (lá, nota 51).
(3) KOERNER JUNIOR; PEREIRA. Código Criminal de 1830. Buscalegis. 5.3.2009. América do Norte.
(4) FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis. 1987. Vozes, p. 8 e ss.
(5) ALMEIDA, Mário Júlio de. Op. cit., p. 362.
(6) FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 8 e ss.
(7) ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. A Reforma da Justiça Criminal em Portugal e na Europa. Almedina. 2003, p.66.
(8) KOERNER JUNIOR; Pereira. Op. cit.
(9) WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Celta Editora. 2001.
(10) CRUZ, Guilherme Braga da. Op. cit., p. 53 (lá, nota 51).
(2) CRUZ, Guilherme Braga da. O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal. In: BMJ, n. 170, p. 53 (lá, nota 51).
(3) KOERNER JUNIOR; PEREIRA. Código Criminal de 1830. Buscalegis. 5.3.2009. América do Norte.
(4) FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis. 1987. Vozes, p. 8 e ss.
(5) ALMEIDA, Mário Júlio de. Op. cit., p. 362.
(6) FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 8 e ss.
(7) ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. A Reforma da Justiça Criminal em Portugal e na Europa. Almedina. 2003, p.66.
(8) KOERNER JUNIOR; Pereira. Op. cit.
(9) WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Celta Editora. 2001.
(10) CRUZ, Guilherme Braga da. Op. cit., p. 53 (lá, nota 51).
Wilson Feitosa de Brito Neto
Aluno do segundo ano de Direito na Universidade de Coimbra
BRITO NETO, Wilson Feitosa. Introdução do humanitarismo jurídico no Brasil e seu reflexo no Código Criminal do Império brasileiro (1830). InBoletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010.
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